“Palestina livre, mulheres livres”

Mulheres palestinas protestam em Ramala, setembro de 2019. Foto: Ta’lat

Por Soraya Misleh.

Suas vozes ecoaram às ruas da Palestina ocupada e na diáspora, em uníssono, desafiando a fragmentação de sua sociedade há 72 anos (desde a Nakba, a catástrofe palestina com a criação do Estado de Israel em 1948 mediante limpeza étnica planejada) e inspirando a luta das mulheres em todo o mundo. Sem poderem se encontrar em sua própria terra, diante do apartheid israelense, extrapolaram as fronteiras coloniais, a partir do chamado: “Palestina livre, mulheres livres.” “Não há honra no assassinato.”

A ação, articulada pelo recém-criado movimento feminista palestino Tal´at, se deu a partir de agosto de 2019, em protesto pelo assassinato da jovem Israa Ghrayeb por familiares. Aos 21 anos de idade, ela é uma das dezenas de vítimas de feminicídio em sua terra ocupada por Israel no ano – os números variam de 18 a 34, a depender das fontes pesquisadas. O movimento, capitaneado por jovens mulheres, ganhou o mundo e arrancou mudanças numa arcaica lei que dificultava a punição para casos como esse, sob o manto de “crimes de honra”. Nas redes sociais, a hashtag “Somos todos Israa” esteve entre as principais no período.

A visibilidade internacional, tão importante para denunciar e exigir o fim do feminicídio, infelizmente nesse caso, contudo, também trouxe distorções. Veio acompanhada de postagens e notícias que reproduziam desconhecimento, falsos estereótipos e caricaturas sobre as mulheres palestinas e árabes em geral, particularmente sobre as muçulmanas.

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A resposta vem de Hala Marshood e Riya Alsanah, jovens que integram o Tal´at, em artigo de sua autoria publicado em fevereiro último no site da associação Europe Solidaire Sans Frontières: “Desafiando os estereótipos racistas e orientalistas, as mulheres do Oriente Médio e da região do Norte da África estão na vanguarda da luta pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária. (…). Feministas em todo o mundo estão incorporando e articulando movimento que vê a opressão sistemática e estruturalmente enraizada no capitalismo, cruzando-se com raça, sexualidade, colonialismo e ambientalismo. Em suma, um feminismo que vai além das demandas baseadas no gênero individual, instando-nos a lutar por um mundo mais justo e equitativo para todos. Tal’at faz parte dessa tradição feminista revolucionária.”

E acrescentam: “Nosso movimento é moldado por nossa experiência de mais de sete décadas de violência colonial israelense. Como povo, somos despojados de nossos direitos e necessidades mais básicos. (…) Essa realidade nos obriga a analisar as experiências de violência – em suas diversas formas – como uma questão social e política que deve ser tratada na raiz e coletivamente (…).”

Feminismo anticolonial

Como expresso pelas jovens ativistas, a resistência das mulheres palestinas explicita ao mundo que elas não estão alheias às lutas anti-imperialistas, anticoloniais. Não são submissas por natureza, uma massa absolutamente uniforme escondida atrás de véus que lhe são impostos, como geralmente a mídia hegemônica as apresenta – e parte do movimento feminista no “Ocidente” corrobora, ao fundar-se em estereótipos.

Sob o manto de que tais mulheres precisam ser salvas de sua sociedade e cultura natais, acaba por servir à dominação colonial. Um feminismo liberal que não enxerga a relação entre exploração e opressão de gênero. Que enxerga necessariamente um símbolo da opressão no véu islâmico (que apenas muçulmanas usam – e nem todas). O problema não é seu uso, mas sua imposição.

A ideologia que permeia essas ações contrapõe um “ocidente” de civilizados e pacíficos a um “oriente” de bárbaros e violentos por natureza, como denuncia o intelectual palestino Edward Said (1935-2003) em sua obra “Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente”.

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De acordo com essa representação, como povos atrasados, não podem se autogovernar, devem ser temidos e, portanto, controlados. Ou seja, colonizados. Contra tal caricatura, na Palestina e no mundo árabe como um todo, insurge-se o chamado “feminismo anticolonial”, que trava a luta contra a opressão machista e a colonização simultaneamente. Considera a emancipação de gênero inseparável da libertação da Palestina. Critica e desconstrói as representações orientalistas, reducionistas e generalistas, e preenche o vácuo de um movimento que desvia o olhar para as relações de poder que são fundantes à opressão de gênero. Parte da desconstrução proposta pelo feminismo anticolonial – que se coaduna com vertentes como os feminismos antirracista e islâmico – é resgatar o protagonismo das mulheres árabes e muçulmanas na História.

