Os ricos, os pobres e os precariados: Os 3 tipos de eleitores de Bolsonaro

Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Ainda existem muitos eleitores que pensam em votar no candidato, mas não aderiram totalmente à lógica de seita que se propaga nas redes, escreve Rosana Pinheiro-Machado, cientista social e antropóloga, docente da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em artigo publicado por The Intercept, 16-10-2018.

Eis o artigo.

Uma possibilidade de lidar com o atual cenário político é partir do princípio de que metade da população é composta por fascistas, ignorantes – ou ambos. Sendo assim, podemos jogar a toalha e repetir que cada povo tem o governante que merece. Outra possibilidade, que me parece mais interessante, é diferenciar esse espectro de eleitores, tentando entender como e por que diferentes perfis são capturados por essa pulsão autoritária de Jair Bolsonaro.

Tenho diferenciado três perfis de eleitores, que operam como tipos ideais que ajudam a refletir e a agir. O primeiro são os ricos, que tiveram capital educacional para saber o que está em jogo e conscientemente optam pelo projeto autoritário contra a “corrupção”, mas na verdade veem em Bolsonaro e no antipetismo uma oportunidade para legitimar antigos preconceitos contra a “gentalha”.

Na outra ponta, há os pobres, com baixíssimo capital educacional e que possuem um antipetismo brando. Votam em Bolsonaro por adesão por causa da igreja, por influência familiar, desespero ou esperança, mas salientam que o Lula “roubava, mas dava o que era nosso”, “roubava, mas nossa vida era melhor”.

Na base da pirâmide, ao contrário dos ricos, há desilusão e desinteresse generalizado, mas também há flexibilidade para falar de diferentes candidatos. São sujeitos que não projetam a raiva ou jogam a culpa por sua vida deteriorada nos imediatamente abaixo – por que não há ninguém abaixo. Por causa do clientelismo, esses eleitores tendem a desacreditar na política como um todo. O grande desafio, para esse segmento, portanto, não é a mudança de candidato, mas convencê-los a ir votar no dia da eleição.

Entre os ricos e os pobres, está todo o restante da população brasileira, os precariados. É aí exatamente que reside o grande imbróglio do eleitor bolsonarista que engloba desde (A) o simpático motorista de Uber, a vendedora delicada, o porteiro prestativo, o microempresário trabalhador e a manicure festeira – todos indignados com o sistema político frouxo ou com a moral tradicional abalada e também frustrados com a própria situação – até o (B) o fanático, o agressor tomado pela fúria prestes a “se vingar” e a matar um esquerdista, uma pessoa negra, LGBT, uma feminista – os “culpados” pela deterioração do mundo.

A diferença entre A e B existe. Mas a tendência é que ela diminua conforme o cenário se radicaliza. A frustração “contra tudo que está aí”, contra essa “pouca vergonha” (sic) que contamina a política os valores morais, tende a mesclar ambos os perfis em um universo cada vez mais homogêneo. Num piscar de olhos, o grupo A,  que interioriza valores das elites abastadas e culpa a “gentalha” por suas frustrações, transforma-se em B.

É assim que a razão autoritária cresce, uma vez que não existe o fascista a priori: o que existe é subjetividade mobilizada pelo projeto autoritário.

Nesse novo contexto no qual os eleitores são nutridos por um sistema capilar e horizontal de comunicação, sem qualquer responsabilidade com a verdade, as mensagens pró-Bolsonaro são lidas da forma como é conveniente para cada trajetória pessoal e familiar, cooptando e organizando as diferentes frustrações, identificando causas e soluções imediatas. Tudo isso em meio a uma sociedade que, desde 2013 e, principalmente, após o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, vê-se desprovida de autoridade, regras e coesão. É aí que a extrema-direita tem encontrado solo fértil para fazer com que a diferença entre o eleitor A e B torne-se cada vez menor. O bolsonarismo é, antes de tudo, um discurso vazio, que se propaga no vácuo para responder a profundos e diversos ressentimentos.

