Por Nara Lacerda.
Centenas de movimentos populares de todo o Brasil fazem parte de uma mobilização no Congresso Nacional pelo garantia de que a vacina contra à covid-19 tenha ampla distribuição. Entre essas entidades, está a Coalizão Negra por Direitos, que reúne 200 organizações, coletivos e outras iniciativas para promoção de ações conjuntas e de impacto político.
A adesão do grupo é justificada pelos dados alarmantes, que colocam as pessoas pretas como as maiores vítimas da covid-19 no Brasil. Essa população é a que mais morre em decorrência do coronavírus no país e a que menos tem acesso à vacinação.
“Nada nisso se justifica se a gente não estivesse em um país que vive uma política de morte direcionada a corpos negros”, explica a advogada Sheila de Carvalho, especialista em Direitos Humanos e integrante da Coalizão, em entrevista ao Brasil de Fato. “Quando não houve um investimento em defesa da saúde, em defesa da vida e em enfrentamento à pandemia, eles não fizeram já sabendo muito bem quem é que morreria mais”, pontua.
Um estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, da PUC-Rio, mostra que enquanto 55% de negros morreram por covid, a proporção entre brancos foi de 38%. Já uma pesquisa do Instituto Pólis aponta que a taxa de óbitos por covid-19 entre negros na capital paulista foi de 172/100 mil habitantes, enquanto para brancos foi de 115 óbitos/100 mil habitantes.
A desigualdade no acesso à imunização também é comprovada. Segundo reportagem da Agência Pública, 3,2 milhões de pessoas que se declararam brancas receberam a primeira dose do imunizante contra o novo coronavírus. Já entre os negros, esse número cai para 1,7 milhão.
Um manifesto assinado por 154 entidades da sociedade civil cobra compromisso do parlamento com a vacinação por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), a derrubada das barreiras de mercado e do monopólio de fabricação dos imunizantes e rechaça a compra de doses por parte da iniciativa privada, sem liberação da Anvisa.
Confira a íntegra da entrevista com a advogada sobre o tema.
Brasil de Fato: O que levou a Coalização a entrar nesse movimento a partir do ponto de vista do debate racial?
Sheila de Carvalho: A união de organizações e movimentos negros em torno dessa agenda de vacinação ocorre porque, hoje, é o mecanismo efetivo de sobrevivência do povo negro, a gente precisa que a vacina contra o coronavírus seja possível e acessível a pessoas negras, para que a gente consiga estancar parte do processo de genocídio dos nossos corpos. Desde maio do ano passado, o governo suspendeu a obrigatoriedade da coleta desses dados de marcadores étnico-raciais. Isso, por si só, já dificulta ter um dado preciso do quão letal é o coronavírus para as pessoas negras.
Quando a gente tinha os dados computados de forma adequada, o nível de letalidade estava cinco para um. Ou seja, uma pessoa negra no Brasil tinha cinco vezes mais chances de ser morta pelao coronavírus do que uma pessoa branca. Hoje, com essa defasagem de dados, a gente ainda vê que pessoas negras têm morrido mais pelo coronavírus do que pessoas brancas. Isso se dá por uma série de fatores, o principal deles é essa privação histórica de acesso ao direito à saúde.
Com isso, não só a gente tem uma dificuldade maior de ser atendido numa situação em que há contágio pelo coronavírus, como também as pessoas negras tem índices maiores de comorbidades, que fazem com que sejamos mais vulneráveis a um contágio mortal em relação ao coronavirus.
A gente também tem que somar a uma série de circunstâncias, de fatores econômicos e sociais da sociedade de hoje, que também possibilitam que a gente tenha maior contato com a contaminação. Dentre eles, a questão de quem está na linha de frente de serviços essenciais. Entregas, Uber, táxis, motoristas de ônibus, trabalhadores do setor da educação, do varejo, quem está na linha de frente disso?
Nós sabemos que são as pessoas negras que estão mais suscetíveis a ter esse trabalho precarizado, muitas vezes não registrado, no nível de informalidade. Um trabalho que não pôde ser cessado. E aí, quando a gente compara os dados das 400 mil mortes que, infelizmente, atingimos no Brasil, a gente vê que essas mortes tem se concentrado em regiões onde há uma maior população preta e uma maior população periférica.
Então é bem grave o que nós estamos vivendo e, por conta disso, a nossa única chance de sobreviver é que a gente tenha uma proposta de vacinação ampla. Quando eu digo ampla, é ampla mesmo, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Que todas e todos possam ter acesso a essa vacina.
Quais são os fatores que levam essa pressão popular ao legislativo?
Se deu por uma série de fatores, especialmente pelas tentativas que temos observado no âmbito do Congresso Nacional de privilegiar setores economicamente favorecidos ao acesso a esta vacina. Nós tivemos, em fevereiro deste ano, a possibilidade de que o mercado pudesse comprar vacinas, que as empresas pudessem fazer essa compra. Isso condiciona essa compra a doações para o SUS.
A ideia é que o SUS consiga cumprir um plano nacional de imunização, que vai considerar grupo de priorizados, que vai considerar, em uma fila, aqueles que têm mais riscos de morte e aqueles que têm menos risco de morte.
