Se você assistiu ao documentário Ilha das Flores, sabe que o ser humano é superior aos outros animais porque possui um polegar opositor e um telencéfalo altamente desenvolvido. Mas o que faz, de fato, o homem se considerar acima dos golfinhos, javalis e orangotangos, por exemplo, é que apenas ele, o homem, tem alma.
Sob o ponto de vista teológico, a alma existe porque Deus existe e, nós, seres humanos, somos Sua imagem e semelhança, somos o grau mais alto da Criação. Portanto, é preciso que Deus exista. A aceitação da ausência Dele implica na aceitação de que não somos tão importantes como imaginamos e, pior, implica na consciência de que a dor não tem sentido e não trará nenhuma recompensa.
O problema, porém, é que a arrogância do homem em se considerar a “espécie escolhida”, exatamente por ter uma alma, o faz cometer uma série de atos bárbaros contra outras espécies.
Não irei citar casos de tortura (como passarinhos trancafiados em gaiolas) ou experimentos com animais, tão comuns e tão aceitos. Às vezes, acontecimentos aparentemente banais traduzem com mais exatidão o quanto somos cruéis e indiferentes, apesar do polegar opositor, do telencéfalo altamente desenvolvido e da alma.
Os fatos: Há alguns meses, depois do almoço num clube da cidade, na saída do restaurante, pisei num cachorro abandonado. Era um cocker preto, já velho. Estava num estado miserável. Tinha uma tosse intermitente, como uma crise de asma. Como dezenas de outras pessoas, dei um suspiro de piedade e segui meu caminho.
Juliana, minha mulher, parou, olhou o bicho e o pegou no colo. Não se deve pegar cachorros abandonados no colo, em hipótese alguma, a não ser que você seja uma espécie de herói ocasional, salvador de criancinhas, velhos e animais em perigo. “Se ele ficar aqui, vai morrer”, disse minha mulher. Ela é uma espécie de heroína ocasional.
Contra a minha vontade, o cão doente foi para o nosso apartamento. Ele andava meio de lado, um andar de bêbado, e por isso demos o nome de Pisco – uma bebida alcoólica chilena. Na primeira noite não conseguimos dormir porque ele parecia à beira da morte, sufocado por um ataque de asma muito intenso.
Na segunda ou terceira noite, já medicado por uma veterinária competente, Pisco se achegou no sofá, colocou a cabeça no meu colo e ficou me olhando, como se estivesse agradecendo a acolhida. Tentei explicar-lhe que eu não tinha nada com isso, não fora responsabilidade minha e ele que agradecesse a minha mulher e fosse passar bem. Dormimos juntos.
Juliana espalhou cartazes pela cidade, disparou e-mails, entrou em contato com ONGs. Duas semanas depois, os donos do Pisco viram um dos anúncios e nos ligaram. Não foram capazes de perguntar como o cachorro estava, apenas disseram: “ele sempre apronta”. Achei ainda mais estranho quando Pisco os viu e não demonstrou nenhuma alegria. Nem eles demonstraram alegria alguma.
Apesar disso, tinha tudo para ser um final de feliz. Eu havia me livrado daquele cachorro antes que o afeto me tirasse a capacidade de discernimento. Os donos do Pisco pareciam ser – e provavelmente são – pessoas boas. Era um casal simpático, ele médico e ela enfermeira.
Pois bem, na última quinta-feira, três meses depois desse episódio, sob um dilúvio de chuvas na cidade, Pisco estava – outra vez – vagando pelas ruas, sem eira nem beira, perdido, doente e esfomeado. Alguém o achou e o deixou numa clínica para animais.
A veterinária, nossa conhecida, nos ligou. Pisco estava mais magro e com a mesma tosse. Fez uma festa quando nos viu. E fiquei pensando nos donos desse cachorro, a enfermeira e o médico. Partindo do pressuposto que ele tenha fugido, a responsabilidade é do casal. Se o cachorro é reincidente nas fugas, eles deveriam construir um muro mais alto, um portão mais seguro, uma janela sem frestas.
Se ele não recebeu os cuidados necessários, ou se foi abandonado, o que é uma forma de maus-tratos, o casal infringiu o Artigo 32 da Lei Federal nº. 9.605/98. A pena é de três meses a um ano de prisão, além de multa. Da maneira como ele estava magro, esfomeado, sujo, com os pêlos completamente embaraçados, os donos do Pisco estavam sendo, no mínimo, negligentes. Na saída do Pet Shop – já contatado o casal, que foi buscá-lo – aconteceu uma coincidência reveladora.
Vi um morador de rua sentado ao lado de três cachorros. Ele dava a comida na boca de cada um, com delicadeza e carinho. Aproximei-me e perguntei os nomes dos vira-latas: “Athos, Porthos e Aramis”, ele respondeu. “Meu nome deveria D’Artagnan, como no livro daquele francês, mas é Francisco, a seu dispor”. Era um sujeito simpático. “Conheci todos os tipos de pessoas”, ele disse, “mas nunca tive amigos tão corajosos, leais e alegres como esses três bichos”.
Fui a um bar próximo e perguntei sobre aquele morador de rua. “Ele é conhecido como o anjo da guarda dos animais”, contou o proprietário. “Faz tudo por eles, reparte toda a comida, sempre. Eu não tenho cachorro, sou alérgico a pêlo, também não gosto muito de morador de rua que fica de vagabundagem por aí, mas aqueles quatro, olha, vou dizer pro senhor, é bonito de se ver, ali tem amor de verdade”.
Há pessoas, como minha mulher e este morador de rua, capazes do afeto gratuito e da indignação ética. Só que eles são e serão sempre uma minoria. A grande maioria, com seus polegares opositores, telencéfalos altamente desenvolvidos e alma, não se importa, toca em frente sem mexer uma palha. E é exatamente essa maioria que se acha, pretensiosamente, a espécie escolhida, espécie que é, ou deveria ser, a imagem e semelhança de Deus.
Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes e colaborador do Portal Desacato. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira.