Por Miguel Urbano Rodrigues.
Conheci Istambul quando me iniciava no ofício de escrever. Voltei agora, transcorridas quase seis décadas.
Foi um estranho reencontro.
A cidade, quando a descobri, tinha um milhão de habitantes; hoje tem mais de 15 milhões e é uma das maiores megalopolis do planeta. Em 1953 camelos pachorrentos ainda deambulavam por ruelas enlameadas; hoje o aeroporto da antiga Constantinopla é um dos mais movimentados da Europa.
Na juventude a Turquia aparecia-me como porta de um Oriente misterioso. Tinha lido os Sete Pilares da Sabedoria de T.E.Lawrence e muita coisa sobre as Cruzadas.
Como a maioria dos jovens da minha geração via na Turquia o país dos turcos, que se ocidentalizara no governo de Ataturk após a desagregação do Império Otomano.
A névoa da ignorância tardou a dissipar- se. Foi somente a partir dos anos 70, em viagens pela Ásia Soviética, que, lentamente, principiei a tomar conhecimento da grande aventura dos povos turcos e da sua contribuição para o progresso da humanidade.
Uma saga esquecida
Em livros que então me ofereceram aprendi que o berço das tribos turcas da antiguidade foi a taiga siberiana. Das montanhas da Transbaikalia, do Orkhon e das margens do Selenga, os primeiros turcos começaram, muito antes do início da Nossa Era, a descer para o Sul. Nas suas lentas migrações, trocaram as florestas pelas estepes da actual Mongólia, e aí essas tribos transformaram-se de sedentárias em nómadas criadores de cavalos, bois, camelos e ovelhas.
Mais tarde, entraram pela China e destruíram e fundaram ali impérios. Muitos séculos depois, correram para Ocidente e invadiram províncias do Império Romano, semeando o terror por onde passavam.
Com o passar dos séculos, ao disseminarem-se pelo mundo, empurrados por grandes fomes ou após guerras com vizinhos agressivos, os turcos diferenciaram-se muito e os idiomas das primitivas sociedades tribais evoluíram, distanciando-se.
Mas turcófonos eram os Hunos de Átila; os Heftalitas que invadiram a China, a Índia e a Pérsia sassânida; os Ávaros que chegaram até à Hungria; os Uigures, professores dos Mongóis e criadores de um alfabeto; os primeiros Búlgaros; os Mamelucos Egípcios.
Turcófonos eram os Seljucidas vindos da Sogdiana (actual Uzbequistão) que reconquistaram Jerusalém aos Cruzados e quase expulsaram Bizâncio da Ásia Menor; os Kazhar, os Kiptchak, os Ptechenegos que povoaram as estepes da Ucrânia e do Sul da Rússia, povos dos quais descendem dezenas de milhões de russos. Os Polovtses, das crónicas medievais russas, eram também nómadas turcos.
Turcófonos são os actuais Kazaks, Uzbeques, Kirguizes, Turquemenos, Azeris.
Turcofónas eram as tribos Karluk, da Sogdiana, que, aliadas aos árabes na cavalgada destes para Oriente, lutaram contra os chineses em Talas, uma batalha que no ano 751 travou definitivamente a avançada da China para o Ocidente.
O finlandês e o estónio mergulham as raízes nos dialectos turcos falados pelos seus antepassados, vindos da Alta Ásia.
A historiografia europeia desconhece, com poucas excepções, a grande aventura dos povos turcos ao longo de mais de dois milénios. A grande maioria dos chamados «Mongóis da conquista» era turca. Mas poucos historiadores, incluindo os árabes e iranianos, assinalam nas suas obras que mais de dois terços dos exércitos dos filhos e netos de Gengis Khan falavam não o mongol, mas línguas turcas com ele aparentadas.
A minha geração «aprendeu» no liceu que os turcos eram muçulmanos fanáticos quando irromperam na Europa. Nos compêndios escolares do meu tempo não era minimamente clara a diferença entre árabes e turcos. Alguns professores aludiam a choques entre os portugueses e os turcos nos mares da Índia, mas as referencias eram superficiais, vagas.
Na Espanha, na Itália e em França o panorama não era muito diferente. A derrota da armada otomana na batalha de Lepanto era celebrada como uma grande vitória da Cristandade contra a barbárie.
