Palestina, uma história milenar que o sionismo tenta apagar. Por Francisco Fernandes Ladeira.

Por Francisco Fernandes Ladeira.

Em seu processo de limpeza étnica da Palestina, o Estado de Israel não almeja apenas remover a população autóctone daquela terra; busca também reescrever a sua história. Ou seja, além do genocídio, há um “memoricídio”. Assim, foi criado o mito de que a nomenclatura Palestina foi cunhada somente em 135 d.C., pelo imperador romano Adriano, em referência aos filisteus, como uma forma de humilhar o povo judeu.

Ainda no negacionismo histórico sionista, há a falaciosa narrativa de que o nacionalismo palestino surgiu “do nada”, no início do século XX, e que os palestinos seriam nômades, sem vínculos identitários com sua terra natal. No máximo, se identificariam com a grande nação árabe. Portanto, nessa lógica distorcida, podem migrar da Palestina para outras nações irmãs, como Síria, Iraque e Egito.

No entanto, como esclarece Nur Masalha, no livro “Palestina: quatro mil anos de história”, o nome Palestina foi documentado pela primeira vez no final da Idade do Bronze, há cerca de 3200 anos; e, entre 450 a.C. e 1948 d.C., foi usado para descrever uma região geográfica entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão e várias terras adjacentes.

Já as primeiros informações históricas do povo palestino, como aponta o título da obra de Masalha, remetem a quatro mil anos, quando ocorria a urbanização da região da Palestina, com a formação de grandes centros urbanos, com palácios e fortificações, acompanhada pelo surgimento de um alfabeto semita. Além disso, evidências arqueológicas apontam que a moderna cidade de Jericó – fundada pelos cananeus, um dos povos dos quais os palestinos descendem – é uma das mais antigas cidades continuamente habitadas do planeta (desde 9.000 a.C.).

Para corroborar seus argumentos, Masalha recorre a uma ampla gama de fontes, incluindo evidências materiais, topônimos, mapas, moedas produzidas na Palestina e inscrições e textos egípcios, assírios antigos e gregos clássicos.

A história da Palestina tem múltiplos “começos” e a ideia da Palestina evoluiu ao longo do tempo desses múltiplos “começos” para um conceito geopolítico e uma política territorial distinta. Desse modo, é importante esclarecer que o antigo termo Palestina e a moderna nacionalidade palestina não são idênticos ou sinônimos; o primeiro existe há milênios (como dito), enquanto a segunda foi o produto do surgimento do nacionalismo palestino moderno.

Em outros termos, a Palestina, como unidade geopolítica, próximo ao que hoje conhecemos como um país, existiu por mais de três milênios e essa realidade histórica produziu diferentes formas de consciência e identidade territorial (o que nos ajuda a entender o porquê de os palestinos, apesar das inúmeras investidas de Israel, ainda permanecerem em suas terras).

Mesmo quando estive sob domínio de diferentes povos alhures, a região da Palestina teve autonomia política, cultural, administrativa e comercial. Em suma, soberania prática real.

A Filístia, do final da Idade do Bronze e da Idade do Ferro, foi dominada pelos filisteus e evoluiu para uma entidade geopolítica com fortes laços comerciais internacionais, uma economia distinta e um ambiente urbano sofisticado.

Em 135 d.C., o imperador romano Adriano criou a província “Síria Palestina”. Porém, conforme adverte Nur Masalha, a concepção romana (e de Adriano) da Palestina não tinha nada a ver com nenhuma narrativa bíblica ou com a narrativa do Antigo Testamento dos “filisteus”. O imperador escolheu o nome de Filístia, pois era a designação geopolítica mais comum para a Palestina usada por geógrafos e historiadores.

Depois que os bizantinos cristãos substituíram os romanos, a Palestina experimentou um período de crescimento e prosperidade. A antiga Síria Palestina foi dividida em três: Palestina Prima (região central), Palestina Secunda (grande parte da Galileia) e Palestina Salutaris (no sul e sudeste). A partir de meados do século V em diante, as “Três Palestinas” foram unidas sob um único Patriarcado independente e totalmente palestino de Aelia Capitolina (Jerusalém), com jurisdição religiosa oficialmente reconhecida sobre as “Três Palestinas”.