Só que a manobra de um grupo de empresários, com o aval do presidente da Câmara Federal Arthur Lira (PP), foi de tentar sustar essa obrigatoriedade, suspender a obrigatoriedade de doação das vacinas compradas pelo mercado para o SUS e fazer com que essas vacinas pudessem ser usadas exclusivamente pelo consumo privado, sem obedecer qualquer tipo de regra, de plano de imunização.
Pior que isso, que nós cidadãs e cidadãos, pagássemos essa conta, porque eles queriam que esse valor fosse abatido de impostos. Esse projeto foi aprovado com uma facilidade surpreendente no âmbito da Câmara Federal e foi encaminhado para o Senado.
Outro ponto central dessa nossa agenda por uma vacinação para todas e todos também tem relação com o poder econômico, que é em relação à necessidade de a gente ter o licenciamento compulsório da patente da vacina. Em termos populares a gente usar o termo quebra de patente.
Tecnicamente esse termo não está muito certo, por isso que a gente utiliza licenciamento compulsório, mas isso quer dizer que esse conhecimento da fabricação da vacina seja liberado para que outras empresas possam produzir a vacina para que a gente consiga atingir o número exato da demanda que a gente tem hoje por vacinação.
Essa disputa com o poder econômico está se dando no Congresso Nacional e a nossa mobilização consiste muito nesse dois projetos de lei: um que a gente quer vetar, que é fura fila das vacinas e um que a gente quer aprovar, do licenciamento compulsório, que foi aprovado no Senado e está indo para a Câmara.
A gente teve uma boa notícia, porque o presidente dos Estados Unidos se posicionou em relação à possibilidade da quebra da patente, outros países também têm tomado esse posicionamento, o que vai favorecer muito esse debate. Infelizmente não é essa postura que a gente está vendo dentro do nosso governo federal.
A percepção então é de que essa é uma luta por um direito básico, certo? O direito à saúde.
Tudo isso para garantir o primeiro e mais importante direito de todos que é o direito à vida. Não tem como esquecer isso. Estamos aqui em um processo de luta por direito. O direito à saúde é a única forma de conseguir garantir o direito à Vida. N precisaríamos estar passando por isso.
A CPI da Covid mostra que esse processo poderia ter sido evitado de inúmeras formas, inclusive a possibilidade do nosso acesso à vacinação. É muito importante lembrar que o Brasil só aderiu a iniciativa global da Covax Facility, que ia possibilitar esse acesso à vacinação, em setembro do ano passado, muito tardiamente em relação a outros países. Quando os países aderiram, eles tinham a possibilidade de definir ali qual era a cota da cobertura vacinal no país e o Brasil escolheu a menor das cotas, que era 10%.
Não fez o investimento em vacinação, não fez o investimento em políticas de contenção, não fez o investimento em políticas de cuidado e hoje a gente vive um caos sem precedente. Provavelmente, o Brasil será, se não o único, um dos únicos países que terá uma terceira onda. Nós já somos responsáveis pelas variantes que estão correndo o mundo, algo que poderia ter sido evitado se a gente tivesse adotado as políticas de isolamento, políticas de prevenção e lutado pela vacinação não tardia da nossa população.
A nossa taxa de vacinação é ainda muito baixa e é feita de uma forma desigual e racista. Quando a gente vê quem são as pessoas que estão sendo vacinadas no Brasil, a gente vê que há um déficit muito grande na comparação entre pessoas brancas e pessoas negras. No Brasil de hoje as pessoas brancas são duas vezes mais vacinadas do que as pessoas negras e são as pessoas negras que estão na linha de frente dos serviços essenciais, que têm a maior taxa de comorbidades e que têm o maior índice de mortalidade da covid.
Nada nisso se justifica se a gente não estivesse em um país que vive uma política de morte direcionada a corpos negros. Quando não houve um investimento em defesa da saúde, em defesa da vida e em enfrentamento à pandemia, eles não fizeram já sabendo muito bem quem é que morreria mais. Foi uma política do descaso, porque para eles essas vidas não valem, essas vidas são marginais. É importante que a gente lute pelo direito à vida e acredito que o nosso manifesto da sociedade civil, de vacina para todas e todos, tem esse condão. É uma articulação em defesa da vida acima de tudo.
O movimento também pretende atuar na busca pelos responsáveis por essa política de exclusão?
A nossa luta agora é pela responsabilização. A gente precisa responsabilizar aqueles que fizeram com que essa política de morte avançasse. A gente coloca, enquanto Coalizão Negra que a nossa luta hoje é contra violência, pelo pão e pela vacina. Olha que coisa mais bizarra que é o nosso nível de enfrentamento hoje, pão e vacina.
Porque, somado a tudo isso que foi gerado no âmbito da pandemia, a gente tem ainda a ascensão da fome no nosso país. Isso está tudo conectado com essa construção de política de morte. Temos que brigar contra esse poder econômico que quer lucrar em cima da vida, em cima do processo de genocídio que a gente está vivendo.