Por Rodolfo Lucena.
Já era noite, chovia, quando conheci Maria Zelzuita, com “z”, tendo por nome completo Maria Zelzuita Oliveira de Araújo, cozinheira por formação, camponesa por precisão, para dar estudo aos filhos. O mais velho tem todas as letras, a do meio vai fazer vestibular para direito, a caçula está na escola.
Sob a tenda improvisada, lona erguida em varões de galhos de arvore, madeira, com as laterais guarnecidas por folhas de palmeira, Maria cozinhava.
Comandava um batalhão de panelas gigantes, equilibradas sobre enorme chapa de ferro, aquecida por brasas, lenha e carvão, numa espécie de mal-ajambrado fogão a lenha para gigantes.
Seus comensais, porém, eram miúdos, ainda que muitos. Naquela noite chuvosa, mais de 300; em poucos dias, passariam de 500; no domingo, chegariam a mais de mil.
Estudantes adolescentes, jovens universitários, estagiários, pesquisadores, trabalhadores iniciantes, lavradores experientes, uma meninada alegre, agitada, colorida, com sotaques do sul e do nordeste, maneirismo do norte, gostos do centro-oeste, estilo do sudeste, todos participando de um encontro da juventude do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Celebravam a vida, mas não deixavam de lembrar seus mortos. Estavam na Curva do S, um perigoso trecho da rodovia PA-150, em Eldorado dos Carajás, sudeste do Pará. Ali, em 17 de abril de 1996, 19 trabalhadores sem terra foram chacinados a tiro, cacetada e facão; 69 saíram feridos, dois deles morreriam em seguida; centenas foram maltratados, perseguidos, humilhados.
Agora, quando o Massacre completa 20 anos ainda com os criminosos impunes –dos 155 policiais envolvidos, apenas dois comandantes foram condenados–, a juventude sem terra se reúne ali para discutir política e organização, estudos e luta pela terra.
Trata-se de um acampamento pedagógico, que leva o nome de Oziel Alves Pereira. Ele foi um dos assassinados no massacre, o mais jovem dos mortos.
Maria Zelzuita, 52, estava lá quando Oziel, de 17 anos, foi torturado e morto.
“Era uma casa de palha, essa mesma aí, que os meninos estão arrumando, agora é de tijolo. Estava cheia de mulher e cheia de criança. A Mariza Romão, uma repórter que estava acompanhando o movimento, tomava conta da casa. Pedia pelo amor de Deus para eles não entrarem que só tinha mulher e criança. Eles não respeitaram. Eles entraram. Invadiram a casa.”
O tal “eles” a que Zelzuita se refere são os policiais, chegados em vários ônibus para atacar os sem terra que interrompiam a estrada. Milhares de camponeses, dois mil segundo alguns registros, mais de três mil de acordo com outros, haviam começado dias antes uma caminhada com destino a Marabá, a cidade mais importante da região. Iriam até Belém, se necessário fosse, na luta por um pedaço de terra. Cansados e com fome, pararam na Curva do S.
A camponesa cozinheira continua seu relato.
“Fizeram as mulheres saírem, deitarem no asfalto com as crianças com a cara no chão. Deram cinco minutos para nós corrermos de lá. Elas correram. Foi a hora da tortura do Oziel. Puxaram pelos cabelos. Começaram a gritar palavra de ordem nossa. “Grita a palavra de guerra de vocês!”, eles mandavam. Nós gritávamos. Quando nós gritávamos, eles torturavam.”
“Eles gritavam sempre MST!, reforma agrária!, sempre ele estava falando as palavras de ordem. Quando nós saíamos na marcha, o Oziel falou assim: “Aconteça o que acontecer, eu nunca vou abandonar o meu povo”. Ele não saiu do meio da fila. Ele não correu. Mataram ele.”
Nascida em Teresina em abril de 1964, Zelzuita saiu do Piauí ainda adolescente. Foi buscar vida melhor no Maranhão, mas a dureza ainda era grande, não tinha como se sustentar. Entrou no Pará sonhando arranjar emprego e dar mais conforto para os pais.
“Morei em sítio em Marabá, fui para Belém, trabalhei dois anos em Belém, voltei para cá de novo. No final de 1993, mudei para Eldorado. Fui trabalhar em barraca de pinhão na fazenda Peruano, onde agora tem o assentamento Lourival Santana.”
Como muitos outros, conheceu o movimento dos trabalhadores rurais quase por acaso.
“Um dia vim para a cidade de Eldorado, na prefeitura, buscar remédio para meu menino, que estava doente, ele tinha seis meses na época. Quando cheguei, vi aquela multidão de gente, tudo de vermelhinho. Não sabia o que era. Falei com uma amiga, “Dona Mariquinha, o que significa o pessoal com aqueles pedacinho de pano vermelho?”; “Maria, ali é o pessoal do Movimento Sem Terra”; “O que significa Movimento Sem Terra?”; “O pessoal que faz cadastro, o pessoal ganha a terra, ocupa a fazenda, é mais ou menos assim.” Foi o que ela me falou.