Linha de frente

Como aponta a feminista egípcia Nawal El Saadawi, em “A face oculta de Eva – As mulheres do mundo árabe”, foram elas pioneiras nos protestos contra os primeiros assentamentos sionistas ao final do século XIX – a serviço da colonização de terras e conquista do trabalho, que integravam o projeto sionista de limpeza étnica para constituição de um estado exclusivamente judeu na Palestina (Israel). Já em 1903, período que marca o começo da segunda onda de imigração sionista, criaram uma associação de mulheres.

Nos anos 1920, sua atuação se fortaleceu e formaram vários comitês populares para articular protestos e demais ações de desobediência civil, bem como garantir auxílio a feridos em manifestações. Em 1921, constituíram a primeira União de Mulheres Árabes-Palestinas, que organizou protestos contra o mandato britânico, a colonização sionista e a Declaração Balfour – em que a Inglaterra garantia a constituição de um lar nacional judeu em terras palestinas.

Das letras aos campos de batalha, as mulheres utilizam as armas de que dispõem. Há 73 anos, Nariman Khorsheed (1927-2014) fundou na cidade de Yafa – juntamente com sua irmã Moheeba – a primeira brigada feminina palestina, denominada Al Zahrat al-Uqhuwan (Flores de Crisântemo), para lutar contra a expulsão pelas forças paramilitares sionistas de suas terras. Em 1948, surgiram outras brigadas femininas e inclusive um grupo misto, de 100 combatentes, liderado por Fatma Khaskiyyeh Abu Dayyeh. Na revolução palestina de 1936-1939 contra o mandato britânico e a colonização sionista – cujas causas e análise da derrota estão explicitadas por Ghassan Kanafani em seu livro “A revolta de 1936-1939 na Palestina” (Editora Sundermann)  –, ela esteve no comando do local de armazenagem das armas dos revolucionários.

No período, mulheres organizaram grandes marchas e comitês populares. Além de promoverem protestos, recolhiam fundos para assistência às famílias dos mortos e prisioneiros e auxiliavam no transporte de insumos básicos e armas. Nas aldeias, lutavam lado a lado com os homens para defender suas terras. Uma dessas heroínas é Fatma Ghazal, morta em combate no dia 26 de junho de 1936.

Já diante da consolidação do projeto sionista, em 1965, foi criada a União Geral das Mulheres Palestinas, vinculada à Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Ao final dos anos 1960 e início dos 1970, diversas mulheres partiram para a ação direta, diante da omissão internacional à violação cotidiana de direitos humanos e a expansão israelense, que em 1967 resultou na ocupação por parte dessa potência bélica de toda a Palestina histórica. A mais conhecida em todo o mundo é Leila Khaled. Então com apenas 24 anos, participou do sequestro de aviões em troca de prisioneiros políticos e colocou em evidência a causa palestina. Foi detida em uma das ações e saiu após outra operação do gênero.

Nas intifadas (levantes) de 1987-1993 e 2000-2004, novamente as mulheres foram às ruas. Na primeira, para se ter uma ideia, um terço das baixas era da parcela feminina. O número de mulheres detidas passou de centenas do início da década de 1970 para milhares nos anos 1980. Desde 1967, estima-se que 10 mil passaram pelas prisões políticas israelenses – e enfrentaram a tortura institucionalizada, com inclusive ameaças e violência sexual. Hoje são 41, incluindo jovens menores de 18 anos, de um total de cerca de 5 mil palestinos nos cárceres sionistas.

São heroínas desconhecidas e em sua maioria invisibilizadas pela história, como ocorre em todo o mundo, em todos os processos de luta. A opressão ocorre aqui e lá, a serviço de um projeto de dominação capitalista/imperialista. Elas – assim como todo o conjunto da sociedade palestina – precisam da solidariedade internacional ativa, não de “salvamento”.

Os movimentos feministas na região são anteriores aos dos Estados Unidos e da Europa, como nos conta a feminista egípcia Nawal El Saadawi em seu livro “A face oculta de Eva – As mulheres no mundo árabe”. Travam a dupla luta, contra a opressão machista e a colonização. Para que todas sejamos livres.

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Soraya Misleh, membro da Diretoria do ICArabe, jornalista palestino-brasileira, mestre e doutoranda em Estudos Árabes pela Universidade de São Paulo (USP). Autora do livro “Al Nakba – um estudo sobre a catástrofe palestina” (Ed. Sundermann).

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