Os voos da morte na Argentina e os cadáveres encontrados no litoral brasileiro em 1978

Por Diego Soca.

Neste 24 de março de 2016, dia em que nos lembramos dos quarenta anos do golpe civil-militar que instaurou o regime de terrorismo de Estado na Argentina entre os anos de 1976 a 1983, faz-se necessário refletir as consequências e os desdobramentos do genocídio ocorrido no país vizinho, com um triste saldo de 30 mil mortos e desaparecidos, não só do ponto de vista político e social, mas também histórico. Esse é o objetivo deste breve texto, que em nenhum momento se esquivará de lembrar-se dos 30 mil, tão presentes no dia de hoje, e exigir a continuação do exercício da JUSTIÇA e dos julgamentos aos perpetradores dos crimes de lesa-humanidade cometidos durante estes sete sombrios anos.

Os números do genocídio ocorrido na Argentina são assustadores, a começar pela cifra estimada pelas organizações de defesa dos Direitos Humanos das vítimas do terrorismo de Estado. Mas mais que números, o genocídio praticado pelos militares das três armas, com a complacência de uma parcela da sociedade civil, da imprensa e da Igreja católica, gerou também um trauma profundo na sociedade argentina, que se reflete até os dias de hoje, quando se olha para uma Madre da Praça de Maio a caminhar em círculos, com seu famoso lenço branco na cabeça, a esperar pelo filho ou pela filha desaparecido há quase quatro décadas – filho esse que ela não teve o direito de enterrar e viver seu luto –, ou quando se tropeça com uma baldosa em alguma calçada de Buenos Aires ou de alguma outra cidade, lembrando-nos da data em que algum desaparecido foi sequestrado naquele local e levado ao grande complexo da tortura e da morte criado na ilegalidade da repressão instaurada pelo terrorismo de Estado: os centros clandestinos de detenção, verdadeiros campos de concentração que serviriam para despojar dos supostos “subversivos” todo e qualquer rastro de humanidade e reduzi-los a nada.

(…)

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corpo hermenegildo

Cadáver desconhecido do Hermenegildo (Foto de Jurandir Silveira, da Companhia Jornalística Caldas Júnior – abril de 1978) Fonte: PADRÓS et. al. (Orgs.). A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): História e Memória (Vol. 3: Conexão Repressiva e Operação Condor). Porto Alegre: CORAG, 2010.

RESUMO
Os voos da morte na Argentina configuraram, simultaneamente, uma das práticas de extermínio e ocultação de cadáveres de opositores políticos em poder do Estado, escolhida, planejada e sistematizada pelos militares daquele país, que tomaram o poder através do golpe militar de 26 de março de 1976. A metodologia empregada nesta prática de extermínio variou conforme o tempo e as condições apresentadas nos centros clandestinos de detenção, lugares do aparato repressivo onde os presos políticos eram levados após o seu sequestro pelas forças de segurança, e onde eram mantidos em cativeiro, sofrendo torturas físicas e psicológicas. O caso mais emblemático e mais conhecido, talvez a principal referência quando se fala em voos da morte, é a metodologia empregada na ESMA, a Escola de Mecânica da Marinha, que foi um dos maiores campos de concentração ativos durante toda a ditadura militar. É possível afirmar que os fatos ocorridos na ESMA, sejam estes as aberrantes violações aos direitos humanos, as torturas físicas e psicológicas, a condição concentracionária deste centro clandestino de detenção, a apropriação de crianças filhas de presas políticas nascidas em cativeiro, a apropriação ilegal dos bens materiais dos sequestrados, a cumplicidade de setores da sociedade civil e da Igreja católica, e o extermínio sistemático de opositores jogados vivos de cima de aviões em alto mar, possuem uma simbologia tão representativa deste período obscuro da história recente da Argentina, quanto Auschwitz representa todos os horrores do nazismo e do Holocausto para os judeus e para a história recente da Alemanha.

Em abril de 1978 foram encontrados em praias do litoral sul do Brasil dois cadáveres cuja identificação jamais foi realizada. No mesmo período, no litoral do Uruguai, foram encontradas pelas autoridades dezenas de corpos de prisioneiros argentinos, que seriam enterrados sem que houvesse a devida identificação. Tais corpos apresentavam claros sinais de tortura, e podem ser de vítimas dos voos da morte. Através de denúncias realizadas ainda durante a ditadura argentina, como a de Rodolfo Walsh e a do ex-marinheiro uruguaio Daniel Rey Piuma, e posteriormente, como as que constam no informe da CONADEP, foi possível esclarecer o esquema de ocultação destes cadáveres realizado pelas autoridades uruguaias, comprovando a conivência e colaboração entre estas duas ditaduras de Segurança Nacional. Este breve texto analisa as condições em que os dois mortos foram encontrados na costa brasileira, assim como o procedimento das autoridades, principalmente através da reportagem escrita pelo jornalista Tito Tajes em 1985, que arrola documentos relacionados a este acontecimento. Os corpos encontrados apresentavam fortes indícios de tortura, o que torna possível considerar a hipótese de que também fossem de vítimas dos voos da morte da Argentina, que as correntes marinhas trouxeram ao litoral do Brasil.

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