No período de domínio árabe muçulmano, a província administrativa de Filastin manteve sua prosperidade econômica, devido ao desenvolvimento de seu próprio sistema monetário e do comércio internacional de longa distância com a Índia, China e Europa. Este contexto também foi marcado pela tolerância religiosa e autonomia cultural para as comunidades cristãs e judaicas.

Sob o Império Otomano, “Palestina” foi usada tanto como um termo geral para descrever o país predominantemente árabe muçulmano, quanto como um termo social e cultural entre os povos indígenas da Palestina. Nessa fase, a Palestina de maioria muçulmana havia desenvolvido uma forte tradição de jurisprudência árabe islâmica, um dos requisitos mais cruciais de qualquer senso de política autônoma.

De acordo com Nur Masalha, o fato de importantes juristas e escritores muçulmanos palestinos usaram o termo Filastin, para se referir ao “país” como Palestina, ou ao “nosso país”, sugere que a noção territorial da Palestina ainda estava muito viva na memória social e cultural muçulmana palestina ao longo dos períodos mameluco e otomano inicial.

Em meados do século XVIII, o regime otomano, profundamente enfraquecido, teve que se conformar com as novas realidades de poder na Palestina, um país que permaneceu apenas nominalmente parte do Império Otomano (isto é, com uma soberania real).

No final do século XIX, surgiu uma nova consciência territorial na Palestina e a noção moderna de Palestina, como Estado-Nacional (antes do surgimento do sionismo político). Porém, Masalha lembra que “esse movimento [palestino] também foi estimulado pelas atividades de assentamento e compra de terras sionistas no período anterior à Primeira Guerra Mundial”.

Por outro lado, os argumentos israelenses para justificar que seus cidadãos seriam os legítimos descendentes dos antigos habitantes da Palestina são baseados somente em escrituras religiosas e nas falsificações históricas do sionismo. Logo, sem evidências concretas.

Após 150 anos e milhares de escavações bíblicas realizadas dentro e ao redor da Cidade Velha de Jerusalém, ainda não há qualquer evidência material ou empírica para o “Reino Unido de Davi e Salomão” e outras mega-narrativas do Antigo Testamento, como o “Êxodo” e a “conquista de Canaã por Josué”. No entanto, essas tradições imaginadas são ensinadas nas escolas israelenses como acontecimentos históricos.

Ainda sobre o sistema educacional sionista, a exclusão da Palestina histórica de mapas não foi projetada apenas para fortalecer o estado de Israel, mas também para consolidar o mito do “elo ininterrupto” entre os dias dos “israelitas bíblicos” e a Israel moderna.

Contudo, os antigos “israelitas” não eram uma raça ou uma etnia – mas uma comunidade de fé. E no judaísmo pós-exílico, e por muitos séculos, ser judeu significava pertencer a uma comunidade de fé, a fé judaica. No final do século XIX, com o sionismo, e sob o impacto das teorias raciais e do darwinismo social, os judeus europeus passaram por um processo de “semitização”, sendo considerados como uma etnia, uma identidade racial.

Também é fundamental destacar que, antes do movimento que criou o Estado de Israel, os membros da minoria judaica de língua árabe da Palestina eram parte integrante do povo palestino e de sua língua, cultura e herança. “Hoje, os judeus árabes do Iraque, Marrocos e Iêmen, juntamente com os judeus falasha de língua amárica da Etiópia e os judeus russos, alemães e poloneses, são todos tratados como tendo uma única etnia, se não uma única raça, pelo regime sionista israelense”, escreveu Nur Masalha, em seu livro “Palestina: quatro mil anos de história”.

Enfim, como se pôde perceber, os palestinos (colonizados) não são apenas o lado certo da história, em seus antagonismos com os colonizadores israelenses. Eles são, literalmente, a própria história da Palestina.

Francisco Fernandes Ladeira é Doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Licenciado em Geografia pela Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac). Especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre em Geografia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

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