Em 20 de setembro, milhares de egípcios tomaram as ruas do Cairo e de várias outras cidades, pedindo a renúncia do ditador militar do país, Abdel Fattah el-Sisi. Foi um raro protesto, numa época em que pelo menos 60.000 prisioneiros políticos estão trancados nas prisões, partidos políticos foram destruídos ou contidos de outras maneiras, as liberdades civis são completamente sufocadas e a tortura é endêmica.
Antes desses protestos, a dissidência nas ruas estava quase morta, devido à severa repressão. Na última vez em que houve um protesto relativamente significativo, foram apenas alguns milhares de manifestantes, principalmente no Cairo, na primavera de 2016, contra a entrega de duas ilhas estratégicas no Mar Vermelho para a Arábia Saudita por Sisi.
O Estado reagiu aos protestos da maneira que se tornou o costume, após o golpe militar de 2013. Meios de telecomunicações foram interrompidos; sites foram censurados. Mais de 3.000 pessoas foram presas; casas de ativistas foram invadidas; advogados e dissidentes foram sequestrados e torturados, e tanto a mídia privada quanto a estatal emitiram uma onda histérica de difamação contra os manifestantes.
Por que as pessoas protestaram?
Nas últimas semanas, as redes sociais egípcias foram inundadas pelos vídeos postados no Facebook por Mohamed Ali, um ator de 45 anos e ex-empreiteiro de construção civil com fortes laços com o exército egípcio. Depois de partir em silêncio para a Espanha, há cerca de um ano, em 2 de setembro, Ali publicou detalhes das práticas corruptas entre generais do exército, a família de Sisi e seu círculo íntimo.
Embora a corrupção militar seja de conhecimento público entre os egípcios, o povo ainda engasgou ao saber os detalhes de como Sisi e sua comitiva desperdiçaram bilhões de libras egípcias em elefantes brancos, palácios e hotéis luxuosos. Isso foi particularmente surpreendente em um momento em que intensas medidas de austeridade vêm sendo aplicadas e Sisi fala regularmente sobre como o país é “pobre”.
De repente, Ali usou sua plataforma para convocar os egípcios para que saíssem às ruas “aos milhões” em 20 de setembro, alegando que o exército e a polícia “ficarão com o povo” e que os dias de Sisi estão contados.
Dado o burburinho em torno de Mohamed Ali, as teorias prosperaram nas redes sociais – e em reuniões privadas – sobre quem estaria “por trás” dele, na realidade. Também passaram a circular boatos em massa sobre supostas “divisões dentro dos serviços de segurança”. Alega-se que o Serviço de Inteligência Geral do Egito (al-Mukhabarat al-Amma) está repleto de oficiais anti-Sisi furiosos e que eles estão prontos para apoiar os manifestantes e a remoção de Sisi. Isso não foi tanto um sinal de amor pelos militares ou pelos Mukhabarat, mas sim uma evidência do nível de desespero a que os egípcios chegaram após o desaparecimento de todas as alternativas políticas nesses tempos draconianos.
Nenhum partido político endossou o chamado de Ali pelos protestos. Isso não se deve necessariamente ao ceticismo em relação a Ali, mas ao fato de a maioria dos partidos políticos e redes de ativistas terem sido esmagados pela contínua repressão aplicada por Sisi.
As manifestações espontâneas que eclodiram em 20 de setembro pegaram a todos de surpresa e, em geral, nenhum dos ativistas políticos veteranos participou.
Aqueles que saíram às ruas no Cairo e nas províncias eram em grande parte adolescentes e jovens, com pouca experiência política e sem filiações com organizações. Os manifestantes foram recebidos com gás lacrimogêneo, violência policial e prisões em massa.
No entanto, na cidade industrial de Suez, no norte – onde a centelha da revolução foi acesa em 25 de janeiro de 2011 – os manifestantes enfrentaram a polícia por dois dias. Em um incidente notável, um magnata pró-regime, dono de uma fábrica de cerâmica, reuniu seus trabalhadores para sair em uma marcha a favor a Sisi. Os trabalhadores se reuniram na fábrica, mas logo começaram a gritar contra o ditador: “Saia! Saia!”
