Na ópera “Don Giovanni”, de Mozart, há logo no início uma ária maravilhosa, cantada por Leporello, empregado do personagem título, que talvez pudesse inspirar alguns jornalistas – e não apenas do Brasil. Depois de elencar uma série de sacrifícios, como dormir mal, comer pior ainda e ser vigia de Don Giovanni, enquanto o grande conquistador se diverte com as suas conquistas amorosas, Leporello desabafa:”Io non voglio più servire”(“Eu não quero mais ser empregado” – eu não quero mais servir – Don Giovanni, naturalmente). Dormir mal, para um jornalista, talvez seja a conseqüência mais próxima de seu ofício: em geral, jornalistas não são proxenetas – mas a má consciência de omitir e mentir é claramente incompatível – para alguns – com o bom sono. “Io non voglio più servire” poderia, assim, ser o correlato ao “Io non voglio più mentire”.
São opções que se colocam, mas sempre na condição servil de Leporello: a alternativa é, realmente, tanto para o personagem quanto para os jornalistas, a de eventualmente não contarem com as lantejoular da Corte, ou máxime, de ficarem desempregados.
O mais recente dilema exposto, neste sentido, deu-se na morte do empresário Robert Civita. Quem quer que tenha trabalhado nos primórdios da revista “Veja”, há mais de 40 anos, deverá se recordar do então jovem empresário, filho do “Doutor Victor Civita” – como chamávamos o fundador da Abril, que nem de longe sugeriria o feroz crítico amoral da esquerda em que sua revista se converteria, sabe-se lá por que diabos. No contato diário com os então jovens jornalistas, o que transparecia do também jovem empresário não era de modo algum um colaborador da ditadura então em seus dias mais sombrios. Pelo contrário, o que ficava era um homem razoável, de trato lhano – que aceitava de bom grado que havia uma incompatibilidade entre a orientação impressa pelo verdadeiro criador da revista, o jornalista Mino Carta, e a censura militar, que, então, de forma cruel, começava a pesar sobre o Brasil.
Ora, ao se ler a matéria panegírica da revista ao ilustre falecido, o que se tem é justamente a diminuição do liberal em favor de um homem que hoje justifica a “Veja” no que ela viria a ser. É aqui que a “síndrome de Leporello”, chamemo-la assim, deveria assaltar os jornalistas. Se o homem que bancou a revista – mas que não a criou, já que esta foi obra do Mino Carta – era exatamente o oposto do que “Veja” se tornou – fica a pergunta quanto ao empresário: pois se, como disse o jornalista Elmar Bones (que foi também da revista nos seus primórdios) a criatura não inventou o criador, deu-se então o contrário, ou foi o quê?
Talvez nos confins das respostas que não temos – sobre os jornalistas que assoberbam a sua função a inventar o que não existe – reste apenas e tão somente o de sempre: mentir ou omitir – conforme o caso. Não é de se deblaterar contra “Veja”: ela é o que dela fizeram seus jornalistas e não propriamente o que se diz ter sido obra exclusiva do sr. Robert Civita.
Ocorre que isto acontece com quase todas as publicações brasileiras contemporâneas. Discutir de quem é a culpa do que for pode desanuviar algumas dúvidas, mas não diz o fundamental – que a imprensa, a grande imprensa, mente e omite. E não só no Brasil. O “Washington Post” garantiu com todas letras que, ao contrário do que dizia a ONU, não havia dúvidas quanto à existência de armas de destruição em massa no Iraque: era o mote que faltava a George W. Bush para destroçar tanto o Iraque quanto o Afeganistão. Algumas centenas de milhares de mortos depois, o jornal se desdisse – mas já, então, a sociedade americana se tinha transformado numa das muitas versões, em sua história de uma democracia vigiada, extremamente exposta a espiões. Só que, agora, sob a supervisão de um presidente que se diz e que se elegeu em cima de teses progressistas. E sob a promessa, sempre adiada, de “acabar” com o vergonhoso campo de concentração de Guantánamo.