Sobre o eleitor B: é ele quem nos aterroriza. Ele é o personagem de uma realidade distópica. Vivemos tempos em que está se autorizando a pensar, dizer e fazer o que outrora era impensável. Uma vez que a ordem, no sentido sociológico, está ausente, os indivíduos caçam por si próprios o inimigo. E o pior: sabem que nada vai acontecer a eles. Algumas pessoas sabem que estão autorizadas a violentar.

Precisamos entender que estamos diante de um surto coletivo que faz emergir muitos salvadores de “justiça com as próprias mãos” – e que Bolsonaro é, sim, responsável por aqueles que mobiliza.

Já escrevi algumas vezes que nossas lições não vêm apenas da Alemanha de 1933 ou do Brasil de 1964, mas também da distante China da primeira metade do século 20, marcada por intensa polarização, surgimento de seitas, salvadores e que se finda em mais um projeto autoritário marcado pela paranoia denunciativa, que destrói laços de amizade e familiares, e que, finalmente, acaba no culto à personalidade capaz de justificar toda a crítica como “ameaça inimiga”. O que nós vemos no Brasil hoje é o surgimento de seitas organizadas em seus próprios mundos paralelos: nelas Bolsonaro é o herói do bem. Absolutamente tudo que se diz contra ele seria fabricado nos antros esquerdistas. Repetindo um velho script da história cristã, os “cidadãos de bem” são também justiceiros e matam – ou deixam matar – em nome de uma justiça muito particular.

Voltemos ao eleitor A. É preciso disputá-lo. E dificilmente isso pode ser feito via redes sociais: nós perdemos feio a guerra dos memes e os eleitores de Bolsonaro que estão engajados online possuem contra argumentos para tudo. É inócuo. Ainda existem muitos eleitores que pensam em votar no candidato, mas não aderiram totalmente à lógica de seita que se propaga nas redes. É com essas pessoas que precisamos tentar a boa e velha conversa olho no olho, que  tem se demonstrado menos dramática do que nos ambientes digitais.

A antropologia do self – ou seja da construção do “eu” – nos ensina que não existe um self único. Obras como o do psiquiatra Arthur Kleinman nos ajudam a entender que o eu patriótico, autoritário e conservador pode coexistir com o eu democrático: somos sujeitos complexos e cada uma dessas subjetividades ocupa maior ou menor espaço conforme o contexto político e econômico. (É claro que, em um país de pobre tradição democrática e laica como o Brasil, o eu conservador tende a ocupar mais espaço). Não podemos desistir de tantas pessoas que conviveram conosco e que sabemos que possuem facetas generosas, solidárias e comunitárias.

Nós precisamos confrontar sujeitos contraditórios e multifacetados que estão seduzidos pela narrativa fácil do autoritarismo.

Desempregados, trabalhadores precários, motoristas de Uber, ambulantes. São sujeitos muitas vezes pobres ou empobrecidos, que não se veem contemplados pelas políticas sociais dos últimos anos. São sujeitos que querem emergir socialmente, sentem-se injustiçados por ralar 15 horas por dia, vivem na insegurança das grandes cidades e percebem o governo como uma grande farsa que atua para seu próprio enriquecimento ou apenas para o benefício de “minorias”. Esse perfil, hoje, não encontra no PT autocrítica em relação à corrupção, não encontra propostas de emprego e quase nada sobre segurança pública. É mentira que o governo deu tudo para os paupérrimos ou para as minorias, mas é verdade que o pobre que é não paupérrimo encontrou pouco amparo e possibilidade de mobilidade social.

Bolsonaro tem muitas contradições. Ele se vende como um “outsider”, mas é um político profissional. Suas propostas simplórias não são a solução para problemas complexos, e se enganam aqueles que acreditam que, por serem os “cidadãos de bem”, nada vai lhes acontecer num governo autoritário. Vai. A esquerda e o PT têm uma tarefa para o segundo turno e para os próximos anos, independentemente do resultado das eleições: recompor seu radicalismo, organizar a indignação, combater a corrupção e voltar a falar de temas básicos da vida em comunidade: segurança, saúde, educação e emprego.

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