Por João Brizzi.
‘Intelectual de esquerda’ e ‘playboy’ costumam ser sinônimos. E o grande problema é que o intelectual não sabe disso. Ele acha que playboy é só quem vai pra Miami, compra carro caro e vive uma vidinha culturalmente medíocre. Mas me desculpe: um novo-rico-burguês que ouve sertanejo universitário está mais atualizado sobre a cultura nacional do que alguém que continua achando que o Chico Buarque de 2018 é o Chico Buarque. Não há problema em ouvir o Chico. Foda é só ouvir até o Chico. É como se toda a produção cultural brasileira posterior à redemocratização tivesse sido esquecida.
E a imprensa está cheia desses intelectuais-playboys.
Como explicamos aqui, Olavo de Carvalho se tornou o pensador mais influente do Brasil de Bolsonaro afirmando que a esquerda aparelhou a academia e a imprensa encarnando o discurso de defesa aos fracos e oprimidos enquanto garantia seus privilégios particulares. Se considerarmos o que Olavo escreveu, é razoável admitir que, durante o governo Lula, a esquerda foi intelectualmente preguiçosa e se tornou uma cirandinha ao som de Tribalistas. Ela não se ligou que o Brasil continua mudando.
Diametralmente opostos ao Olavo, os Racionais MC’s tentaram nos avisar de coisa parecida. Em 2002, foi lançado o disco “Nada como um dia após o outro dia”. Nele, Brown alerta o ouvinte. E o faz mais de uma vez. Cito aqui duas ocorrências, a primeira na faixa “Negro Drama”:
“Problema com escola, eu tenho mil.
Mil fita. Inacreditável, mas seu filho me imita.
No meio de vocês, ele é o mais esperto.
Ginga e fala gíria. Gíria não; dialeto.”
Defender Lula/Haddad sem compreender o que gerou o bolsonarismo é um pensamento que está, sob a régua do tempo, atrasado. E é por isso que a intelligentsia brasileira é incapaz de conversar com Bolsonaro. Quando ele foi ao Roda Viva em julho e dançou lambada com seus entrevistadores, ele comprovou a ideia de que na relação Lula/Bolsonaro, o incompreendido é o capitão. Ele estava lidando com jornalistas que defendiam as mesmas coisas há anos e não entendiam como uma contraposição daquele tamanho poderia ter surgido.
Sinto muito se você só tomou consciência àquela altura, mas Jair Bolsonaro sabia de cor e salteado quais perguntas viriam daquele jornalismo. Ele era a notícia. A bancada da mídia tradicional brasileira não fazia a menor ideia de como lidar com aquele deputado. Os entrevistadores estavam à beira de um colapso nervoso.
Não acho que a imprensa tenha acompanhado o ritmo da discussão porque ela atuou em regime de emergência pra evitar uma catástrofe. Por catástrofe, você pode entender a eleição de Bolsonaro e a ameaça do fim do Estado Democrático de Direito [piauí, Intercept] ou a eleição de Haddad, a tolerância à corrupção e o colapso das instituições políticas do país [Estadão, Gazeta do Povo]. Tanto faz. Nenhum lado esteve disposto a considerar os argumentos de seus opositores.
Por exclusão, o lado que simpatizo do jornalismo é aquele que costumeiramente defende o progressismo. E meu problema com este que eu chamaria de meu lado do jornalismo é que embora ele tenha tentado evitar a vitória de Bolsonaro, ele partilha de uma ética profissional que não incluiu os maiores beneficiados por sua ideologia: os pobres. Em termos mais simples: nós tentamos evitar uma guinada em direção ao conservadorismo quando produzimos informação, mas as redações não são, nem de longe, um ambiente inclusivo. O Bolsonaro ri de nós porque, em termos comparativos, o grupo que produz o pensamento que se opõe a ele tem menos negros do que deveria.
O jornalismo brasileiro me incomoda porque não torna pública a condição de trabalho a que me sujeitou. Ele não admite que prescinde de uma pequena dose de censura dos seus pares e, ainda que não me impeça de falar, não leva o meu argumento a sério.
A GENTE CONFUNDE preto e pobre o tempo inteiro no Brasil. É preciso entender que temos uma doença social que mata os pretos – mas é a negligência da sociedade que impede que qualquer um deixe de ser pobre. São coisas parecidas, mas diferentes. Se você confundir, pode acabar deixando de entender como é que pode um pobre votar no Bolsonaro se ele, teoricamente, diz que vai tomar medidas ativas contra a violência que afetarão diretamente os pretos.
O segundo exemplo dos Racionais está na faixa “Jesus chorou”. Primeiro, a mãe do Brown avisa:
“Paulo, acorda! Pensa no futuro que isso é ilusão.
Os próprio preto não tá nem aí com isso não.