No Brasil é quase impossível deslindar uma a uma as notícias falsas, as omissões – e a má consciência dos numerosos Leporellos que ela própria, a grande imprensa, vem criando. Desde o mito da fazenda do filho do Lula, passando pelas falsas denúncias do ministro Gilmar Mendes – de que Lula lhe pedira que intercedesse junto a seus pares para inocentar os petistas do mensalão (história desmentida por Nelson Jobim), passando às falsas previsões de que o Brasil teria um apagão eminente (isso em plena época das cheias ) até a ideia de que haveria uma “hiperinflação” de 6 por cento (?), sem falar da grande burla que foi o julgamento 470, e da incapacidade de o Brasil construir estádios para a copa – todos hoje devidamente prontinhos sem que se verifiquem atos de “contrição” – acumulam-se evidências de que, para os possíveis jornalistas honestos, precipita-se a idéia de que ” Io non voglio più servire”. São tantas, aliás, as mentiras e omissões que a figura de Leporello torna-se sempiternamente recorrente.
Com efeito, numa outra cena da ópera de Mozart, o empregado de Don Giovanni, ao discorrer sobre os pecados do sedutor, expõe listas e listas dos nomes das mulheres “violadas” por Don Giovanni; são catataus de senhoras e senhoritas e indicações das nacionalidades de cada uma delas, frutos das conquistas donjuanescas pela Europa e algures. No Brasil, a considerar o número de mentiras, omissões e notícias capciosas, seriam necessários, quem sabe, vários volumes: eles talvez indicassem que a má consciência de Leporello não é tão encontrável entre os profissionais da imprensa do Brasil. Um exemplo é dado pela própria “Veja” desta semana; na capa anuncia-se o que a revista considera “por fim” a “Verdade sobre José Dirceu”; embaixo, porém, uma contradição. Na explicação da publicação há uma deixa – quem diz sobre as verdades sobre José Dirceu é uma biografia “não autorizada” do acusado. Ora, se a biografia “não” é autorizada, fica a velha questão – talvez a “verdade” não seja verdadeira e o fato de a revista informar que o biografado não a autorizou já desdiz o que a “Veja” tem a dizer.
Exigir, em suma, que as publicações tipo “Veja” se comportem como o Leporello da ópera talvez seja apenas uma ilusão. O empregado de Don Giovanni moe-se de arrependimentos por compactuar com o incansável e desonesto sedutor. Não se afigura o caso das publicações do tipo – quase todas da chamada grande imprensa.
E talvez, enfim, só se esteja superestimando a “mauvaise conscience” dos jornalistas a compará-los com Leporello. Quem sabe o que se tenha é justamente a mentalidade de Don Giovanni: o facínora da ópera de Mozart é um malfeitor impenitente. No último ato, quando o fantasma de uma de suas vítimas intima-o a se penitenciar de seus maus atos, ele teima em não se reconhecer como vilão. E é varrido não apenas de sua história particular, mas da história dos homens. Como muito bem o interpretou Ken Russel na versão que fez para o cinema da ópera de Mozart, o que o compositor e seu libretista (o também genial Lorenzo da Ponte) queriam dizer é que a história não perdoa a mentira – um dia ela soçobra com os interesses classistas reacionários que ela defende. Mas isso talvez exija uma outra tese – de que Leporello seria o alter-ego de Don Giovanni. Seja como for, talvez nunca a nenhum dos jornalistas que colaboram com tais publicações seja dado confessarem “Io non voglio più servire”. Eles servem. E isso é o pior dos mundos para quem acredita numa imprensa “livre” como dizem seus áulicos – ou seja, os Leporellos não arrependidos desta grande ópera que é o Brasil atual.
Enio Squeff é artista plástico e jornalista.
Fonte: Carta Maior.
Foto: www.meyersound.com