Estudiosos da universidade de Oxford, no Reino Unido, publicaram no dia 15 de março (ver a matéria Coronavírus: Pouco caso de Bolsonaro pode custar 489 mil vidas ao Brasil, no The Intercept Brasil, de 16.03) um estudo preliminar comparando as possíveis mortes pelo novo coronavírus no Brasil e na Nigéria. Apesar de ser um estudo preliminar, antecipado em decorrência da importância desse tipo de informação em meio a uma crise sanitária mundial, a projeção é que poderá haver até 478 mil mortes no Brasil. Os cientistas tomaram como referência dois países nos quais o impacto da doença foi bastante diferenciado: Itália, onde o número de mortos é altíssimo e a taxa de letalidade é uma das maiores, e Coreia do Sul, que, apesar de ter um grande número de infectados, tem uma das mais baixas taxas de letalidade (1%).
Estudando os padrões de letalidade da doença a partir desses dois países, os cientistas projetaram o que poderia acontecer em nações que ainda não chegaram ao pico da pandemia, como no caso do Brasil. Os números devem ser encarados com cautela, pois o estudo é preliminar e deve passar por aperfeiçoamentos metodológicos. Mas o número geral (risco de quase 500 mil mortos no Brasil) é impressionante, e deveria servir de alerta para a horda que vem defendendo retorno ao trabalho, isolamento vertical e coisas do gênero. Contrariando não apenas os estudos especializados, mas a experiência concreta recente dos vários países, no enfrentamento da doença.
Com o agravamento da pandemia prossegue o movimento da burguesia no Brasil para separar as inacreditáveis estultices de Bolsonaro, do programa econômico “virtuoso” coordenado por Paulo Guedes. Mas o que salta aos olhos é que justamente o programa de Paulo Guedes dificulta muito o combate aos efeitos do coronavírus, tanto no aspecto da saúde, quanto no da economia. No mundo todo as políticas que estão sendo implementadas são as desenvolvidas a partir dos Estados nacionais. Independentemente do tipo de governo de cada país, as políticas desenvolvidas utilizam a potência e a capacidade de centralização e organização do Estado. Mantendo, obviamente, seu caráter de classe: em todo o mundo capitalista as medidas têm como principal preocupação a proteção das empresas.
Aqui, desde o golpe em 2016, os governos vêm enfraquecendo o Estado nacional, que já tinha muitas debilidades, o que dificulta muito o combate à pandemia neste momento. Uma coordenação central para o combate à doença é rejeitada pelo governo não só pela incapacidade de perceber a gravidade do momento, mas também por razões ideológicas. Ou seja, a política do governo é “cada um que se vire”. Por exemplo, já se sabe que os efeitos da pandemia são mais graves nas regiões mais pobres. As condições de alimentação, moradia, acesso à remédios, higiene, tudo isso fornece aos ricos e à classe média condições infinitamente superiores para o enfrentamento da doença, em relação aos pobres. Quanto menos dinheiro a pessoa tiver, mais sujeito estará a contrair a doença e menos condições terá de se curar.
Dessa forma os efeitos da crise econômica, impulsionada agora pela pandemia, sobre a pobreza, poderão ser devastadores. Ora, a partir do golpe começaram a desmontar as políticas de combate à pobreza, política que foi aprofundada no Governo Bolsonaro. Destruíram as políticas de segurança alimentar e a fome aumentou rapidamente no Brasil. Em apenas 3 anos após ter saído do Mapa da Fome da ONU (2014), o Brasil retornou para o famigerado Mapa. É importante considerar que o fato de um país com recursos abundantes como o Brasil, ter uma parcela expressiva da população que passa fome, revela a face cruel e atrasada da burguesia brasileira.
A pandemia disparou uma crise mundial (que já vinha se desenhando antes), que, possivelmente, será a maior da história do capitalismo. Por isso mesmo, os países desenvolvidos estão colocando trilhões de dólares, na tentativa de amainar os seus efeitos. Se calcula que o governo da Alemanha já tenha comprometido cerca de 35% do PIB para a empreitada. Outros países da Europa, montaram planos com percentuais semelhantes de investimento previsto. Os EUA aprovaram o maior plano econômico da história, de quase dois trilhões de dólares — cerca de 10 trilhões de reais, uma quantia superior ao PIB brasileiro — para estimular empresas e famílias. O plano global dos EUA chegará a seis trilhões de dólares, se levar em conta outros quatro trilhões em empréstimo disponível por parte do Federal Reserve (banco central). O pacote prevê inclusive o pagamento de recursos diretamente aos cidadãos, medida que alcançara a maior parte da população dos EUA. Ao todo a ajuda direta aos cidadãos, poderá chegar aos 500 bilhões de dólares. Além disso, o plano negociado no Congresso Nacional prevê uma linha de crédito de 367 bilhões de dólares para pequenas e médias empresas, e um fundo no total de 500 bilhões para indústrias, cidades e Estados.
