Por João Filho, para The Intercept.
NO INÍCIO deste mês, conversei com um dos meus parentes que votou em Bolsonaro. Eu queria saber o que ele pensava sobre a invasão golpista de 8 de janeiro e sobre os primeiros passos do governo Lula. O que ouvi foi uma enxurrada de opiniões baseadas em informações falsas que seguem bombando nas redes sociais bolsonaristas. Em cinco minutos de conversa, ouvi cinco mentiras cabeludas: o TSE não aceitou divulgar o código fonte das urnas eletrônicas; um argentino especialista e independente comprovou a fraude no processo eleitoral; os prédios dos três poderes foram destruídos por integrantes do MST infiltrados; Lula anunciou uma moeda única com a Argentina; os yanomamis que estão morrendo de fome vieram da Venezuela.
Rebati mentira por mentira e ouvi: “ah, não é possível que tudo isso que eu falei seja mentira”. Encerramos a conversa. Mais tarde, enviei pelo Whatsapp links de matérias jornalísticas que desmentiram todas aquelas informações. A resposta mostra o tamanho do buraco em que estamos enfiados: “Não dá pra saber. Quem é que define o que é verdade e o que é mentira?”. Essa dúvida que confunde fato com opinião foi plantada na cabeça de boa parte da população justamente para legitimar as informações falsas. É como se todos tivessem o direito a ter os seus próprios fatos. Quem define que a cor do asfalto não é rosa-choque, não é mesmo?
No Brasil, a disseminação de mentiras se tornou uma política pública do governo Bolsonaro. Mesmo após a derrota bolsonarista nas eleições, milhões de brasileiros continuam sendo enganados por uma indústria de mentiras que segue trabalhando a todo vapor. Os 49% dos eleitores que votaram no Bolsonaro, ou seja quase metade da população, seguem recebendo nos seus celulares as notícias de um mundo paralelo. A mentira como prática política continuará sustentando os discursos de parlamentares bolsonaristas e seguirá elegendo reacionário pilantra. Enquanto essa indústria de fake news estiver funcionando, a ameaça à democracia será permanente. Desarmar essa bomba talvez seja o maior desafio do novo governo.
A disseminação de mentiras impulsionada pelos reacionários não é um fenômeno brasileiro, mas mundial. É resultado de um movimento articulado entre os agentes da extrema-direita internacional, capitaneado pelo criminoso Steve Bannon. Ele e outros extremistas americanos comemoraram os acontecimentos de 8 de janeiro no Brasil, que claramente foram inspirados pela invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, um ano antes. Há um intercâmbio de know-how e de mentiras, o que ficou bastante claro nessas invasões e durante a pandemia. A defesa das democracias, portanto, deve ser articulada também de maneira global. A conferência organizada pela Unesco — órgão da ONU voltado para a Educação, Ciência e Cultura — em Paris foi o primeiro passo para a construção de uma defesa global e articulada contra a indústria das fake news. O principal ponto debatido na conferência foi como empresas, governos e organizações podem atuar em conjunto para regular as redes sociais e outras plataformas. O episódio de 8 de janeiro teve grande destaque na conferência. Foi apresentado como o principal exemplo de como a propagação de mentiras pode ser perigosa para as democracias.
Em carta enviada à conferência, o presidente Lula fez uma convocação por soluções globais de combate à disseminação de mentiras e defendeu a criação de uma regulamentação internacional. O tema virou prioridade do novo governo, que tem atuado em diversas frentes. Uma delas é o apoio ao PL das Fake News, que tramita na Câmara e cujos principais pontos estão em consonância com o que foi debatido na Unesco. O projeto quer a responsabilização civil das Big Techs — as grandes empresas de tecnologia que dominam o mercado das redes sociais — que se omitirem diante de mentiras que disseminem incitação à crimes contra a democracia e ao terrorismo. Segundo a CNN Brasil, nos corredores do evento da Unesco algumas autoridades brasileiras se mostraram céticas sobre o avanço do PL. Elas acreditam que o lobby das Big Techs é grande e difícil de ser superado. As grandes plataformas têm investido pesado para barrar essas movimentações contra as fake news.
No ano passado, as Big Techs — Facebook, Instagram, Twitter, Google e Mercado Livre — escreveram uma carta aberta em conjunto atacando o PL das Fake News. Segundo eles, o projeto ameaça a “internet livre, democrática e aberta que conhecemos hoje”. Também no ano passado, o Facebook pagou anúncios de página inteira nos principais jornais do país dizendo que o PL “traz consequências negativas às pequenas empresas que usam publicidade online”. Youtube e Google também publicaram em seus canais de comunicação artigos atacando o PL. Essas empresas não aceitam serem responsabilizadas pelas mentiras criminosas dos seus usuários. Ocorre que esse tipo de conteúdo sensacionalista e criminoso, costuma ser privilegiado pelos algoritmos definidos por essas empresas. Ou seja, elas lucram com isso, mas querem que a responsabilização seja apenas dos usuários.
No Brasil, a disseminação de mentiras se tornou uma política pública do governo Bolsonaro.
A elaboração do PL tem recebido contribuições do STF, do TSE e do governo federal, o que o torna mais forte. Apesar do lobby intenso, o relator Orlando Silva (PCdoB) tem se mostrado otimista. Ele acredita que o texto pode ser apreciado pela Câmara no próximo mês e está confiante na aprovação. Em uma votação teste no ano passado, 249 votaram a favor do projeto e 220 contra. “Os contrários reuniram governistas e aliados das big techs. Minha impressão é que hoje temos outro cenário, e o 8 de janeiro aumentou a tração para a aprovação”, afirmou o parlamentar.
O caminho para desarmar a indústria das fake news será longo e espinhoso no mundo inteiro. Não há soluções rápidas e simples. Encontrar o equilíbrio entre a liberdade de expressão e o combate às fake news é uma tarefa dura, mas inadiável. As mentiras que impulsionaram ataques à democracia e atentaram contra a saúde pública durante a pandemia precisam ser criminalizadas, assim como as Big Techs precisam ser responsabilizadas. Ou interrompemos essa produção industrial de mentiras, ou aguardamos os próximos episódios de selvageria e barbárie.