Dos turcos foi durante séculos projectada a imagem de gente selvagem e cruel, imagem que o cinema, já na nossa época, contribuiu para levar às massas.
Voltaire, entre outros grandes escritores, apresentou Tamerlão como demónio com figura humana, um flagelo da humanidade. A personagem desse turco chagatai, o maior conquistador do século XIV, único vencedor dos turcos Otomanos, inspirou gerações de dramaturgos, poetas e historiadores que o amaldiçoaram. Foi satanizado em óperas famosas.
É inegável que Tamerlão cometeu crimes comparáveis aos das hordas de Gengis Khan. Mas o autor das chacinas de Isfahan, Damasco e Delhi, entre outras, o turco que ao perseguir as Hordas Mongóis através da Rússia arrasou tudo o que encontrou pela frente, o emir devoto que mandava construir pirâmides com as cabeças dos vencidos, não deixou na historia somente um rasto de violência irracional. Tamerlão atraiu a Samarcanda os maiores artistas e sábios do Islão asiático e fez dela, na época, a mais bela cidade do mundo muçulmano. Alguns dos seus descendentes foram príncipes cultos, que promoveram o chamado renascimento timurida que renovou a arquitectura, a poesia, a pintura, a musica nos países por eles governados. Babur, seu trineto, fundou o Império do Grão Mogol na Índia onde durante dois séculos floresceu uma cultura que criou monumentos maravilhosos como o Tahj Mahal de Agra.
Outro efémero império turco que os historiadores somente recordam como responsável por hecatombes inesquecíveis teve o seu pólo em Ghazni, uma cidade, hoje em ruinas, situada no actual Afeganistão. Um sultão, Mahmud, nas suas campanhas pelo Norte da Índia, actuou como um genocida. Mas esse grande bárbaro foi uma personalidade contraditória. Ghazni, cujo nome está hoje esquecido, emergiu em poucas décadas como a mais prestigiada metrópole cultural do Islão oriental. Admite-se que a sua população rondou o milhão de habitantes. No século XI, nos territórios governados pelos Ghaznividas nasceram, viveram e criaram ciência, cultura e beleza alguns dos mais famosos sábios e artistas do Islão, entre os quais Al Biruni, etnólogo, astronomo, matematico; Ferdauci, o autor do poema épico Xá Naama (o livro dos reis), considerado o criador do persa moderno; Sanai, um sufista que foi um precursor de Dante; Ibn Sina, o Avicena, cujo tratado de Medicina foi referencia na Europa durante cinco séculos.
Turco era o Xá Ismail, o primeiro dos Safévides, a dinastia de mecenas durante a qual a arquitectura e a pintura persas atingiram o apogeu, adquirindo prestígio mundial.
Do Ártico ao Mediterrâneo
Não esqueci o choque recebido em l974 ao visitar a Republica da Iakutia no grande Norte siberiano. Estava instalado num hotel confortável, mas fóra o termómetro descera a 45 graus negativos. Os Iacutos, pelo aspecto físico, traziam-me à memória os inuit da Groenlândia e falavam uma língua muito diferente do russo. Alguns não o entendiam. Um jovem traduzia para o meu intérprete que vertia para o português.
Perguntei que idioma era aquele?
Quando ouvi que se expressavam num dos muitos dialectos turcos da Sibéria, a resposta lançou-me numa meditação inesperada sobre o longo caminho percorrido por antepassados daquela gente, empurrada para o Norte por outros povos turcófonos.
Perante o meu espanto, um professor russo que acompanhava a conversa esclareceu que das terras geladas do Estreito de Behring, frente ao Alasca, ao Adriático, numa faixa que atravessa a Ásia e a Europa, continuam a viver comunidades turcófonas.
Uma das mais prodigiosas aventuras dos antigos turcos foi a das tribos Oghuz que, saindo no século XII das margens orientais do Cáspio, vieram em vagarosa caminhada fixar-se na Ásia Menor como vassalas dos emires seljucidas que então lutavam contra o Império Bizantino. Do nome do seu chefe, Othman, ficaram conhecidos como os Otomanos, fundadores de um Império gigantesco. Ao longo de duzentos anos foram a primeira potência militar do mundo.
