Por Luciano Farias.
Na noite do último sábado (24/11) estive na comunidade do morro Santa Marta, no Rio, acompanhado de um grupo de aproximadamente 70 pessoas. A visita fazia parte das atividades culturais complementares à programação do 18ª curso anual do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), entidade que é hoje a principal referência no debate sobre as questões teóricas e práticas da comunicação sindical e popular no Brasil. Para quem não lembra, foi ali naquele morro que, em 1996, o astro do pop, Michel Jackson, gravou o clipe da música “They Don’t Care About Us” (Eles não ligam pra gente).
Vito tem motivos que justificam o seu pedido. Após a pacificação, as empresas turísticas no Rio de Janeiro passaram a incorporar as visitas às comunidades aos seus pacotes comerciais. Poucos turistas, entretanto, percorrem as vielas estreitas dos morros. Na maioria das vezes, usam jipes parecidos com os que são usados em safáris na África para chegar, por uma estrada paralela, ao ponto mais alto da favela. O bondinho, que deveria servir somente aos moradores locais, também passou a ser usado para exploração turística.
Ao contrário do que muitos pensam, a comunidade tem uma vida noturna bastante animada. Há vários bares, botecos e pequenas mercearias, que funcionam literalmente colados aos barracos. Num deles, o banheiro usado pelos visitantes fica dentro da própria casa, no meio da sala. No morro, a cerveja custa R$ 5.50 a garrafa. É possível comer um lanche por apenas R$ 3,00. O dono do bar diz que o turismo não trouxe ganhos. “Eles nem passam por aqui, vão direto pra cima do morro, pelo bondinho”, reclama.
Também está enganado quem pensa que as casas são totalmente precárias. Muitas já estão equipadas com TV LCD e ar condicionado. O lugar é quente e por isso muitas pessoas dormem com as portas abertas. Há lugares bem iluminados, outros nem tanto. Alguém nos conta que ali quase tudo é feito pelos próprios moradores. Os custos de instalação e de equipamentos elétricos, por exemplo, como lâmpadas, fios e postes, são pagos pelos próprios moradores, apesar da cobrança de taxa de luz pública pela Prefeitura. Em alguns pontos, as ruas são espaçosas, noutros as vielas são tão apertadas que a impressão que se tem é de estar passando por dentro dos barracos, que se misturam uns aos outros, sem qualquer tipo de limite ou muro. Na favela, as vidas se distinguem apenas por suas histórias, não por cercas. Alguns pontos do morro possuem rede de esgoto, mas em muitos locais ele ainda corre a céu aberto por pequenas valetas. A água tratada chega em todos os pontos.
Os moradores são simpáticos e alegres, te cumprimentam, fazem amizade fácil. Uma gente simples, cativante. A imensa maioria é formada por negros, descendentes de escravos, e nordestinos.
Apesar dos poucos avanços, é nítida a falta de estrutura em termos de serviços básicos. O morro não possui creche, nem posto de saúde. Numa emergência médica, só há duas alternativas: ou o socorro vem de carro, pela estrada paralela; ou pelo bondinho, que é lento e demorado. O fim dos conflitos armados e o processo de pacificação não foram acompanhados de investimentos em serviços públicos na comunidade. As lideranças dos movimentos sociais denunciam que isso não acontece por acaso.
De olho nos megaeventos esportivos, como a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e as Olimpíadas em 2016, as classes dominantes do Rio decidiram intensificar o processo de “higienização” das áreas nobres da cidade, preparando o terreno para a remoção das famílias e a tomada do lugar pela especulação imobiliária. Como todos sabem, a zona sul é um local altamente valorizado. De frente para o bairro de Botafogo, o morro Santa Marta oferece uma vista inigualável para as praias do Leme, Leblon e Copacabana. A visão da estátua do cristo redentor iluminado enche os olhos, principalmente à noite. Livres dos comerciantes varejistas de drogas, como são chamados os traficantes, mas sem qualquer melhoria nas áreas de saúde, transporte e educação, o povo do morro hoje está sendo compelido a vender ou alugar suas casas para pessoas sem qualquer identidade com o local. Muitos, inclusive, já sucumbiram ao canto da sereia. Há casos de pessoas que venderam seu barraco por R$ 30 mil, não conseguiram comprar nada em outro lugar e agora moram de forma ainda mais precária em outras favelas, longe da zona valorizada da cidade, onde o poder público e a mídia não vão, porque o que interessa nesse momento para o governo e os grandes meios de comunicação é a “limpeza” da parte rica do Rio.
