Por Paula Adamo Idoeta.
A crise econômica global já em curso por conta da pandemia do novo coronavírus está afetando principalmente os mais jovens — recém-entrados no mercado de trabalho ou prestes a entrar nele —, possivelmente deixando cicatrizes mais profundas até do que a crise financeira de 2008. O diagnóstico é feito pelo economista Stefano Scarpetta, chefe da divisão de emprego, trabalho e assuntos sociais da OCDE, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (órgão também conhecido como “clube dos ricos” e ao qual o Brasil aspira entrar).
A avaliação da OCDE é reforçada por dados recém-divulgados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estima que 1 em cada 5 jovens do mundo tenha tido que parar de trabalhar por culpa da pandemia.
Os que conseguiram se manter empregados tiveram sua jornada reduzida, em média, em 23%.
“A pandemia está impondo um choque triplo nos jovens”, afirma o relatório da OIT. “Não apenas ela está destruindo seus empregos, mas também interrompendo sua educação e treinamento e colocando enormes obstáculos no caminho dos que estão tentando entrar no mercado de trabalho ou trocar de emprego.”
Em entrevista à BBC News Brasil, Scarpetta, da OCDE, diz que existe o risco de se criar uma “geração perdida” de jovens profissionais, cujos efeitos podem ser sentidos ao longo de muitos anos, caso não haja intervenções positivas de governos e empresas.
“Para jovens, e vimos isso em crises passadas, choques como este (provocado pela pandemia) são particularmente danosos. Primeiro, porque os que já estão no mercado podem estar mais expostos a empregos precários, temporários”, explica Scarpetta.
E os que ainda estão se preparando para entrar no mercado de trabalho o farão em um período de pouquíssimas oportunidades.
“Nas pesquisas que fizemos durante a crise prévia (iniciada em 2008), percebemos que os três primeiros anos de entrada no mercado de trabalho são cruciais para as perspectivas futuras profissionais”, prossegue Scarpetta.
Na década passada, a taxa de desemprego entre os jovens chegou a ser mais que o dobro da taxa geral nos países mais afetados pela crise.
“Depois da crise financeira, muitos jovens perderam um, dois ou até três anos de trabalho. Desta vez, a crise pode ser ainda mais longa, então há o risco de perderem alguns anos por causa disso. (…) Muitos sequer se davam ao trabalho de procurar emprego, porque escutavam que não havia vagas para eles, então houve também um aumento no número de ‘nem-nem’ – jovens que nem estudavam, nem trabalhavam. Isso deixou uma profunda cicatriz.”
Dados de desemprego
Um dos dados atuais que mais impressionaram Scarpetta vem dos EUA: “em menos de dois meses, houve 36 milhões de pedidos de seguro-desemprego, um número que jamais havíamos visto em um período tão curto de tempo. A taxa de desemprego (americana) foi do patamar mais baixo já registrado para o nível mais alto. E isso não se limita aos EUA, vemos o mesmo em todos os países”.
No Brasil, que começava a ensaiar uma leve recuperação da recessão econômica, os dados coletados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que 1,2 milhão de pessoas adicionais entraram na fila do desemprego no primeiro trimestre de 2020.
Entre os jovens de 18 a 24 anos, o desemprego subiu de 23,8% (dado do último trimestre de 2019) para 27,1% — isso é mais do que o dobro da média nacional de desemprego, de 12,2%.
No Nordeste, o índice de desemprego entre jovens é maior ainda: afeta mais de um terço da população entre 18 a 24 anos.
“A crise econômica provocada pela covid-19 está atingindo a população mais jovem — especialmente mulheres — mais rápido do que qualquer outro grupo”, afirma, em comunicado, Guy Ryder, diretor-geral da OIT.
“Se não agirmos de modo imediato e significativo para melhorar sua situação, o legado do vírus pode permanecer (no mercado de trabalho) por décadas. Se a energia e talento (dos jovens) for escanteada por falta de oportunidades ou habilidades, haverá danos em nosso futuro e muito mais dificuldade em reconstruir uma economia pós-covid-19.”
‘Investir nos jovens tem bom custo-benefício’
Para Scarpetta, da OCDE, “este é um momento crucial para investir em capital humano, porque muitos jovens podem estar tentados a abandonar a escola e entrar no mercado de trabalho (para ajudar suas famílias). Mas acho crucial tentar mantê-los estudando”.
Ao mesmo tempo, diz ele, é preciso dar apoio aos jovens que acabaram de entrar no mercado de trabalho, com orientação sobre como se qualificar, mantendo programas de mentoria e aprendizagem e “combinar aprendizado no trabalho com educação para os que podem ter deixado a escola cedo demais”.
Caso contrário, defende Scarpetta, “podemos ter uma ‘geração perdida’, de jovens que entram no mercado de trabalho em um momento ruim e levam mais tempo para se recuperar disso”.
