Panorama de substituição de gorduras trans levanta preocupações

Alternativas mais usadas podem ter impactos negativos à saúde e meio ambiente. Há solução, mas passa pela briga entre os interesses da indústria e da saúde coletiva.

Adobe Stock; O Joio e O Trigo

Por Mylena Melo e Maíra Mathias, para o Joio e o Trigo.

O banimento das gorduras trans no Brasil, em vigor desde janeiro, é uma ótima notícia para a saúde coletiva. Mas deixa uma pergunta: o que vai entrar no seu lugar, nas formulações de ultraprocessados que há décadas são recheados desse tipo de gordura? O panorama de substituição – que envolve questões como a escolha da matéria-prima e tecnologia utilizada – desperta preocupações, que podem ser divididas em três categorias:

1. Que a substituição aconteça por alternativas que não são saudáveis. 
Exemplo: Gordura saturada.
2. Que a substituição aconteça por alternativas que não são socioambientalmente sustentáveis. 
Exemplo: Óleo de palma.
3. Que a substituição aconteça por alternativas para as quais faltam dados científicos sobre sua segurança. 
Exemplo: Gorduras interesterificadas

Na indústria, os óleos vegetais passam por diversos processos para modular suas características. Por décadas, a hidrogenação parcial foi a queridinha das corporações. Ela aumenta o ponto de fusão do óleo e o deixa mais duro e estável, resistente à temperatura ambiente. Mas esse processo altera a estrutura molecular do óleo, criando a gordura trans. A indústria usou e abusou da hidrogenação parcial – e da falta de evidências científicas sobre seus impactos. Hoje, há evidências sólidas de que o consumo de gorduras trans aumenta o risco de morte por qualquer causa em mais de 30%.

O pesquisador Gyorgy Scrinis, no livro Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional, diz que “assim como antes dos anos 1990, quando o público não estava devidamente informado sobre o uso da gordura trans, parece que a negligência de informação está sendo repetida na era do virtualmente livre de gorduras trans”.

Além da hidrogenação, há ainda outros dois processos utilizados pela indústria para conseguir esses óleos endurecidos – eles não produzem gorduras trans, mas podem ter outros impactos negativos à saúde e ao meio ambiente.

Um deles é o fracionamento, separação física das partes sólidas e líquidas dos óleos. Como quando a garrafa de dendê fica parada muito tempo e se divide em uma gordura densa e laranja em baixo e um óleo liso e vermelho em cima. O outro é a interesterificação – que, além de um trava-línguas, é um processo no qual são adicionados catalisadores enzimáticos ou químicos aos óleos.

“A interesterificação química é mais barata e fácil de fazer e, por isso, é a mais utilizada. Já a enzimática é usada em produtos de maior valor agregado, para substituir a manteiga de cacau, por exemplo”, explica a especialista em tecnologia de alimentos Juliana Ract, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP).

Do ponto de vista econômico, a interesterificação se mostrou uma alternativa viável às gorduras trans. Mas, do ponto de vista da saúde pública, há dúvidas.

O ponto de partida dessa reação é a mistura de uma fonte de ácidos graxos insaturados – como os óleos de soja, canola ou milho – e uma fonte de ácidos graxos saturados, que pode ser ou uma gordura totalmente hidrogenada ou um derivado de palma chamado estearina.

Com a ação do catalisador, químico ou enzimático, os dois tipos de ácidos graxos, que estavam separados, vão parar na mesma molécula. O resultado final, no jargão da indústria, é um “lipídio estruturado”, que pode ter diferentes graus de consistência dependendo de onde for parar: margarinas, sorvetes, massas, recheios de biscoito, coberturas de bolo, produtos de confeitaria etc. Ele também pode conter resíduos químicos do processo.

“A negligência de informação está sendo repetida na era do virtualmente livre de gorduras trans”

“Essas gorduras interesterificadas — ou o que eu chamo de ‘i-fats’ — têm uma estrutura molecular quimicamente transformada e, como as gorduras trans, são um novo tipo de gordura não encontrado na natureza. O processo de interesterificação produz não um, mas uma série de diferentes tipos de moléculas de ácidos graxos rearranjados”, explica Scrinis, em Nutricionismo. Cada uma dessas novas moléculas pode ser metabolizada de uma forma diferente, e desconhecida, pelo organismo humano.

