Por Marcio Zonta
À primeira vista parece uma praça cheia de mendigos com vestimentas sujas de barro. Homens inóspitos, de feição sofrida, cujo diálogo é quase impossível. Aos poucos vão acessando um túnel aberto no centro da praça e somem na escuridão. Na sequência, mais homens carregados de materiais de higiene, alimentação e roupas também adentram o túnel. Demorarão até quatro dias de caminhada adentro para chegarem no ponto crucial e passarão no subterrâneo por até quatro meses.
Transformados em sub homens numa sociedade subterrânea, manterão por esse período relações comerciais e sociais fora da normalidade da cidade e voltarão à praça com ouro que será comercializado no mercado ilegal, cuja rede envolve empresários, policiais e políticos como atravessadores.
“Zama Zama”, significa “tente, tente” em Zulu, que é um dos onze idiomas oficiais da África do Sul. É assim que são denominados os garimpeiros ilegais, esses homens que vivem nos túneis da primeira mina de ouro da África do Sul. Inaugurada no final do século 19 e oficialmente encerrada há algumas décadas, posteriormente passou a ser exploradas por eles sem reconhecimento do governo sul-africano. “Vivem a contradição da miséria e da riqueza, pois o ouro retirado a duras penas lhe é praticamente roubado ou pago por valores muito baixos, mas como se encontram em situação extrema de miséria, se submetem a esse serviço alimentando um mercado paralelo de circulação do ouro que deixa muita gente rica”, denuncia Matthews Hlabane, do Movimento Unitário de Comunidades Afetadas pela Mineração (Macua).
Sem nenhum equipamento de segurança para garimpar o ouro, doenças e mortes são constantes. “Quando acontecem acidentes fatais, os corpos ficam dias no local sem as autoridades governamentais tomarem providências sobre os mortos. Além disso, muitos são espancados por policiais que lhes roubam o ouro conseguido nos meses de trabalho dentro da mina”, expõe o militante do Macua. Os Zama Zama estão expostos praticamente numa zona central da cidade, num parque criado em homenagem a primeira mina de ouro de Joanesburgo, maior cidade da África do Sul.
Antes da descoberta do ouro pelos europeus, o local era uma fazenda antiga que se chamava Lang Lache ((Mina Grande) em africâner, o idioma criado durante a colonização holandesa. Determina até hoje a identidade cultural da cidade, chamada de “E-Goli”, que significa, na língua zulu, “Cidade do Ouro”. Como se fosse uma atividade totalmente naturalizada, os Zama Zama seguem invisíveis em meio a uma frenética circulação de carros na avenida próxima ao parque enquanto idosos e crianças que usufruem do espaço como lazer.
IDENTIDADE CULTURAL
Andar pelas ruas de Joanesburgo traz uma certa confusão entre o que seria o cenário natural da cidade e as imensas montanhas de rejeitos da mineração inauguradas no século 19. A destruição secular provocada pela mineração e tida como natureza morta nas pilhas de rejeitos das antigas minas é apaziguada pela ideologia predominante da mineração da cidade. “Toda riqueza e pensamento da sociedade de Joanesburgo é construída através da exploração de ouro”, fala o economista do Centro de Desenvolvimento e Informação Alternativa, Brian Ashley.
Fora isso, é muito comum nos bairros de Joanesburgo, serem colocados nos cumes de estéril da mineração, cruzes onde são praticadas cerimônias religiosas de batismo. “Parece loucura, mas para muitos habitantes de Joanesburgo não se diferencia o passivo ambiental secular deixado pela mineração de uma montanha natural; para eles é a mesma coisa, pois quando nasceram isso já existia”, diz Mercia Andrews, da Assembleia das Mulheres Rurais (Rural Women’s Assembly).
Ademais, pela cidade, é fácil encontrar em pontos públicos, estátuas dos principais colonizadores violentos, que tiveram na mineração a força motriz da dominação e espoliação do povo sul-africano. Cecil John Rhodes é um deles. Britânico, explorava diamantes nas recentes jazidas descobertas na África do Sul em 1860. Foi o fundador da empresa De Beer, atualmente responsável por quase metade da exploração de diamantes no mundo, de poder da Anglo American. “Rhodes é o grande símbolo da colonização humilhante que nós sofremos. Em 2015 num protesto na Cidade do Cabo, a estátua dele foi quebrada por estudantes na entrada da Universidade da Cidade do Cabo”, comemora Mercia. Para o historiador Ralph Mupalang, todos esses signos da cultura da violência propagados pela mineração, dos Zama Zama à menção honrosa aos colonizadores em espaços públicos, “é a repetição histórica da legitimação das barbáries de uma sociedade que foi forjada na violência da mineração”.