Durante séculos, os primitivos turcos permaneceram fiéis à religião animista que os acompanhou nas suas migrações, da taiga às estepes, muito semelhante à dos Mongóis. Acreditavam num deus supremo, Tengri, o céu azul, criador do universo e veneravam e temiam forças da Natureza.
Era uma religião tolerante aberta à compreensão das praticadas pelos povos dos países conquistados ou vizinhos. A rápida absorção de culturas muito mais elaboradas do que a das estepes levou os primitivos turcos a assumir grandes religiões da antiguidade. Na China tornaram-se budistas na época em que o budismo por algum tempo ali penetrou. Nos oásis do Tarim (actual Sinkiang Uigur) aderiram ao maniqueísmo. Uma pequena minoria adoptou o cristianismo nestoriano . Os Khazars da Rússia converteram-se ao judaísmo. Mas foi no primeiro contacto com os árabes, sobretudo na Sogdiana (actual Uzbequistão), que a avalancha das tribos turcas na sua deslocação para ocidente fez a opção religiosa que viria a ter uma grande influência no rumo da Historia.
Em meados do século VIII, o Califado Abássida exercia uma soberania nominal sobre uma área enorme, da China ao Egipto, do Indo à Sicília. A fase de expansão findara, iniciava-se a defensiva. Os árabes eram poucos, os territórios imensos. As turbulentas tribos turcas forneceram-lhe os soldados de que necessitava. Formidáveis guerreiros, os turcos tornaram-se a coluna vertebral dos exércitos do Islão asiático. E aconteceu o inevitável. O poder militar conquistou rapidamente o poder politico. Primeiro na Sogdiana, depois no actual Afeganistão, no Irão, no Iraque, no norte islamizado da Índia surgiram sultanatos turcos. Em Bagdad, o Califa, o chefe religioso, já era uma figura pouco mais do que decorativa, quando os Seljucidas enfrentaram a invasão dos Cruzados no século X.
Eram poucos e diferentes
Os turcófonos não constituem uma comunidade de povos etnicamente homogénea. Os antigos Kirguizes da Alta Ásia eram louros e de pele clara; a maioria dos Petchenegos, segundo as crónicas russas medievais, tinham os olhos azuis e os cabelos claros; a fisionomia dos Kiptchak também não era oriental. O príncipe Igor, heroi lendário da Rússia antiga, era um Polovtse e a sua língua materna o turco O denominador comum do mundo turco foi o idioma e não a raça.
Eram muitos os turcos da conquista? Não, eram poucos, tal como os visigodos que se estabeleceram em Espanha e os Francos na Gália Romana. O historiador Claude Cahen avalia em 300. 000 no máximo o total dos seljucidas que invadiram a Ásia Menor, procedentes do Irão, e ali se fixaram. Muito menos numerosas eram as tribos otomanas que se instalaram no planalto com a concordância dos Bizantinos.
No século XIII, os turcos constituíam apenas 10% da população da Anatólia, não obstante o poder militar dos sultanatos existentes.
A mestiçagem foi um processo complexo. Os persas, com raras excepções, não se fundiram com os turcos. Na Geórgia e na Arménia ocorreu o mesmo: as populações locais não se misturaram com os invasores turcos.
Foi nas regiões helenizadas do Império Bizantino que a turquizaçao das populações avançou embora lentamente. Mas no século XX, mais de um terço dos habitantes da Ásia Menor eram gregos, kurdos, arménios. Não exageram os historiadores que identificam na Turquia actual um Estado nacão criado e viabilizado pela vontade de um homem.
O furacão otomano
Os otomanos, de pequena comunidade tribal estabelecida em terras bizantinas transformaram-se rapidamente num Sultanato que alastrou pela Ásia Menor e, ganhando força e prestígio, construíram os alicerces de um grande Império. Em meados do século XIV já estavam solidamente implantados no coração da Península Balcânica e infligiram sucessivas e esmagadoras derrotas aos príncipes romenos, búlgaros, sérvios e húngaros.
Quando em 1453 Mehmet II, o jovem sultão otomano, se apresentou com um grande exército perante as muralhas de Constantinopla, a grande cidade era tudo o que restava do Império Romano do Oriente.