É isso mesmo: a interesterificação cria mais ou menos o mesmo problema da hidrogenação parcial. Apesar de não produzir gorduras trans, gera substâncias que não existem na natureza e podem ter impactos negativos à saúde. Já se sabe que as gorduras interesterificadas “enganam” o metabolismo.

Na natureza, os ácidos graxos saturados geralmente ficam nas posições externas da molécula, enquanto o ácido graxo insaturado fica no meio. Durante a digestão, o organismo quebra esses ácidos nas posições externas primeiro, para usar rapidamente como fonte de energia. Já o ácido que está no meio é absorvido e usado como uma espécie de estoque. Durante o processo de interesterificação, esses ácidos graxos saturados, que ficavam nas posições externas, vão parar no meio da molécula.

“Quando foram estudando os efeitos da gordura interesterificada na nutrição, no organismo, foi se observando que acontecia esse aumento da absorção de ácidos graxos que, pela natureza, a gente não ia absorver. Então também a interesterificação não resolveu totalmente o problema. A gente consegue produtos zero trans, mas talvez a absorção de [ácidos] saturados esteja sendo maior do que seria se a gente tivesse consumido uma gordura natural”, explica Ract.

Prevenir para não remediar

Demorou muito tempo até que a ciência reunisse evidências robustas sobre os efeitos das gorduras trans e o poder público agisse para limitar seu consumo. A indústria começou a usar esse tipo de gordura em larga escala há cerca de 80 anos e só agora ela está banida no Brasil. No mundo, as primeiras leis criadas nesse sentido não têm mais que 20 anos. Durante todo esse período, a população esteve exposta aos riscos que o consumo de gorduras trans oferece.

Especialistas em saúde pública vêm pegando carona nas discussões acerca da eliminação dessas gorduras para pautar, também, a regulamentação da interesterificação. Para Scrinis, é “adequado invocar aqui o princípio da precaução e retirar esses óleos quimicamente reconstituídos do abastecimento alimentar até que se possa provar que eles são seguros e saudáveis”.

No Canadá, durante as discussões sobre a lei que baniu as gorduras trans no país, encerradas em 2017, a agência reguladora chegou a receber pedidos de proibição da interesterificação. Respondeu que o processo era usado “há décadas” pela indústria de alimentos para substituir a hidrogenação parcial – mas reconheceu que os efeitos para a saúde ainda não são bem compreendidos e prometeu acompanhar as pesquisas a respeito.

No Brasil, a Anvisa seguiu a mesma linha de ação. Diante de manifestações de pesquisadores para lançar mão do princípio da precaução e dos argumentos do setor produtivo para continuar usando gorduras interesterificadas, ficou com os últimos.

Laís Amaral, atual supervisora técnica do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), acompanhou esse cabo de guerra. Ela conta que os problemas da interesterificação foram discutidos quando a regulação das gorduras trans estava em construção, mas “não incluíram” na norma aprovada.

“A gente colocou isso para a Anvisa, porque, como a gente não sabe sobre [o impacto] desse tipo de gordura, trabalha com o princípio da precaução. Se você não sabe o mal que faz, é melhor isso não ser colocado para a população, se não vira outro problema”, completa.

A agência foi questionada pelo Joio, quando a discussão em torno da regulação das gorduras trans ainda estava em curso. Respondeu que “não há respaldo técnico-científico para proibir o uso de óleos interesterificados no Brasil” e que “aspectos relacionados ao impacto das gorduras interesterificadas na saúde ainda necessitam de investigações mais aprofundadas, especialmente sobre seus efeitos a longo prazo”. A Anvisa também prometeu acompanhar as pesquisas sobre o tema e monitorar o uso das gorduras interesterificadas nos alimentos, embora não tenha dado detalhes de como faria isso.

Um caminho óbvio seria incluir essa informação nos rótulos dos produtos. Hoje, não há nada que obrigue as empresas a declarar se um óleo foi interesterificado – o que deixa não só consumidores, mas também pesquisadores, no escuro.

