Temer e Macri: identidade e pensamento muito em comum
Por André Barrocal.
Offshore do presidente argentino nas Bahamas tem ‘conexão brasileira’, mas investigação sobre lavagem não consegue informações no Brasil.
Quando foi a Buenos Aires, em outubro, para a primeira visita oficial a um chefe de Estado, Michel Temer comentou ter mais razões para estar ali do que os “laços históricos” entre Brasil e Argentina. A “identidade” e “o pensamento muito em comum” com o presidente Mauricio Macri pesavam.
De fato, sobra afinidade à dupla e não se trata aqui apenas das opções políticas. Enquanto Temer vê seu governo constantemente importunado pelos desdobramentos da Operação Lava Jato, Macri sofre com investigações sobre lavagem de dinheiro e ocultação de bens desde o estouro, em abril, do escândalo internacional chamado de Panama Papers. Um episódio, no caso do comandante da Casa Rosada, com uma conexão tupiniquim que o Brasil de Temer não parece interessado em desvendar.
Os Panama Papers reúnem milhões de documentos que expõem a clientela doMossack Fonseca, escritório especializado em criar empresas em paraísos fiscais para quem está disposto a sonegar impostos ou esconder dinheiro de origem duvidosa. Herdeiro de uma grande fortuna, Macri aparece na lista como acionista de uma offshore aberta nas Bahamas em 1998. Seus sócios na Fleg Trading eram o pai, Francisco, e o irmão, Mariano. O presidente argentino defende-se desde o início com o argumento de nunca ter sido acionista da offshore, só “ocasionalmente” dirigente, e que a firma não movimentou dinheiro. Em suma, a empresa não operou, logo, não praticou ilícitos. Se por acaso tiver cometido, Macri não teria culpa.
A descoberta da conexão brasileira surgiu graças ao próprio presidente argentino. Segundo ele, a Fleg havia sido criada para tocar no Brasil um dos negócios da família, o Pague Fácil, de cobrança eletrônica. A família operou aqui o sistema de cobrança entre 2001 e 2002, por meio de outra empresa do grupo, a Global Collection. No processo em andamento na Argentina, surgiram pistas de que Macri e família teriam usado a companhia das Bahamas para injetar no Brasil quase 10 milhões de dólares de procedência desconhecida. O dinheiro chegou à Global, administradora do Pague Fácil, por meio de outra empresa do grupo, a Owners do Brasil Participações.
Diante das pistas, o juiz do processo, Sebastián Casanello, do 7º Juizado Criminal e Correcional Federal, localizado em Buenos Aires, resolveu pedir informações ao Brasil. A Causa 3899/2016, que apura se Macri lavou dinheiro e omitiu bens em suas declarações de renda, está sob segredo de Justiça, mas CartaCapital teve acesso ao pedido. É de 9 de maio. Dirige-se a “organismos governamentais” brasileiros e a três empresas, Fleg, Global e Owners, todas com filiais em território nacional. Requer dados societários das companhias (nome de sócios, dirigentes e representantes) e também bancários (números de contas de pessoas físicas e jurídicas vinculadas às três firmas, bem como os registros de saques, depósitos e transferências).
Juíz Casanello, empenhado em desvendar as transações nas Bahamas do presidente argentino
O despacho judicial contém uma solicitação específica sobre o presidente argentino. Que seja informado se, em relação às três empresas, “Mauricio Macri figura ou figurou como acionista”. Em caso afirmativo, que sejam apontadas “pontualmente as faculdades expressas outorgadas ao citado”, isto é, os poderes que tinha e exercia.
Casanello considera as informações requeridas de “inestimável importância” para as apurações, mas seu pedido mereceu até agora uma resposta inútil, via e-mail. O Brasil quer entender melhor a curiosidade do magistrado, sobretudo em relação àqueles dados protegidos por sigilo, como o bancário. É o que relata um informe encaminhado no início de agosto ao juiz por Juan Gasparini, da Divisão de Assistência Jurídica Internacional em Matéria Penal do Ministério das Relações Exteriores argentino.