Ó o tanto que eu sofri, o que eu sou, o que eu fui!
A inveja mata um, tem muita gente ruim.”
Brown não tinha como saber, no ano em que o Lula foi eleito e que o Santos foi campeão brasileiro, que ele seria um potencial candidato a maior preto da história do Brasil. Mas ele sabia desde então que não era porque ele estava contando a história da quebrada que ele era a quebrada inteira.
Pra mim, a mensagem dos Racionais sempre foi essa: não há o que celebrar. Brown escreveu isso em 2002. A conta das mortes de inocentes nunca diminuiu o suficiente pra gente baixar a guarda.
Se a esquerda falhou em captar a mensagem dele, é porque quem acreditou cuidar da cultura popular brasileira foi um clube interessado em manter o seu poder e a sua influência. Tomemos a MPB como exemplo: o termo “música popular brasileira” não é um gênero musical. Ele é um clube. Todos os outros gêneros – samba, funk, reggae, forró, tecnobrega, sertanejo – levam um nome específico por terem especificidades rítmicas e de timbre. A MPB não tem tais características. Se você dá rolê com alguém que faz parte da galera, entra pra galera.
Se ainda recorremos às figuras tarimbadas dos anos 70, é porque os avisos de Brown não adiantaram nada. Se tentamos entender o mundo nos termos que usamos pra entendê-lo lá atrás, estamos tão atrasados quanto a ideia de “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” – uma referência clara à “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade”, que precedeu a ditadura. A nova direita é honesta pelo menos no que diz respeito à representação orgânica de seus interesses: são ideias de uma burguesia branca, que valoriza o caipira (desde que ele seja latifundiário), gosta de sertanejo, quer andar armada e pede a seu novo presidente que lhe garanta seus direitos. A esquerda é o oposto disso: esvaziada de representação, aparenta ser um grupo cujo discurso é ditado por intelectuais que quase nunca se parecem com o que defendem. Na batalha do atraso, a esquerda perde porque soa mais hipócrita. Não importa o que se defende, mas sim a percepção de que há um grupo que fala da boca pra fora.
Bolsonaro é, no máximo, um grunhido de 1985, último ano do regime militar, pra avisar que a esquerda intelectual deveria ter ido além do Chico Buarque, Sócrates do Corinthians e dos heróis da redemocratização. Estas são as referências de democracia da Folha de S.Paulo, não da humanidade. A esquerda-chique precisa sair do centro do mundo e entender que é normal que as pessoas não gostem de suas ideias.
ATÉ AQUI, APRESENTEI dois argumentos: no primeiro, tentei comprovar que a oposição ao Bolsonaro na mídia tem uma síncope toda vez que tenta entendê-lo. No segundo, disse que o olavismo cultural e a mensagem dos Racionais dialogam entre si na medida em que nos mostram que a elite sempre fez papel de inocente na tragédia nacional. Ainda que aproximar o pensamento de Olavo e as letras dos Racionais seja uma aparente idiotice, é razoável afirmar que o intelectual-playboy torce o nariz igualmente quando precisa estudar de verdade qualquer um dos dois fenômenos. E cada um a sua maneira, ambos são respostas adequadas à realidade observada nos anos 90. Os dois dizem que há alguém tentando falar em nome do povo.
A imprensa nunca vai ter uma opinião fincada na realidade enquanto seus diretores de redação não perderem seus nojinhos. É claro que ninguém é obrigado a se tornar fã de algo que não gosta, mas me parece pouco profissional a ideia de que um jornalista possa ignorar produtos tão relevantes de nossa cultura. Também não é a atual crise financeira do jornalismo quem provoca uma piora sensível no mercado. Ele já era podre por dentro. Já faz uma década desde que as redações começaram a ser enxugadas. Dava tempo de um editor ter concluído que com metade do salário dele, ele lotaria uma redação de estudante preto. Mas eles nunca fizeram isso.
E fica ainda pior: o jornalismo brasileiro não dá o valor adequado ao trabalho de quem entra agora no mercado porque parte do nosso velho princípio brasileiro de que o conhecimento mora exclusivamente nas redações e nas universidades. É um monte de gente que sequer sabe compreender o valor de profissionais formados pela internet tentando justificar que você pode pagar merreca pra um funcionário realizar um trabalho altamente estressante e que se pretende qualificado.
O jornalismo é uma profissão de classe média. Eu e quase todos os meus colegas, quando começamos, topamos ganhar menos de R$ 1.500 pra trabalhar em jornadas exaustivas sob a justificativa de que “a profissão é assim mesmo”. Não é.