As potências ocidentais não atenderam aos pungentes apelos de ajuda chegados de Bizâncio. As querelas religiosas que tinham separado Roma do Patriarcado Ortodoxo haviam gerado uma seara de ódios.
Durante mais de um milénio, a orgulhosa Bizâncio, filha de Roma e da Grécia, resistira vitoriosamente às investidas de godos, celtas, persas, árabes, búlgaros, russos. ;Mas os cavaleiros da IV Cruzada, financiados por Veneza, tomaram a cidade por dentro, saquearam os seus palácios igrejas e criaram um efémero império Latino.
Restaurado em 1261,o Império Bizantino sobreviveu por quase dois séculos. Dizia-se que as muralhas de Constantinopla eram inexpugnáveis. Mas cederam perante a avalancha otomana. No cerco, o sultão, para abrir brechas nas muralhas, utilizou os maiores canhões até então fabricados.
Para os historiadores do Ocidente, a queda de Constantinopla foi um acontecimento trágico que assinalou o fim da Idade Média.
Na perspectiva dos muçulmanos, a tomada da cidadela dos cristãos marcou o inicio da era de ouro do Império Otomano. Selim I derrotou os persas, conquistou a Síria, a Palestina e o Egipto e somou o poder religioso ao político, assumindo-se como herdeiro do Califado. Durante o longo reinado do filho, Solimão I, o Magnifico, a expansão prosseguiu num ritmo que alarmou as grandes monarquias cristãs. Os exércitos otomanos ultrapassaram o Eufrates e o Tigre e as suas esquadras enfrentaram os portugueses nos mares da Índia. A bandeira do crescente foi hasteada em Tripoli, Tunis , Argel e Budapeste e o Mediterrâneo, até ao Adriático, tornou-se um lago turco.
A basílica de Santa Sofia, transformada em mesquita, foi uma fonte de inspiração para os arquitectos otomanos. Istambul no final do século XVI tinha recuperado o antigo esplendor de Constantinopla e era a maior e mais próspera capital da Europa com uma população que excedia 600 000 habitantes.
O Império tinha uma superfície de oito milhões de quilómetros quadrados ( 16 vezes o tamanho da Espanha) e uma população superior a 60 milhões de habitantes.
Uma nova cultura surgiu de um sincretismo nascido da fusão difícil da persa, da árabe e da bizantina. Na arquitectura, na pintura, na cerâmica, na tapeçaria, os otomanos inovaram durante dois séculos. As grandes mesquitas imperiais, como a Suleimanieh e a Sultanahmet, são obras de arte maravilhosas, património da humanidade.
No século XVII principiou a decadência, lenta, mas irreversível.
Ao terminar a primeira guerra mundial, o Império Otomano, derrotado, desapareceu. Os vencedores tomaram conta das Províncias Árabes e a própria Turquia – berço e núcleo do Estado imperial multinacional – ocupada, retalhada e invadida, esteve prestes a desaparecer.
Foi então que surgiu um daqueles raros homens que, em situações excepcionais, alteram o caminhar dos povos. Mustafa Kemal, o Ataturk, desafiou a lógica da História. Pela guerra e pela negociação garantiu a continuidade da Turquia. Transformou em realidades concretas o impossível aparente. Expulsou as tropas estrangeiras em quatro anos de guerra, depôs o ultimo sultão, aboliu o Califado, proclamou a República laica, proibiu o vestuário tradicional, atribuiu à mulher a igualdade de direitos, adoptou o calendário gregoriano e impôs a substituição do alfabeto árabe pelo latino.
Poucas revoluções mudaram tão profundamente a vida de um povo num espaço de tempo tão breve. Uma cultura milenária, asiática, oriental, foi anatemizada e reprimida e incentivada a adesão a uma cultura ocidental que durante séculos aparecera aos turcos otomanos como hostil.
A Turquia sobreviveu, mas a transição, traumática, dolorosa, deixou sequelas cujos efeitos continuam a manifestar-se.
Os turcos contemporâneos sabem que todas as civilizações quando morrem não voltam. Mas as sementes ficam e a sua germinação é complexa e imprevisível.
Voltarei ao tema em texto de reflexão sobre o meu reencontro com Istambul, uma cidade fascinante, implantada num dos mais belos cenários do mundo.
Vila Nova de Gaia, Janeiro de 2011