O informe diz repassar a posição da “Autoridade Central” brasileira. Refere-se, provavelmente, ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, uma repartição do Ministério da Justiça. O DRCI é a “Autoridade Central” nacional em todos os casos de cooperação externa decorrentes da Convenção Interamericana de Assistência Mútua em Matéria Penal, um tratado de 1992 da OEA invocado por Casanello para requerer as informações. Na Argentina, a autoridade em situações similares é o Ministério das Relações Exteriores, daí ter sido a chancelaria o canal do pedido destinado ao Brasil e da vaga resposta.
Procurado por CartaCapital, o DRCI não quis se pronunciar. Diz que, por força de sigilo, não pode sequer confirmar a existência de pedidos de colaboração, para não pôr em risco as investigações. O órgão é comandado, desde 2010, último ano do governo Lula, pelo delegado da Polícia Federal Ricardo Saadi. Seu atual superior é o ministro Alexandre de Moraes, tucano como o chanceler José Serra, razão para imaginar o tamanho da disposição do primeiro escalão em Brasília para levar adiante embaraços ao mandatário estrangeiro com quem Temer se “identifica”.
De acordo com o antecessor de Moraes no cargo, o subprocurador-geral da República Eugênio Aragão, é possível para os investigadores argentinos avançar nas apurações sem depender da boa vontade do governo brasileiro. Ex-coordenador da área do Ministério Público responsável por cooperação internacional, atualmente professor de Direito Internacional Público, Aragão explica que o MP argentino pode solicitar auxílio diretamente ao equivalente brasileiro por meio de uma rede colaborativa informal, os “pontos de contato”.
O promotor que denunciou Macri à Justiça, Federico Delgado, da 6ª Promotoria Criminal e Correcional Federal, não tem dúvidas de que o presidente argentino lavou no Brasil dinheiro de natureza incerta proveniente das Bahamas. Nem se surpreendeu com a anticlimática reação brasileira, como se vê em um documento enviado a Casanello em 24 de agosto. “As respostas dos Estados requeridos se inserem na lógica habitual desse tipo de trâmites. Afirmam como princípio que estão dispostos a colaborar e depois solicitam mais informação. Dados que em geral não existem no processo e que, se existissem, não haveria por que mandar requerimentos.”
No documento, Delgado afirma estar seguro a respeito da rota financeira Bahamas-Brasil utilizada por Macri e seus parentes para branquear capitais. “A relação entre Owners, Fleg e Socma Americana realizou-se no Brasil e cristalizou-se em um tempo relativamente curto. Durante o mês de setembro de 1998.” Segundo ele, o mandatário argentino e sua família injetaram, na ocasião, 9,3 milhões de dólares nas filiais, equivalente a 11,3 milhões de reais à época. O dinheiro teria saído das Bahamas (Fleg) e entrado nos cofres de uma segunda empresa do grupo, a Socma, sediada na Argentina. Pretexto da transferência monetária: a venda à Fleg pela Socma de suas cotas em uma terceira firma de propriedade dos Macri, a Owners do Brasil, de matriz paulista.
Com o dinheiro recebido da Fleg pela transação, diz Delgado, a Socma fez aportes em três firmas brasileiras. Em 22 de setembro, repassou 1,892 milhões de reais à Partech Unnisa. Em 1º de outubro, 5,539 milhões à Partech Ltda. E, em 21 de outubro, 3,417 milhões à Itron Brasil. O valor somado é bem próximo daqueles 11,3 milhões pagos pela Fleg à Socma.
Conhecer a criação da Itron no Brasil talvez elucide o pouco empenho de Brasília no caso. São muitos os interesses empresariais e políticos a mesclar-se. Para instalar a empresa, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, os Macri procuraram sócios locais, narra o livro Uma História Exitosa – O Caso Itron, lançado em 2000 por um antigo executivo do grupo, Orlando Salvestrini. Um dos corações conquistados foi o de Otávio Azevedo, da empreiteira Andrade Gutierrez, recém-condenado à prisão pela Lava Jato por corrupção e lavagem. Na eleição de 2014, a construtora entregou 1 milhão de reais em dinheiro sujo para o PMDB repassar a Temer. Azevedo contou a história à Justiça Eleitoral em setembro, embora tivesse afirmado que os recursos eram para o PT. Há provas de que o repasse tinha Temer como destinatário, resta saber se Azevedo mudará a versão.
