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Ou as big techs aceitam mudar ou as democracias em todo mundo seguirão ameaçadas pelas fake news

No Brasil, impulsionado pelo governo federal, projeto de lei tenta responsabilizar grandes empresas pelo conteúdo falso produzido por usuários.

Imagem: S. Hermann & F. Richter por Pixabay

Por , para The Intercept.

NO INÍCIO deste mês, conversei com um dos meus parentes que votou  em  Bolsonaro. Eu queria saber o que ele pensava sobre a invasão golpista de 8 de janeiro e sobre os primeiros passos do governo Lula. O que ouvi foi uma enxurrada de opiniões baseadas em informações falsas que seguem bombando nas redes sociais bolsonaristas. Em cinco minutos de conversa, ouvi cinco mentiras cabeludas: o TSE não aceitou divulgar o código fonte das urnas eletrônicas; um argentino especialista e independente comprovou a fraude no processo eleitoral; os prédios dos três poderes foram destruídos por integrantes do MST infiltrados; Lula anunciou uma moeda única com a Argentina; os yanomamis que estão morrendo de fome vieram da Venezuela.

Rebati mentira por mentira e ouvi: “ah, não é possível que tudo isso que eu falei seja mentira”. Encerramos a conversa.  Mais tarde, enviei pelo Whatsapp links de matérias jornalísticas que desmentiram todas aquelas informações. A resposta mostra o tamanho do buraco em que estamos enfiados: “Não dá pra saber. Quem é que define o que é verdade e o que é mentira?”. Essa dúvida que confunde fato com opinião foi plantada na cabeça de boa parte da população justamente para legitimar as informações falsas. É como se todos tivessem o direito a ter os seus próprios fatos. Quem define que a cor do asfalto não é rosa-choque, não é mesmo?

No Brasil, a disseminação de mentiras se tornou uma política pública do governo Bolsonaro. Mesmo após a derrota bolsonarista nas eleições, milhões de brasileiros continuam sendo enganados por uma indústria de mentiras que segue trabalhando a todo vapor. Os 49% dos eleitores que votaram no Bolsonaro, ou seja quase metade da população, seguem recebendo nos seus celulares as notícias de um mundo paralelo. A mentira como prática política continuará sustentando os discursos de parlamentares bolsonaristas e seguirá elegendo reacionário pilantra. Enquanto essa indústria de fake news estiver funcionando, a ameaça à democracia será permanente. Desarmar essa bomba talvez seja o maior desafio do novo governo.

A disseminação de mentiras impulsionada pelos reacionários não é um fenômeno brasileiro, mas mundial. É resultado de um movimento articulado entre os agentes da extrema-direita internacional, capitaneado pelo criminoso Steve Bannon. Ele e outros extremistas americanos comemoraram os acontecimentos de 8 de janeiro no Brasil, que claramente foram inspirados pela invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, um ano antes. Há um intercâmbio de know-how e de mentiras, o que ficou bastante claro nessas invasões e durante a pandemia. A defesa das democracias, portanto, deve ser articulada também de maneira global. A conferência organizada pela Unesco — órgão da ONU voltado para a Educação, Ciência e Cultura — em Paris foi o primeiro passo para a construção de uma defesa global e articulada contra a indústria das fake news. O principal ponto debatido na conferência foi como empresas, governos e organizações podem atuar em conjunto para regular as redes sociais e outras plataformas. O episódio de 8 de janeiro teve grande destaque na conferência. Foi apresentado como o principal exemplo de como a propagação de mentiras pode ser perigosa para as democracias.

Em carta enviada à conferência, o presidente Lula fez uma convocação por soluções globais de combate à disseminação de mentiras e defendeu a criação de uma regulamentação internacional. O tema virou prioridade do novo governo, que tem atuado em diversas frentes. Uma delas é o apoio ao PL das Fake News, que tramita na Câmara e cujos principais pontos estão em consonância com o que foi debatido na Unesco. O projeto quer a responsabilização civil das Big Techs — as grandes empresas de tecnologia que dominam o mercado das redes sociais — que se omitirem diante de mentiras que disseminem incitação à crimes contra a democracia e ao terrorismo. Segundo a CNN Brasil, nos corredores do evento da Unesco algumas autoridades brasileiras se mostraram céticas sobre o avanço do PL. Elas acreditam que o lobby das Big Techs é grande e difícil de ser superado. As grandes plataformas têm investido pesado para barrar essas movimentações contra as fake news.

No ano passado, as Big Techs — Facebook, Instagram, Twitter, Google e Mercado Livre — escreveram uma carta aberta em conjunto atacando o PL das Fake News. Segundo eles, o projeto ameaça a “internet livre, democrática e aberta que conhecemos hoje”. Também no ano passado, o Facebook pagou anúncios de página inteira nos principais jornais do país dizendo que o PL “traz consequências negativas às pequenas empresas que usam publicidade online”. Youtube e Google também publicaram em seus canais de comunicação artigos atacando o PL. Essas empresas não aceitam serem responsabilizadas pelas mentiras criminosas dos seus usuários. Ocorre que esse tipo de conteúdo sensacionalista e criminoso, costuma ser privilegiado pelos algoritmos definidos por essas empresas. Ou seja, elas lucram com isso, mas querem que a responsabilização seja apenas dos usuários.

No Brasil, a disseminação de mentiras se tornou uma política pública do governo Bolsonaro.

A elaboração do PL tem recebido contribuições do STF, do TSE e do governo federal, o que o torna mais forte. Apesar do lobby intenso, o relator Orlando Silva (PCdoB) tem se mostrado otimista. Ele acredita que o texto pode ser apreciado pela Câmara no próximo mês e está confiante na aprovação. Em uma votação teste no ano passado, 249 votaram a favor do projeto e 220 contra. “Os contrários reuniram governistas e aliados das big techs. Minha impressão é que hoje temos outro cenário, e o 8 de janeiro aumentou a tração para a aprovação”, afirmou o parlamentar.

O caminho para desarmar a indústria das fake news será longo e espinhoso no mundo inteiro. Não há soluções rápidas e simples. Encontrar o equilíbrio entre a liberdade de expressão e o combate às fake news é uma tarefa dura, mas inadiável. As mentiras que impulsionaram ataques à democracia e atentaram contra a saúde pública durante a pandemia precisam ser criminalizadas, assim como as Big Techs precisam ser responsabilizadas. Ou interrompemos essa produção industrial de mentiras, ou aguardamos  os próximos episódios de selvageria e barbárie.

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