“Vimos isso no Japão nos anos 1990, quando eles tiveram uma década perdida: muitos recém-formados não conseguiram se empregar, acabaram migrando para empregos (precários) e, mesmo quando a economia se recuperou, nos anos 2000, eles não conseguiram encontrar bons empregos, porque as empresas preferiam contratar novos formandos. Gerou-se um estigma contra aquela geração, por ter passado muito tempo em empregos precários. Eram considerados de segunda classe.”
“Para todos (os trabalhadores), mas especialmente para os mais jovens, será preciso combinar apoio financeiro com ajuda para que continuem a investir em sua educação e suas habilidades, dar-lhes orientações. É claro que, para os que estão no mercado informal ou empregos precários, é mais difícil. Mas investir nos jovens mais carentes é um bom custo-benefício — é o melhor jeito de investir na geração futura”, prossegue.
“Eles podem não saber onde os empregos estão, ou de quais habilidades precisam para consegui-los. Talvez com um pouco de treinamento eles consigam. Não é só dar dinheiro, mas apoio.”
As aspirações dos jovens
O chefe do setor de trabalho da OCDE argumenta que momentos de ruptura como o atual tendem a acelerar mudanças que já estavam em curso no mercado de trabalho – como automação, informalidade, mais rotatividade dos trabalhadores, mais mobilidade de um emprego a outro e, para muitos, a necessidade de conciliar mais de um emprego ao mesmo tempo.
No Brasil, segundo o IBGE, a taxa de informalidade da economia chegou a 39,9% no primeiro trimestre de 2020 — na prática, o setor informal emprega 36,8 milhões de pessoas.
Para navegar em um ambiente de trabalho mais instável, em que muitos empregos são substituídos por máquinas ou algoritmos, a OCDE defende que os jovens tenham acesso desde a idade escolar a mentorias e orientações sobre as mudanças no mercado de trabalho.
Em um relatório prévio, de janeiro, feito com base em uma pesquisa com estudantes de 15 anos do mundo inteiro, a OCDE identificou que a maioria dos jovens sonha com um número limitado de carreiras, bastante parecidas às citadas por jovens entrevistados na mesma pesquisa oito anos antes, em 2000 —- entre elas, médico, advogado, policial, psicólogo, professor e arquiteto.
Embora sejam carreiras importantes, “é preocupante que mais jovens do que antes pareçam estar escolhendo seu trabalho dos sonhos a partir de uma pequena lista de ocupações populares e tradicionais”, afirmou em janeiro o diretor de educação da OCDE, Andreas Schleicher. “A pesquisa mostra que muitos adolescentes estão ignorando ou não têm conhecimento de novos tipos de trabalho que estão emergindo, sobretudo em razão da digitalização.”
O temor é que as aspirações dos jovens não necessariamente reflitam as necessidades futuras do mercado de trabalho — e que isso aumente sua dificuldade em se empregar.
Ensinar a aprender
Nesse contexto, prossegue Scarpetta, “é preciso dar orientações para os jovens em todos os níveis, desde o ensino médio, quando eles estão tomando decisões importantes sobre as áreas que os interessam. Eles precisam saber quais são as perspectivas sobre essas áreas e se precisam de um treinamento mais acadêmico ou técnico. E, para os que decidirem não buscar a educação superior, é possível que com um pouco de treinamento eles consigam entrar em setores que estejam abrindo vagas.”
Uma “mensagem importante”, conclui Scarpetta, é “ajudar os jovens a aprender a aprender”.
“Queremos que eles saiam da escola não apenas com boas habilidades, mas com a capacidade de adaptar essas habilidades, se precisarem. E continuarem a aprender ao longo da vida profissional.”
Essa habilidade será crucial para o ambiente de trabalho mais mutante, que fecha vagas que estão sendo automatizadas, mas exige mão de obra qualificada em outras frentes.
“Às vezes falamos de empregos como se eles fossem muito diferentes entre si. Não é verdade. Podemos tentar a transição de um emprego em declínio para outro em ascensão — às vezes, com um pequeno treinamento. O emprego pode ser completamente diferente, mas as qualificações, talvez não. Te dou um exemplo: caixa de banco é um emprego em declínio significativo, porque muitas de suas atividades estão sendo automatizadas. Ao mesmo tempo, o setor bancário está criando muitos empregos em cibersegurança. E muitas tarefas são semelhantes entre si. Com um pouco de treinamento, você consegue migrar de um para o outro. O problema é que muita gente não sabe disso”, diz Scarpetta.
“Isso serve para todos, mas particularmente para os jovens, que têm menos experiência de trabalho e que podem achar que ‘estudei, me formei e não há emprego para mim. Será que fracassei? Escolhi errado?’. Às vezes não, basta um pouco de orientação e treinamento. Isso pode ter um enorme impacto (quando a economia for retomada).”