No fim, não houve movimento entre os militares – e a polícia certamente não apoiou os manifestantes. No entanto, Ali decidiu convocar outra onda de protestos para a sexta-feira seguinte, 27 de setembro. Ninguém atendeu ao chamado no Cairo ou em outros grandes centros, e apenas um punhado de manifestantes marchou em duas cidades no sul.
Por que os protestos se esvaziaram?
Na verdade, era quase impossível que os protestos continuassem. A enorme escala de repressão que se seguiu ao 20 de setembro fez o papel de dissuadir a população. O regime não apenas prendeu mais de três mil manifestantes, como também destacou tropas policiais e pessoal de segurança à paisana para cercar todas as principais praças do Cairo e de outras cidades, e também instruiu celebridades, funcionários públicos do governo e operários (mobilizados através de subornos e ameaças) para que se manifestassem simultaneamente em apoio a Sisi.
Após os protestos de 20 de setembro, também houve um certo nível de decepção entre o público e de desilusão com a retórica de Ali sobre as supostas lutas internas nos serviços de segurança e a suposta intenção do exército de depor Sisi. Foi uma farsa desde o início. Ainda assim, a crença de que o exército e a polícia estariam avaliando a remoção de Sisi do poder incentivou alguns a participar dos protestos.
E, mais importante, para que os protestos espontâneos possam prosseguir, é necessária uma organização para sustentar esse movimento nas ruas, para coordená-lo e articular uma alternativa política. A espontaneidade não dura muito tempo e não é o bastante para derrubar um regime. De fato, desde o golpe militar em julho de 2013, Sisi conseguiu destruir todas as estruturas organizacionais que poderiam desempenhar esse papel: partidos políticos, sindicatos independentes, organizações de juventude e assim por diante. E não foi por acaso que, após as prisões em massa de manifestantes, os serviços de segurança imediatamente voltaram sua atenção para ativistas veteranos e líderes de partidos políticos que ainda estavam em liberdade, mesmo quando não haviam desempenhado nenhum papel na mobilização.
Em resposta ao descontentamento popular, o regime também se apressou em afirmar sua luta contra a corrupção e restaurou os subsídios alimentares a quase dois milhões de egípcios. Seus propagandistas também sugeriram que haverá algumas “reformas políticas” em um futuro próximo. A julgar pela contínua perseguição e tortura de figuras da oposição e pela proibição de dissidência nas ruas, essas reformas não ocorrerão tão cedo.
E o futuro?
A legitimidade de Sisi vem sendo corroída. Sua popularidade despencou em comparação com o que era nos dias quentes do verão do golpe de julho de 2013, quando prometeu estabilidade, segurança e prosperidade econômica durante os tempos turbulentos e incertos após a revolução de 2011. Ele não entregou nada disso.
Isso não significa necessariamente que ele possa ser facilmente deposto pelas convocações online de protestos por Ali ou outras figuras da oposição, e nesse meio tempo, é improvável que ocorra outro golpe militar. Sisi e seus dois filhos mantêm o controle sobre os diferentes serviços de segurança, e a liderança do exército permanece leal, com seus privilégios protegidos e servidos, mesmo quando sua campanha de contra-insurgência no Sinai se mostrou um fracasso catastrófico.A derrota da revolução egípcia pelo golpe militar de Sisi e a guerra suja que se seguiu prejudicaram de maneira profunda as redes de militantes e entidades que poderiam se mobilizar nas ruas e nos ambientes de trabalho. A recuperação levará tempo e esforço, e os levantes regionais no Sudão, na Argélia e em outros lugares ajudarão a agir como um catalisador, pelo seu efeito dominó. Se a revolução for um processo cumulativo, os protestos de setembro foram um salto adiante nesse processo.
*A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.]
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