Por Lucia Helena Issa.
As imagens daquela noite em São Paulo ficarão tatuadas para sempre em minha mente. Estávamos em maio de 2017 e eu estava passando alguns dias no estado em que nasci, São Paulo, e na capital onde morei por alguns anos. Havia recebido o convite para jantar com amigos em restaurante italiano da Mooca e, quando saímos do local, vi pela primeira vez um padre se ajoelhando para alimentar um morador de rua, conversando com ele e distribuindo muito mais que alimentos, distribuindo esperança e resgatando vidas.
Naquele momento eu estava começando um trabalho voluntário, como católica, na Pastoral de Rua, no Recreio, aqui no Rio de Janeiro, e aquele seu gesto me tocou tanto que decidi me aproximar do padre assim que ele se levantou.
Seus olhos brilhavam de alegria e humanidade, conversamos por quase 15 minutos e jamais me esquecerei do que vi e ouvi naquela noite. Padre Júlio tem sido um dos motivos pelos quais continuo acreditando em parte da Igreja e lutando pelo legado cristão verdadeiro, o legado do acolhimento aos diferentes de nós, aos refugiados, aos indígenas, às mulheres que sofrem, às pessoas em situação de rua, o legado da luta contra as armas e contra o ódio religioso.
Esse é o único caminho possível para transformarmos o mundo, o caminho de uma teologia humana e de uma fé que seja filha da esperança e não do medo de um Deus étnico, que escolhe alguns enquanto amaldiçoa outros, um Deus anti-humano que jamais será o Deus em que acredito.
O exemplo de padre Júlio Lancelotti nos mostra que podemos, sim, lutar pela paz, pelo respeito a todos os humanos e a todos os grupos religiosos, e podemos fazer isso utilizando o próprio legado de Jesus, a parábola do Bom Samaritano, o cuidado com o outro, o amor pelas diferenças e a luta contra a hipocrisia dos vendilhões do templo, dos que sequestraram o cristianismo em nome de interesses financeiros e sede de poder.
Aprendi nos campos de refugiados e vendo a devastação causada pelas guerras que a única fé que quero ter é a fé libertadora e inclusiva, que se importa com a dor do outro, com a dimensão humana de 60 milhões de pessoas que tiveram suas casas e vidas bombardeadas por interesses nefastos e não por hipocrisias como “ vamos levar a democracia ao Oriente Médio”.
O único cristianismo possível é a hospitalidade ao outro, é o alimento que chega quando não há mais esperanças, é o exercício da empatia e da compaixão, palavra que, em latim, significa “sofrer com”.
O ataque covarde e virulento de pessoas como Jair Bolsonaro, que chegou a processar Júlio Lancellotti em 2018 e perdeu a ação, o ataque feito há poucos dias pela deputada de extrema-direita Janaína Paschoal, os ataques feitos por falsos cristãos como o ex-influencer Bernardo Kuster e seu mestre, Olavo de Carvalho, mostram apenas como o fascismo tem espalhado seus tentáculos no Brasil.
Uma desumanidade, a PM impediu a equipe do Padre Julio Lancellotti de levar alimentos para moradores de rua na Cracolândia. E ainda tem gente que se diz cristã mas prega ódio em vez de amor ao próximo, como a Janaina Paschoal, que atacou o padre. Falta um mínimo de solidariedade!
— Ivan Valente (@IvanValente) August 8, 2021
O tuite higienista em que Janaína Paschoal (PSL-SP) atacou o padre Júlio por “distribuição de alimentos” me envergonhou profundamente como católica, e deveria envergonhar o Brasil inteiro como nação.
A grande esperança deixada por esse episódio envolvendo a deputada foi a transformação de uma mensagem de ódio ao padre ter sido transformada em uma fonte de solidariedade, alcance e arrecadação para as ações humanitárias realizadas por ele!
Uma das seguidoras do trabalho de Lancelotti decidiu postar, como resposta ao ato da deputada de extrema-direita, o número do religioso em uma plataforma de pagamentos virtuais e transformou uma mensagem de ódio em um manancial de amor, doações, apoio e solidariedade.
Mesmo com todos os ataques e ameaças que tem recebido, Padre Júlio Lancelotti e nós todos que nos inspiramos nele, que lutamos pelo acolhimento ao outro e pelo resgate do legado de Jesus, começamos a ter algo a celebrar também.
Em 2020, mesmo com todas agressões virtuais e reais sofridas por ele, Júlio Lancellotti, pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, recebeu o Prêmio de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, concedido pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) de São Paulo. Em seu discurso naquela noite, o seguidor do legado de Cristo fez um discurso que me emocionou. Usando um boné preto com a bandeira da Palestina, falou sobre a solidariedade aos refugiados, aos negros e a todos os marginalizados.
“Estou de boné não por insolência. É uma homenagem aos zapatistas e à luta do povo palestino. Estou aqui em nome dos catadores, da patota da rua, dos negros, indígenas e quilombolas, dos mais perseguidos. São eles que estão aqui comigo”, diria um emocionado padre Júlio naquela noite.
Desde o ano passado, o Ministério Público de São Paulo investiga as muitas ameaças a ele, depois de receber a representação de várias entidades de direitos humanos. As intimidações não terminaram e continuam nos envergonhando profundamente. Há poucos meses, fotos da fachada de sua casa foram divulgadas em redes sociais, numa clara incitação à violência e a mais ódio.
O ódio alimentado por falsos profetas e fariseus dos templos nos entristece e nos envergonha, mas a esperança tem voltado a alimentar nossos sonhos de um Brasil mais justo, mais acolhedor com os povos originários dessa terra, um Brasil que não mate uma menina indígena de 13 anos, um Brasil que acolha com amor e empatia uma refugiada palestina que tenha tido os dois filhos mortos e sua casa destruída pelo exército israelense, um Brasil que acolha uma refugiada síria que teve sua vida devastada pela guerra, um Brasil em que um menino negro e especial não seja assassinado em um supermercado.
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