Os trabalhadores que forem demitidos[1] – e os pedidos de seguro desemprego dispararam na última semana – receberão o seguro-desemprego no valor habitualmente pago em seu estado durante quatro meses, mais um extra de 600 dólares. É que o tombo que estão esperando da economia estadunidense é muito grande: o banco Morgan Stanley calcula que no segundo trimestre o PIB norte-americano pode encolher 30%. Outras previsões mais otimistas, acreditam em uma queda de 15% da economia no período citado.
No Brasil o que foi negociado até agora para a população mais diretamente afetada pelas crises somadas foi muito pouco. A Câmara de Deputados aprovou projeto na semana passada, negociado com a direita no Congresso, que prevê pagamento de um auxílio emergencial aos mais pobres (Projeto de Lei 9236/17), no valor de R$ 600 mensais. O auxílio será concedido durante três meses para as pessoas de baixa renda afetadas pela crise sanitária. Para ter acesso ao benefício, além de uma série de outras exigências a pessoa deve ter renda familiar mensal de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou renda familiar mensal total (tudo o que a família recebe) de até três salários mínimos (R$ 3.135,00).
O valor negociado, R$ 600,00, é melhor do que nada (qualquer coisa é), mas é muito pouco. Uma cesta de alimentos, com 13 produtos essenciais para uma pessoa no mês de março, custa R$ 517,13 em Florianópolis (pesquisa divulgada hoje), praticamente o valor que será distribuído para os mais pobres, segundo o PL. Tem um problema adicional: o governo não tem encaminhado mesmo as ações que decide e divulga para a sociedade. O governo Bolsonaro em princípio é contra este tipo de medida. Portanto a possibilidade de serem criadas dificuldades para as pessoas obterem o recurso, é grande. Isto está acontecendo com o Bolsa Família: recentemente o governo congelou o benefício em 200 municípios pobres e a estimativa é que a fila já esteja em mais de 1 milhão de pessoas. Os brasileiros que estão na fila já tiveram seus dados checados, não têm nenhum problema técnico ou de qualquer outra ordem. São pessoas miseráveis, com filhos, que têm direito a ingressar no Programa. Elas não entram no Programa porque o governo não quer gastar com pobres.
Ao mesmo tempo em que segura o benefício aos famintos, o governo demostra extrema generosidade com os ricos. Um exemplo é a MP 927, editada na semana passada e que prevê o repasse aos banqueiros no montante de R$ 1,2 trilhão, que deve ser a maior transferência de dinheiro público ao setor privado, da história do país. Teoricamente, esses recursos seriam emprestados ao setor privado a juros mais baixos, visando melhorar as condições de investimento do setor produtivo. Mas qual o sentido de o governo subsidiar os banqueiros privados, para que estes disponham de mais recursos para a concessão de empréstimos, tendo a estrutura de bancos públicos federais? Este dinheiro todo está sendo colocado no sistema financeiro sem nenhuma contrapartida social. Por exemplo, os bancos estão demitindo fortemente há anos, trocando trabalhadores por máquinas, apesar dos lucros exorbitantes. A injeção do recurso poderia ter, no mínimo, como contrapartida, a estabilidade no emprego para os bancários. Os banqueiros, vale observar, representam neste momento o segmento mais capitalizado da burguesia: o lucro líquido dos 4 maiores bancos do Brasil com ações na Bolsa (Itaú, Bradesco, Banco do Brasil e Santander) cresceu 18% em 2019, na comparação com o ano anterior. Os ganhos acumulados chegaram a R$ 81,5, maior lucro consolidado nominal já registrado pelos grandes bancos na história do Brasil.
Esta seria de a hora de:
- Combater imediata e vigorosamente a fome, com uma política de guerra para atender os brasileiros que já estão sem o que comer;
- Amparar de várias formas o pessoal pobre, os que recebem o Bolsa Família, a grande massa de trabalhadores informais e os micros empresários;
- Fortalecer o SUS para suportar a sobrecarga que inevitavelmente virá com o agravamento da pandemia;
- Usar as reservas internacionais, de 346 bilhões de dólares, para atender as necessidades da população, garantindo por exemplo, o isolamento da população com uma política de renda mínima;
5.Aumentar o patamar da dívida pública para atender as necessidades da crise, como estão fazendo governos no mundo todo.
O Brasil tem condições técnicas e financeiras para realizar ações dessa envergadura. Todas as medidas para enfrentar a pandemia e a crise econômica são medidas coordenadas pelo Estado. Fica evidente também que que a pandemia é fundamental uma estrutura pública de saúde que dê conta de atender bem a população, seja no dia a dia, seja em momentos críticos de crises sanitárias. Mas não podemos nos enganar, o problema central não são as bobagens proferidas diuturnamente por Bolsonaro. A questão fundamental é o programa de Guerra contra a população, cuja natureza canibal está ficando bastante evidenciado com o advento da pandemia.
[1] As demissões estão ocorrendo em massa nos EUA. Os pedidos iniciais de pedido-desemprego aumentaram para 3,28 milhões na semana passada, contra 282 mil na semana anterior. Para se ter uma ideia, o recorde anterior de pedidos em uma única semana, foi em outubro de 1982, com 695 mil, segundo o Departamento do Trabalho dos EUA.
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José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
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