Acabou o segredo pontifício em casos de violência sexual e abusos de menores e de vulneráveis por parte de representantes da Igreja Católica. Ou seja, devido a duas novas leis promulgadas no dia 17/12, pelo Papa Francisco – e que já estão em vigor – não existe mais o sigilo papal, que proibia a tramitação de denúncias ou o encaminhamento desses casos às autoridades civis.
O segredo pontifício era, até hoje, o mais alto grau de sigilo no direito canônico, e sua violação era considerada um grave pecado, podendo ser punida até com a excomunhão em casos mais extremos. Por conta de sua existência, a vítima não podia saber a sentença resultante de sua denúncia. Com sua revogação, os documentos não serão de domínio público, mas a colaboração com o Estado passa a ser mais concreta.
Casos de violência e atos sexuais
O primeiro e mais importante documento é um rescrito assinado por Pietro Parolin, cardeal Secretário de Estado, que indica que, em 4/12, o Papa decidiu abolir o segredo pontifício sobre denúncias, processos e decisões relativas aos crimes mencionados no primeiro artigo do recente motu proprio “Vos estis lux mundi”. São eles: casos de violência e de atos sexuais cometidos sob ameaça ou abuso de autoridade; casos de abuso de menores e de pessoas vulneráveis; casos de pornografia infantil; casos de não denúncia e cobertura dos abusadores por parte de bispos e superiores gerais dos institutos religiosos.
Com a nova instrução, “as informações devem ser tratadas de modo a garantir a segurança, a integridade e a confidencialidade“, conforme estabelecido no Código de Direito Canônico para tutelar “o bom nome, a imagem e a privacidade” das pessoas envolvidas. No entanto, o “sigilo profissional não impede o cumprimento das obrigações estabelecidas em todos os lugares pelas leis estatais”, o que inclui obrigações de sinalização do crime, “bem como a execução dos pedidos executivos das autoridades judiciais civis”. Mais: “não pode ser imposto algum vínculo de silêncio sobre os fatos” a quem denuncia, às vítimas e às testemunhas.
Pornografia infantil
O segundo rescrito, também assinado pelo cardeal Parolin, mas também pelo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Luis Ladaria Ferrer, indica as modificações de três artigos do motu proprio “Sacramentorum sanctitatis tutela” (de 2001 e modificado em 2010). Estabelece que faz parte dos crimes mais graves, reservados ao julgamento da Congregação para a Doutrina da Fé, os casos em que um clérigo produza, detenha, adquira ou difunda imagens pornográficas de menores de 18 anos – antes, a idade mínima era 14 anos. Este crime será configurado como pornografia infantil, não importa o meio e a tecnologia utilizados.
O novo documento indica que é dever das dioceses de cada país colaborarem com a Justiça – fornecendo a documentação sobre os processos e denúncias em curso – sempre que for solicitado por autoridades judiciais. E ainda define que, nos casos relativos a estes crimes mais graves, os papeis de advogado e procurador podem ser desempenhado por civis ou fiéis leigos com doutorado em Direito Canônico e não apenas por sacerdotes.
O único que tem restrições nas novas leis é o réu porque o bispo é quem adotará medidas cautelares a respeito de sua conduta. E as novas leis também não afetam o segredo da confissão, que continua em vigor também nesse tipo de crime.
Em nota que acompanha a nova determinação, o bispo espanhol Juan Ignacio Arrieta, um de seus responsáveis, explica que “a instrução busca especificar o grau de reserva com que serão tratadas as notícias ou denúncias relativas a abusos sexuais por parte de clérigos ou pessoas consagradas contra menores ou outros sujeitos determinados, e as eventuais condutas que tendessem a silenciá-los ou encobri-los”. E completa: “O objetivo é cancelar a sujeição ao chamado segredo pontifício, redirecionando o nível de reserva devidamente exigido para a proteção da boa reputação das pessoas envolvidas, para o normal segredo de ofício estabelecido, que todo pastor ou titular de um cargo público deve contemplar de modo distinto, de acordo com as pessoas que tenham o direito de conhecer as notícias”.
Mais transparência
As leis promulgadas pelo Papa Francisco atendem reivindicações de líderes católicos reunidos na cúpula realizada no Vaticano, em fevereiro, para discutir os escândalos de pedofilia na Igreja Católica, e se configura como um passo importante na abertura do atual pontificado para esse problema tão grave. Após o encontro, o pontífice prometeu mais transparência no combate a esses abusos e que estabeleceria a obrigatoriedade de denúncia para todos os tipos de crimes sexuais.
Como destacou o secretário-adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé, Charles Scicluna, uma das principais autoridades da Igreja no combate à pedofilia, trata-se de “uma decisão histórica, que chega no momento certo”. Os escândalos de pedofilia na Igreja Católica são recorrentes em inúmeros países – como Argentina, Austrália, Chile, Estados Unidos e Irlanda – e só aumentam. É preciso parar de encobri-los e que a Justiça dê conta deles para alterar esse cenário tenebroso.