Por Daniel Feierstein, sociólogo.
Javier Milei começou seu primeiro discurso pós-PASO [eleições primárias argentinas] enfatizando a “vitória na batalha cultural”, um processo que começou antes da sua entrada na política (eu o situaria por volta de 2012) e que, após apresentações em 2019 (com Juan José Gómez Centurión e José Luis Espert) e em 2021 (com o próprio Milei) ganhou enorme força nas PASO 2023 com as forças de Milei e Patricia Bullrich. Esta referência à “batalha cultural” recebeu pouca atenção das análises que circulam, mais interessadas em especulações políticas sobre as vicissitudes da próxima eleição, em outubro.
Fechados em mesas de areia que se assemelham às dos economistas que preveem presságios que nunca se realizam, os analistas políticos especulam sobre a transferência de votos e comportamentos eleitorais. Como os economistas, preveem com sabedoria e confiança fenômenos que depois não se confirmam.
Talvez valha a pena parar um pouquinho para refletir sobre as condições profundas que fazem com que um Milei ou uma Bullrich possam aproveitar politicamente as transformações de médio prazo no senso comum e conduzir os desconfortos e/ou as esperanças do momento presente.
Os líderes políticos (Perón, Alfonsín, Menem, Kirchner) foram tais por sua capacidade de ler condições que não produziram. Parece que desistimos de analisar essas condições, absortos em especulações puramente eleitorais.
A crise dos progressismos realmente existentes
Nas últimas décadas os progressismos tornaram-se (no mundo, na região e no país) cada vez mais conservadores. É significativo que na Argentina seus significantes tenham mudado, embora nunca na chave da transformação: vitória, todos, agora pátria. Já há muito tempo o desejo de mudança foi apropriado pelas forças da direita, inclusive nos seus significantes.
A proposta política básica desses progressismos (em seu programa e na eleição de seus representantes) é “manter tudo mais ou menos como está” – Daniel Feierstein
Isso implica uma minimização dos reais desconfortos expressos pela população: a inflação, a consequente perda do poder aquisitivo dos salários, os estragos produzidos pela insegurança e pelo narcotráfico, a angústia decorrente das transformações identitárias (na masculinidade, nos vínculos sociais, nas relações afetivas, no campo da educação e da saúde, no papel das redes ou da inteligência artificial, etc.).
Essa minimização é acompanhada por uma limitação da liberdade de pensar. Quem ousar se afastar dos dogmas (apontando para o efeito nocivo da insegurança nos bairros populares, da inflação dos salários, da essencialização das identidades ou dos escrachos escolares nos jovens) é rapidamente “cancelado” como “cúmplice da criminologia midiática”, como “quem faz o jogo da direita” ou como representante arcaico do patriarcado ou do colonialismo. O progressismo já tem todas as respostas e não suporta que “as pessoas” não as entendam.
Um conjunto de práticas, outrora virtuosas, também foi questionado pelo progressismo e foi hegemonizado pela direita, como a meritocracia (que quem se esforça mais pode ter acesso a uma vida um pouco melhor) ou a necessidade da austeridade nos representantes políticos ou a condenação da corrupção.
Os progressismos destacam a importância da saúde e da educação públicas diante das propostas privatizantes, ao mesmo tempo em que continuam o ajuste na saúde e na educação (que já vem acontecendo há décadas). Ao mesmo tempo, a maioria dos representantes políticos não conhece ou utiliza esses equipamentos que lutam diariamente contra a degradação, contando apenas com o amor e a dedicação de seus trabalhadores mal remunerados.
“É muito perceptível”, diz o meme. E isso que “é muito perceptível” tem permitido o rápido e contundente avanço da direita na “batalha cultural”, já que consegue iluminar as contradições.
Sair da armadilha do curto prazo
Aconteça o que acontecer em outubro, para incidir de modo real no cenário político e nas correlações de forças, é preciso disputar seriamente a batalha cultural. E não há como fazê-lo sem entender e reverter essas profundas contradições dos progressismos realmente existentes.
A saúde e a educação públicas não podem ser defendidas sem transformá-las e dotá-las de orçamento e qualidade na hora de governar. Não se pode fingir ser um representante dos mais humildes e excluídos vivendo com os luxos e privilégios dos mais ricos.
O apelo à compreensão humana para quem decide resolver os seus problemas apelando para o crime comum contra os seus vizinhos igualmente pobres acaba por se confundir com uma mensagem em que parece que não faz diferença trabalhar ou roubar, ser solidário ou individualista.
Os progressistas pedem paciência para quem a está perdendo. Porque as transformações nunca são para agora; ficam sempre para amanhã. Seja pela situação internacional, pela pandemia, pela seca, pela dívida ou por culpa do adversário político. Do “ah, mas Macri” ao “cuidado com Milei”. Hoje não é a sua vez, aguenta, defende o que temos.
A direita neofascista vende ódio, fazer voar tudo pelos ares, ventos de mudança, “vão todos embora e não fique ninguém”, as mesmas palavras de ordem que as forças de esquerda assumiram com força naqueles anos que se despediram do século XX e que exigiam mudanças, consigna que alimentou a rebelião de 2001.
Se a direita colhe sucesso após sucesso na batalha cultural, talvez seja porque algumas das nossas respostas estão equivocadas, algumas das nossas suposições estão erradas e em algum momento devemos ter perdido o rumo e abandonado a vocação de transformar a sociedade em uma direção de maior justiça.
Para entender isso, precisamos nos encorajar a pensar criticamente, a rever aquelas verdades que damos como certas, a ouvir os verdadeiros desconfortos que esse voto de protesto está gritando para nós, a ouvir quem está sofrendo e dar-lhe uma resposta diferente para a manipulação do ódio, mas também diferente da possível resignação.
Identificar e reconhecer os próprios erros é difícil e exige coragem. Mas é condição de possibilidade para qualquer chance para uma verdadeira disputa cultural e para influir nas vertiginosas transformações da hegemonia que estamos vivendo.
Tradução: Cepat.
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