Seria se a regra valesse pra todo mundo. Mas quem me falou isso ganhava mais do que eu e não sabia o valor do meu aluguel. Quem me falou isso ignorava o fato de que só podia contratar funcionários se, em associação com a empresa, os pais destes funcionários ajudassem a pagar o aluguel. Isso acontece em toda profissão, mas na redação de um veículo com gente de esquerda – não que os de direita paguem melhor –, o diretor curte discutir marxismo e fingir que se importa com luta de classes. É a intelligentsia acontecendo. Ao vivaço.
Pra quem não é abastado, com o nível de qualificação exigido pra fazer parte de uma redação, trabalhar como vendedor no shopping, fazer bico ou procurar emprego em áreas correlatas da comunicação faz mais sentido – porque dá mais dinheiro. Mesmo no Brasil, não é como se fosse impossível ganhar dois salários mínimos com diploma universitário na mão. As redações continuaram brancas por escolha, não por contingência.
QUANDO VOCÊ CHEGA à redação de banho tomado, roupa e perfume passados, as pessoas acham que você saiu do mesmo lugar que elas. Acham que o trajeto até o trabalho, o jeito de lidar com os boletos e a realidade que você enfrenta é a mesma que a do Partido Socialismo em Laranjeiras (PSOL), bairro na zona sul do Rio em que a esquerda festiva da cidade costuma se reunir. E quase sempre não é.
Meu vô era preto de cabelo crespo, meu pai era preto de olho verde. Eu nunca me disse preto por aí, ainda que na escola particular eu fosse o preto por contraste. Em qualquer momento da minha vida, eu me sentiria muito hipócrita por pagar de preto porque o Mano Brown me explicou que não podia. “Hey Bacana, Quem te fez tão bom assim?”
Ainda assim, uma vez eu tentei mostrar “Não uso sapato”, do Charlie Brown Jr., pra um colega mais velho que havia feito carreira na Folha. Você pode achar que é batido, mas sabe o que ele fez?
Me mostrou “Going to California”, do Led Zeppelin. Tava lá a tripinha branquela do Robert Plant, de colã, cantando pra caralho. Eu sabia quem ele era, mas o comentário me fodeu as ideias: “Isso aí é que é cantar. Olha só!” Já tinha ouvido parecido na faculdade, quando um professor perguntou à turma se a gente “conhecia aquela banda chamada Ramones”.
A elite que comanda o jornalismo não entendeu a internet. A rede tirou o monopólio da fala das redações e da academia. Ser parte da intelligentsia no século 20 exigia dinheiro porque você precisava comprar livros, filmes e discos. Eu baixei tudo. Eu sei o que é o Led Zeppelin porque eu não precisei pagar pra ouvir. O tempo passou e o rock deixou de ser o gênero da moda.
A minha geração é a geração do rap e do hip-hop. Jornalista precisa entender que ser roqueiro, fã da Tropicália e no máximo dos Titãs deixou de ser revolucionário na época da eleição do Collor.
Discorda? Tudo bem. Mas se não conhece, vá ouvir.
A REVOLUÇÃO QUE eu defendo só vai conversar com jornalista playboy quando jornalista playboy aprender a falar sobre dinheiro com quem tem menos. Nossa violência inicial é a escravidão. Isso nos faz ter cabeça de senhor e servo. Isso nos faz achar que a gente pode se dar o direito de, depois de ter estudado tanto, fingir que não sabe o que tá acontecendo no mundo real.
Mas é preciso continuar levantando o braço pra dizer que precisamos ver preto em redação. Se são eles quem tentamos defender, então são eles os que precisam estar presentes quando discutimos suas questões. Não só porque devemos nos abster e aliviar a nossa responsabilidade, mas porque precisamos fazer com que nossas tensões profissionais representem melhor a distribuição de identidades da população brasileira. Analisando de longe, tendemos a ter uma visão paternalista, que achata a realidade e quer decidir em nome de terceiros. E se concordamos que esta é uma questão importante, então precisamos chegar a um consenso sobre as razões pelas quais ainda estamos tão distantes de resolver o problema.
É essencial que todo mundo se acostume a ter colegas pretos. E que se acostume com o que se discute e se discutiu no rap. E que a gente pare de recorrer exclusivamente aos signos de uma época que ficou no passado, esquecendo a geração que cresceu desde então. Os heróis da minha época não foram exilados do Brasil; eles nasceram nos guetos de sua própria pátria.
Talvez estejamos amedrontados porque, finalmente, tomamos consciência sobre o que acontecia de verdade por aqui. Talvez o nosso medo seja uma realização tardia do país que sempre fomos, e não do que nos tornaremos nos próximos quatro anos.
Você pode ter esquecido durante as eleições, mas fazer a coisa certa por aqui nunca foi opinião popular. E se você chegou até o final do texto, eu te pergunto: todo mundo da empresa tem dinheiro pra almoçar contigo?
Se não, volte pra base.