Indústria pode estar criando um novo problema ao substituir gorduras trans por gorduras interesterificadas. Faltam evidências sobre sua segurança e não há nada que obrigue as empresas a informar aos consumidores se seus produtos têm esse tipo de gordura. Imagem: O Joio e O Trigo

A Anvisa também informou que, no âmbito das discussões no Mercosul sobre a rotulagem geral de alimentos embalados, propôs essa obrigatoriedade, mas que não havia consenso entre os países-membros. Acrescentou ainda que tinha planos de publicar um guia sobre as opções tecnológicas disponíveis para substituir óleos e gorduras parcialmente hidrogenados, que contém gorduras trans. A previsão era de publicá-lo no segundo semestre de 2021, mas até hoje não saiu do papel.

Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a agência afirmou que uma consultoria foi contratada para elaborar o material de base para o guia. “O estudo foi entregue no início de janeiro de 2023 e será revisado, ajustado e formatado para que possa ser divulgado”, diz a nota. A nova previsão é de que seja publicado ainda no primeiro trimestre deste ano –  ou seja, até o mês que vem.

Questionada novamente pelo Joio neste mês, a assessoria da Anvisa informou que mantém a posição de que não há respaldo para proibir as gorduras interesterificadas e que está em fase de planejamento uma Avaliação do Resultado Regulatório (ARR), “que poderá fornecer informações importantes para a avaliação do uso de gorduras interesterificadas em alimentos, como ingredientes substitutos de gorduras trans industriais”.

As controvérsias em torno do óleo de palma

O dendê não é apenas um exemplo útil para entender como funciona o fracionamento. O azeite que usamos para fazer moqueca ou acarajé é feito a partir do fruto de uma palmeira. Do mesmo fruto, são extraídos o óleo de palma e o palmiste.

A substituição da hidrogenação parcial pela interesterificação tem implicações na escolha das matérias-primas usadas pela indústria. A regra tem sido misturar óleos insaturados, como o de soja ou canola, com o óleo de palma ou o palmiste, que têm muito mais gordura saturada. “Por isso, e pelo preço, é a matéria-prima mais visada pela indústria brasileira”, afirma um consultor de empresas do ramo que concordou em falar com o Joio, desde que não fosse identificado.

“Do ponto de vista da saúde, o melhor seria não usar nenhum deles” 

“A palmeira gera um fruto, a palma. Na palma há dois tipos de óleo: o da polpa da palma e o do caroço da palma. O óleo do caroço, ou palmiste, tem o que se chama de gordura láurica, que confere características como o derretimento na boca e o estalo da barra de chocolate. O [ponto] contra é a concentração alta de ácidos graxos saturados, por volta de 85%. Numa formulação de cobertura de chocolate, esse percentual pode chegar a 98%. Já o óleo gerado a partir da polpa da palma tem por volta de 50% de gordura saturada, mas não tem as mesmas características físicas do outro óleo”, explicou.

O consultor reconhece, no entanto, que “do ponto de vista da saúde, o melhor seria não usar nenhum deles”.

Há ainda uma outra dimensão nessa discussão, que é a da captura de terras de comunidades tradicionais e desmatamento de florestas nativas devido ao aumento da demanda por óleo de palma no mundo. Na Europa, por exemplo, os consumidores passaram a valorizar produtos feitos sem óleo de palma – e em muitos países era comum que os produtos carregassem um selinho indicando isso. O debate é tão quente que a União Europeia aprovou em dezembro de 2022 uma lei anti desmatamento que restringe a importação do óleo de palma, dentre outras matérias-primas.

Hoje, Tailândia, Malásia, Indonésia, Bornéu e Sumatra concentram mais de 90% da produção mundial de palma. Na América Latina, o Brasil tem a dianteira. Por aqui, a produção se divide entre Bahia, Roraima e Pará, com esse último estado respondendo por mais de 90% do volume total.

Sandro Leão, professor da Universidade Federal do Oeste do Pará, vem acompanhando esse boom – e suas consequências. De acordo com pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), ele observou que os agricultores familiares estão produzindo a partir de contratos muito problemáticos. “As empresas do setor se veem em condição de fazer recair sobre os próprios agricultores os riscos da produção (infestações, pragas, safras baixas, etc), o cumprimento da legislação ambiental e trabalhista e mesmo as oscilações do preço da commodity no mercado internacional”, explicou por e-mail.

Algumas das controvérsias em torno da produção do óleo de palma são a captura de terras de comunidades tradicionais e o desmatamento de florestas nativas, devido ao aumento da demanda pelo insumo. Foto: Adobe Stock

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2021 foram produzidas 2,8 milhões de toneladas de cachos de palma no país. Em 2010, esse número era de 1,2 milhão. Um crescimento de cerca de 230% em pouco mais de dez anos. Mesmo assim, parece pouco para a indústria.