É como se a pacificação tivesse colocado uma enorme placa de “Vende-se” no morro. Estrangeiros, inclusive, já compraram casas e promovem reformas. O aluguel de um barraco pequeno, de dois quartos, não sai por menos de R$ 800,00 mensais. A pacificação é vista por muita gente como uma forma simpática de oferecer segurança à comunidade, para destruir qualquer tipo de resistência às remoções e ao processo de descaracterização da comunidade. Há denúncias de que o mega especulador Eicke Batista planeja instalar um resort na parte mais alta do Santa Marta.
Não é sem razão que o muro de concreto construído em volta do morro, a pretexto de impedir a construção de novos barracos sobre as áreas de preservação ambiental na cidade, é visto pela comunidade como mais um elemento no acelerado processo de segregação das favelas da zona sul. Chamados pelo governo de “ecolimites”, os muros vão servir, na prática, para separar, fisicamente, os pobres dos ricos; os moradores das favelas, dos grandes empreendimentos. Hoje no Rio os espaços entre uma classe e outra estão cada vez mais demarcados.
Mas não é apenas o fator econômico que preocupa. O poder político na comunidade também mudou de cara, perdeu sua feição ilegal e agora passou a ser exercido de forma contundente pelas UPPs. As Unidades de Polícia Pacificadora não garantem apenas a segurança e o controle, por meio da presença física de homens armados ou de câmeras de monitoramento instaladas em pontos estratégicos da favela. A polícia agora garante também a implantação, sem qualquer debate com as lideranças comunitárias, de todos os projetos da prefeitura e do governo para o local. Nada é negociado com os moradores. Nomes de ruas são trocados, placas são instaladas do dia pra noite. O mosaico e a estátua construídos na laje onde Michael Jackson gravou seu clipe reinam absolutos, enquanto a comunidade é impedida de colocar ali uma simples placa em homenagem a Dedé, o morador que morreu eletrocutado enquanto trabalhava na construção da obra.
A visão dos moradores a respeito do processo de pacificação não é única. Seu Antônio é exemplo de pessoa influenciada pelo discurso oficial. Pai de seis filhos, ele fala com orgulho das mudanças trazidas pelas UPPs. “Aqui antes, pra ter água, tinha que carregar balde nas costas. Agora temos tudo”, diz. Seu Antônio trabalha como porteiro em dois prédios no bairro do Botafogo, no pé do morro. Com os ganhos dos dois empregos, ajudou a pagar a faculdade particular de medicina para uma das filhas. “A formatura é esse mês. É a única com faculdade na família”, lembra. Seu Antônio não faz críticas à pacificação. Sem acesso a informações suficientes para desenvolver outra visão do processo, ele exalta as melhorias e minimiza os problemas, que não são poucos, destacando apenas os pontos positivos. Como seus vizinhos, ele é mais um nordestino que veio para o Rio e hoje não percebe que, mais uma vez, pode voltar a ser expulso do local onde mora.
A relação com o tema do tráfico é igualmente complexa. Do alto de sua simplicidade, Seu Antônio divide aqueles que criticam a pacificação em dois grandes grupos. “Aqui tem de tudo, rapaz. Tem aqueles criticam, mas nos ajudam (referindo-se aos líderes dos movimentos sociais e comunitários), mas também tem aqueles que perderam muito com a saída dos traficantes. E quem perde não gosta, né”, analisa. Perguntado se há problemas com as UPPs, ele fala baixinho e desconversa. Diz que a comunidade, acostumada aos conflitos, ainda vai demorar a se adaptar à presença da Polícia. Mas não há policiais em todos os locais. A vigilância é feita por câmeras e há apenas uma base permanente na entrada da favela. Não precisa ser muito inteligente pra perceber que a saída dos traficantes foi negociada com o poder público. Não houve resistência. Não houve transição. O espetáculo montado pela rede Globo foi uma farsa.
A pacificação das favelas da zona sul carioca, na verdade, é um projeto antigo, que só nos últimos anos reuniu as condições objetivas necessárias à sua implantação. A vinda de cantores e celebridades, a inserção dessas comunidades em roteiros de novela e a construção de grandes bolsões de casas populares em áreas da zona norte e oeste deixam clara a verdadeira intenção das classes dominantes no Rio: “limpar” os morros da zona sul, valorizar o local, atrair empreendimentos, segregar e expulsar seus habitantes, para entregar essas áreas à especulação imobiliária e ao lucro.