De volta à Argentina. As investigações judiciais tentam provar as ligações de Macri com a Fleg. Caso fique demonstrado que os 9,3 milhões de dólares saíram do Caribe para o Brasil, a missão será descobrir a origem da bolada. Criminosa? O vínculo do presidente com a Fleg parece evidente, embora Macri negue. Documentos mostram que o escritório Mossack Fonseca criou a companhia em 31 de março de 1998, com um capital inicial de 5 mil dólares. Mauricio Macri estava na lista dos sócios, na condição de vice-presidente. Seu pai, Francisco, era o presidente e seu irmão Mariano, o secretário.
Essa composição societária inicial vigorava quando ocorreu a injeção suspeita de 9,3 milhões de dólares no Brasil. Só mudaria em 15 de outubro daquele ano. É o que mostra a cópia de uma papelada enviada à Justiça por um advogado do pai de Macri, Julio Cesar Rivera, para integrar outro processo nascido após os Panama Papers, a Causa 20358/2016, instaurada no Juizado Civil 104. O documento deveria servir para a família se desvincular da Fleg, mas conseguiu produzir um efeito oposto, ao reforçar o elo dos Macri com a “conexão brasileira” das investigações.
Para aprofundar as apurações sobre o presidente diante da falta de empenho do país vizinho, o promotor Delgado sugeriu ao juiz Casanello que acionasse os registros migratórios para descobrir se Macri, seu pai e seu irmão estiveram no Brasil à época dos acontecimentos. Em 6 de novembro, o jornal argentino Perfil, um dos raros interessados em apurar o enrosco do chefe da nação, noticiou que Mauricio e Francisco fizeram um bate-e-volta a São Paulo entre 11 e 12 de agosto de 1998, conforme informes migratórios. Um mês antes, portanto, da injeção dos 9,3 milhões de dólares via Fleg, que possui uma filial aqui desde 2002, com CNPJ ativo na Receita Federal.
A Owners do Brasil, destino final do dinheiro de natureza ignorada mandado das Bahamas, também tem CNPJ ativo na Receita. A empresa foi aberta em São Paulo em 1995, com sede na Avenida Ipiranga, número 324, região central da cidade, e capital inicial de mil reais. Os sócios principais eram duas firmas da família Macri, a Socma Americana e a Grumafra, essa última posteriormente rebatizada de Socma SA. Registros atuais da Junta Comercial paulista alimentam a desconfiança a respeito da lavagem de dinheiro descrita pelo promotor Delgado.
Em 10 de novembro de 1995, a Socma injetou na Owners o valor de 11,3 milhões de reais, mesma quantia recebida em 1998 por ter vendido sua fatia na empresa à Fleg. Esta surge como sócia da Owners em 3 de novembro de 1998, poucas semanas depois de selar o negócio com a Socma. Até 3 de março de 2007, a Socma mantinha Mariano Macri como seu representante na Owners.
O processo conduzido por Casanello mirava inicialmente a lavagem de dinheiro, mas ampliou o foco e incluiu “omissão maliciosa” de bens à Receita, outro exemplo de que, quando o presidente e seus defensores falam, pior fica. Graças a informações dadas pelo chefe de gabinete de Macri, Marcos Peña, a uma deputada, Elisa Carrió, soube-se que o patriarca Francisco declarou ao Fisco possuir, entre 1998 e 2005, ativos no valor de 1,950 mil dólares da Fleg. Dúvida óbvia: se a empresa tinha capital de 5 mil dólares, a quem pertenceria o restante (3,050 mil dólares)? Aos irmãos Mauricio e Mariano, apesar de uma nota oficial do governo argentino dizer que o presidente “nunca teve nem tem participação no capital dessa sociedade”?
CartaCapital pediu esclarecimentos ao presidente Macri sobre o caso Fleg, via embaixada argentina, mas não obteve resposta até a conclusão desta reportagem, na noite da quinta-feira 17. Os adversários do mandatário reclamam da lentidão brasileira, entre eles o deputado Darío Martínez, um dos que se empenham em abastecer as apurações judiciais com munição. “A Justiça argentina espera, desde 9 de maio, que o governo do Brasil responda. Que o governo da Argentina tente ocultar é lamentável, mas tem sentido, porque está protegendo a si mesmo. Agora, por que faz isso o governo do Brasil eu não sei.” Seria uma questão de afinidade?
Foto: Beto Barata/PR
Fonte: Carta Capital