O tempo passou. Aconteceram outras reuniões, Zelzuita acabou participando de uma delas. Fez seu cadastro. E se entregou à luta pela terra. A ocupação de beira de estrada durou meses, mudou várias vezes de local.
“Foi no Trinta, em Curionópolis. Teve uma reunião no dia cinco de novembro de 1995, foi quando começou o nosso acampamento. Dali, à noite, amanheceu o dia em 1996, a gente já foi para Cofopac, um local depois do Trinta. Bem pegado em Trinta. Nós passamos quatro meses. Dia cinco de março nós mudamos para Formosa, já era 1996. Passamos o mês de março todinho em Formosa, foi onde surgiu a marcha. Em abril. No dia nove, saímos do acampamento Formosa, para o Curionópolis, para a gente dar continuidade à marcha. Dia 08 de março meu menino adoeceu. Esse um que estava com seis meses quando eu conheci o movimento. Nessa época ele já estava com 3 aninhos completos.”
Vanderlei, o garoto, ficou com febre, foi parar no hospital. Ao meio-dia de dez de abril, conta Jezuita, ele sentou na cama do hospital, falou assim: “Mãe, nós vamos morrer. Vamos porque nós estamos lutando por uma terra nossa, ter onde morar”. Até hoje a cozinheira se admira: “Uma criança de três aninhos falando uma coisa dessas!”
Não deu ouvidos ao filho, que deixou protegido enquanto seguia de volta para a marcha.
“Nós acampávamos na beira da estrada, preparava a comida. Chegamos aqui dia 15 de abril, meio-dia, o prefeito que era o Vicente Correia, recebeu a gente. Recebeu por receber. Por que gostar assim mesmo não gosta, a gente sabe. A gente desceu lá para cá, acampamos, nós paramos, uns três dias. Dia 15, na parte da tarde, ele foi construir os barracos, cuidar da alimentação.”
O relato segue.
“Dia 16 nós ocupamos a pista. Nesse momento nós estávamos reivindicando transporte, alimentação e medicação. Estávamos em quase duas mil pessoas. Um acampamento muito grande, nossa alimentação estava acabando. Nós saqueamos um carro em Curionópolis. Por causa da alimentação. Dia 17 o prefeito veio, às sete horas da manhã, negociar com a nossa coordenação. Demos prazo: se até as 11 horas ele não chegasse com o que a gente queria, a gente ia para a pista. Até essa data a gente não ocupava a pista.”
A negociação era um engodo, manobra para ganhar tempo.
“Deu 11 horas, ele veio: “Eu não consegui transporte, alimentação, medicação para vocês”. A resposta dele foi essa para nós. Tudo bem, nós ocupamos a pista de novo. Foi um dia de muito sol. 17 de abril. Dia 16 foi muita chuva. Dia 17 já foi muito sol. Não tinha uma chuva naquele dia. Agitando. Incomodando mesmo. O governo quer ser incomodado pelos Sem Terra. Nós estávamos incomodando eles. Por volta de quatro da tarde, talvez 16h40, eles mandaram os homens.”
Os mais de 150 policiais fardados, mas sem identificação pessoal no uniforme, chegaram em ônibus cedidos por uma empresa de transporte. Cercaram o acampamento dos sem terra, um grupo ocupando a pista do lado de Parauapebas, outro do lado de Marabá.
Logo começou a agitação, conforme lembra Maria Zelzuita.
“Começou a escurecer, eles começaram a descer dos ônibus. O Marcelino, que é o militante na época, dizia: “Ó, tem alguma coisa errada”. Porque eles chegaram com os ônibus com uma distância boa. Por volta da curva, de longe eles começaram a descer e o rapaz viu. “Desceu umas pessoas de verdinho!”; “Tem alguma coisa que não está certa.” Nesse momento já tinha o pessoal de Marabá, já tinham chegado. Tinha uma carreta atravessada. Como essa carreta, eu não sei. A gente se dividiu em grupos. Foram um pouco para lá e um pouco para cá, de pessoas, para esse lado e o outro lado. Eu fiquei naquela parte lá no fundo. Polícia começou primeiro nessa parte… Começaram a matar.”
“Gritávamos “MST!” Coisas assim. Nossas palavras de ordem. Quando eles chegaram, eles foram atirando. Bala de borracha e bala de verdade. Tem uma amiga minha, ela falou: “Maria, vamos atrás do Jaílson –o filho dela–, já tem gente morta do nosso lado”. Eu me virei assim para trás, estava o Rubenito com um tiro na boca, por de trás de mim com um banho de sangue, tinha pegado a bala. Eu vi na minha mente o que meu filho tinha falado, pensei eu vou morrer, meu filho vai ficar com quem?”
Não havia tempo para pensar.
“Foi a hora que eu corri. Corri levando os quatro meninos de uma vizinha minha, que é do mesmo grupo, eles não sabiam da mãe. Todo mundo gritando. Correndo para um lado, correndo para outro. Sem saber para onde corria direito. Era uma parreira alta, mato, barba de bode, era o que tinha. Tinha um ceguinho, saiu de lá do barraco do vizinho, estava com o filho dele de dez anos. Ele fala: “Meu filho fique aqui, querem nos matar”. Quando uma bala passou de repente, foi a hora que eu corri, e eles também correram.”