Em julho de 2020, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) protocolou junto à Câmara de Comércio Exterior (Camex), vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, um pedido para zerar o imposto de importação do óleo de palma. Uma forma de reduzir os custos da matéria-prima e da transição para um portfólio de produtos livres de gorduras trans.

A justificativa usada pela entidade foi justamente o processo de regulação do uso desse tipo de gordura no país.

O pedido da Abia foi aprovado pelo Comitê-Executivo de Gestão (Gecex), também vinculado ao Ministério da Economia, em novembro do ano passado. A pasta informou que agora o pedido encontra-se em análise na Comissão de Comércio do Mercosul, que terá sua próxima reunião no mês que vem.

Entre o pedido e a decisão, a Abia fez questão de marcar presença em Brasília, para fazer o lobby de sua proposta. Em julho, cerca de quatro meses antes da reunião do Gecex, três representantes da associação tiveram uma reunião com autoridades do Ministério da Economia. A pauta? “Imposto de Importação para o óleo de palma”. No mesmo período, a Abia também fez sua campanha junto à opinião pública. Em entrevistas a veículos como Globo Rural e Canal Rural, defendeu sua proposta e alegou que, sem a redução do imposto, o preço dos alimentos pode subir. Ou seja, a conta vai para o bolso do consumidor.

Secretária do Ministério da Economia, Glenda Bezerra Lustosa, se reuniu com a indústria meses antes de participar de processo decisório que beneficia o setor. Imagem: Reprodução/Ministério da Economia.

O Joio solicitou a ata da reunião, por meio da Lei de Acesso à Informação, mas até o fechamento da reportagem não obteve retorno do Ministério. Uma das representantes do Ministério, a secretária Glenda Bezerra Lustosa, também participou da reunião do Gecex em que o pedido da Abia foi aprovado.

Há alternativas, então?

Sim, há maneiras de substituir as gorduras trans sem usar óleo de palma e sem a interesterificação. Segundo Juliana Ract, da USP, dá para usar a mesma tecnologia de um produto que, do dia para a noite, foi parar nos bolsos e bolsas de todo mundo. “A tecnologia se chama oleogel. É a mesma tecnologia do álcool em gel, que é o álcool líquido misturado a um agente estruturante.”

A técnica começou a ser estudada com aplicação na alimentação na primeira metade dos anos 2000. O agente estruturante, que é uma substância com ponto de fusão elevado, é adicionado ao óleo. “Na hora que essa mistura solidifica, o agente estruturante forma uma rede tridimensional que parece uma esponja, e dentro dessa esponja fica o óleo intacto, como na natureza”, explica Ract.

O oleogel é uma das alternativas às gorduras trans que se mostrou mais saudável. No entanto, para a indústria, há pontos contra, como o sabor e durabilidade dos produtos. Imagem: Reprodução/Unicamp

Do ponto de vista da saúde, é mais saudável. Mas, para a indústria, há pontos contra, como o tempo de vida do produto na prateleira, que pode ser menor, e a insuficiência em  proporcionar certas experiências sensoriais que tornam esses produtos tão viciantes.

Um dos agentes estruturantes mais estudados são as ceras: cera de carnaúba, cera de candelila, cera de cana de açúcar. Várias ceras de origem vegetal que têm aquele cheiro de cera de depilação e um sabor muito amargo. “Elas fazem um oleogel maravilhoso com uma quantidade super pequena, só que na hora que a gente pega, chega perto, já sente o cheiro de cera. O gosto então, nem se fala”, conta Ract.

Ela afirma que há outras opções de agentes estruturantes, que não têm essa limitação e estão sendo testados pela indústria. A aplicação dessa tecnologia no setor ainda é recente, mas para Ract esse é “o futuro” e a tendência é que a substituição da gordura interesterificada pelo oleogel seja feita aos poucos. A princípio, misturando os dois.

O difícil é saber exatamente o que fazem as corporações, porque quase tudo se trata de “informação estratégica” ou “segredo do negócio”. É aquela velha história da receita da Coca-Cola ser um grande mistério – pela tabela nutricional, a gente sabe que tem só açúcar, água e aditivos, mas não sabe exatamente como o produto é feito.

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