“Nós estávamos na base de duas mil pessoas. Apareceram só 19 pessoas mortas. Nós ficamos em fogo cruzado. Homem, mulher, criança. […] Eu não sei se realmente morreu mulher, ou se morreu criança. Se morreu, eles esconderam muito bem escondido esses corpos. O que apareceu foram essas 19 pessoas mortas. Até cinco anos atrás sempre vinha pessoa procurando. O fulano de tal estava nesse acampamento, o massacre, fulano de tal, a gente fica sem saber se teve mais gente mesmo.”
Correndo pelo mato com crianças desgarradas, Maria Zelzuita acabou conseguindo protegendo os meninos e se salvar . Ficou entre macegas, encontrou outros sobreviventes, voltou para Eldorado dos Carajás, onde seu filho doente tinha ficado.
“Eu ainda estava toda suja de sangue de um rapaz que eu ajudei. Quando meu filho me viu, ele correu, me abraçou, eu abracei ele, eu falei: “Eu vou voltar para lá. Eu vou ficar na curva do S”. “Não vai”, pediu o filho. Digo: “Eu vou. Enquanto existir uma pessoa naquele local eu vou para lá”. Eu fiquei aqui, junto com o pessoal. Eu só saí daqui quando assentaram a gente.”
Não foi fácil.
“Eu quase desisti na época. Depois que passou tudo, eu fiquei no acampamento, foi ressentindo na minha cabeça, todo aquele momento, aquele dia, aquele filme. Eu fiquei com medo. Mas, na mesma hora, pensava: aquela pista foi banhada com o sangue dos nossos companheiros. Eu não posso desistir. Vamos dar valor àquele sangue que foi derramado naquela pista quente. Foi acabado o sonho daquela pessoa. As pessoas que tombaram aqui, cada um tinha um sonho. Um teto, criar a sua família. Não tinha onde morar. Não tinha onde trabalhar. Muitos eram garimpeiros no Maranhão. Não conseguiram nada. Não retornaram mais.”
A tortura, as perseguições e as mortes não impediram a derrota do latifúndio.
“A gente conseguiu. Nós tivemos muita luta ainda. Em 1996, o Massacre. Em 1997 nós nos assentamos. O ano de 1996 até 1997, nós andamos muito. Muita luta. Ocupando o Incra, aqui em Marabá, em Belém, por tudo. Aí eu consegui minha terra.”
Hoje, como mais de 500 famílias, Maria Zelzuita tem um lote de 25 hectares no assentamento 17 de Abril, a pouco menos de 15 quilômetros da área urbana de Eldorado dos Carajás.
“Planto mandioca, manga, arroz. Essas coisas assim. É pouquinho, porque eu sou sozinha. Só eu que planto. Trabalho, consigo por o filho na escola.”
Por sinal, a escola onde seus filhos estudaram e onde ele trabalha como cozinheira leva o nome de Oziel Alves Pereira, lembrança presente no acampamento da juventude, em muitos assentamentos da região e em um poema de Zé Pinto, compositor e músico do MST.
Ao longo dos dias do acampamento da juventude, de 11 a 17 de abril, o texto foi repetido muitas vezes, cantado, declamado, interpretado em breves apresentações teatrais, em cerimônias às cinco da tarde, quando a gurizada fechava a estrada para homenagear os mortos na chacina e afirmar a permanência de sua luta.
É o seguinte:
Oziel está presente
Aquele menino era filho do vento
Por isso voava como as andorinhas
Aquele menino trilhou horizontes
Que nem um corisco talvez ousaria
Levava no rosto semblante de paz
E um riso de flores pro amanhecer
sol da estrada brilhou sua guerra
Mirou o seu povo com olhar de justiça
Pois tinha na alma um cheiro de terra
Tantas primaveras tinha pra viver
Pois tão poucas eras te viram nascer
Beijou a serpente da fome e do medo
Mas fez da coragem seu grande segredo,
Ergueu a bandeira vermelha encarnada
Riscou na reforma um “a” de agrária
E assim prosseguiu.
Seguiu cada passo com uma fé ardente
A voz ecoando na linha de frente
Em tom de magia numa melodia de estar presente
E a marcha seguia, seguiam os homens,
Mulheres seguiam, crianças também caminhavam
Mas lá onde a curva fazia um “S”
Que não se soletra com sonho ou com sorte
Pras bandas do norte o velho demônio
Mostrou seu poder.
Ali o dragão urrou, o pelotão apontou,
As armas cuspiram fogo, e dezenove
Sem terra, a morte fria abraçou.
Mas tremeu o inimigo com a dignidade do menino
Inda quase adolescente, pele morena, franzino
Sob coices de coturno, de carabina e fuzil
Gritou amor ao Brasil, num viva ao seu movimento,
E morreu!
Morreu pra quem não percebe
Tanto broto renascendo
Debaixo das lonas pretas, nos cursos de formação
Ou já nos assentamentos,
quando se canta uma canção,
ou num instante de silêncio
Oziel está presente
porque a gente até sente
pulsar o seu coração.
Fonte: MSTMaratonando