Por Victor Uchôa, para BBC Brasil.
Dois homens, uma divergência política, 12 facadas. Parece uma sequência sem lógica – e é –, mas foi ela que acabou com a vida do mestre de capoeira, compositor e dançarino baiano Romualdo Rosário da Costa, conhecido como Moa do Katendê, de 63 anos.
Na versão do irmão da vítima, o alfaiate Reginaldo Rosário da Costa, de 68 anos, às 22h15 do domingo, primeiro turno das eleições no Brasil, após a definição de que Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) se enfrentarão no segundo turno, ele e Mestre Moa chegaram ao Bar do João, reduto que frequentavam há muitos anos, localizado bem de frente para o Dique do Tororó, ponto turístico na região central de Salvador. Ali, a cerca de 500 metros de onde a família morou a vida inteira, começam a tomar cerveja e conversar sobre os resultados do pleito eleitoral, conta. Ambos haviam votado no candidato do PT.
Às 22h25, Germínio do Amor Divino Pereira, de 51 anos, primo da dupla, passa na porta do bar, vê Moa e Reginaldo e se junta a eles, de acordo com Reginaldo.
Passados mais 10 minutos, segundo a mesma versão, quem entra no bar é o barbeiro Paulo Sérgio Ferreira de Santana, de 36 anos, que ainda não sabe, mas dali a pouco tempo vai matar o Mestre Moa do Katendê.
Abatido e sem força na voz, o alfaiate Reginaldo disse à BBC News Brasil que, de repente, Paulo Sérgio se intrometeu na conversa da família, dizendo que o país precisava de mudança e quem tinha que ganhar a eleição era Bolsonaro.
“Eu respondi a ele: ‘rapaz, você é novo, ainda não sabe nada da vida’. Ele aí já veio com grosseria e Moa se meteu, também dizendo que ele não sabia pelo que já passamos. Disse assim: ‘você não sabe o quanto sofri pra ter liberdade’. Eles ficaram discutindo e até João (dono do bar) falou pro cara: ‘rapaz, olhe com quem você tá discutindo, com um senhor’. Aí ele se afastou, pagou a conta e foi embora”, relata Reginaldo.
+ Vídeo: Quem é Moa do Katendê, o mestre da capoeira assassinado por um fã de Bolsonaro
Volta repentina do esfaqueador
O irmão da vítima afirma que, cinco minutos após deixar o bar, Paulo Sérgio surgiu repentinamente, atacando seu irmão por trás a facadas. “Eu só vi o vulto. Ele veio do nada e passou junto de mim já dando facada. Germínio tentou defender, mas não adiantou. Como é que o cara dá 12 facadas assim em meu irmão? Chegou na covardia. Foi uma discussão de política e pronto. Se fosse coisa séria, a gente ia ficar lá sentado bebendo?”, indaga Reginaldo, como quem questiona a si mesmo.
Ele disse que, com o corpo de Moa do Katendê já no chão, Paulo Sérgio ameaçou golpear quem estava em volta – quatro outros clientes –, abriu caminho e fugiu.
Acionada, a Polícia Militar encontrou o assassino minutos depois, escondido na casa onde morava há dois meses com a mulher e dois filhos, a 100 metros do local do crime.
“Os policiais da 26ª Companhia Independente de Polícia Militar avistaram um rastro de sangue que levava até uma casa e prenderam em flagrante o homicida. Ele já estava com uma mochila com roupas no intuito de fugir”, informou a corporação em nota.
Golpeado no braço, Germínio, primo de Mestre Moa, ainda está hospitalizado, mas sem risco de morte.
À 0h38 da segunda-feira, quando Paulo Sérgio já estava dentro do camburão da PM, tocou o celular de Somonair da Costa, de 35 anos. Filha de Moa do Katendê, ela dormia sem saber que o pai fora morto perto de sua casa.
“Tomei aquele susto quando o celular tocou e já acordei me tremendo, porque perdi minha mãe há um mês de enfarto. Era uma amiga com essa notícia. Bateu o desespero, acordei meu irmão, a gente saiu correndo. Quando cheguei, só vi meu pai lavado de sangue. Não dá nem pra acreditar nisso”, narra a professora de dança.
Versões
Responsável pelo caso, a delegada Milena Calmon, do Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP), descreve Paulo Sérgio como agressivo e diz que ele cai em contradição em suas versões. À polícia, o barbeiro já havia reconhecido a discussão por divergência política, o que foi confirmado por testemunhas já ouvidas.
“Foi mesmo uma discussão por causa de política, até a vítima sobrevivente já confirmou. O autor do crime estava defendendo Bolsonaro e a vítima, do lado do PT. De acordo com as testemunhas, houve ofensas verbais de lado a lado. O autor então foi em casa, pegou a faca, voltou e fez o que fez”, afirmou a delegada.
Mas, na delegacia, Paulo Sergio, um homem corpulento de 1,80 m que contou ter começado a beber na tarde do domingo, negou a discussão política e alegou, falando a jornalistas, que estava apenas conversando “sobre futebol” com o dono do bar.
“Ele que levantou e começou a me chamar de preto e veadinho. Eu bebendo, fiquei exaltado, fui em casa e aconteceu o fato”, disse ele, que a até a noite de terça-feira não tinha advogado constituído.
Segundo a delegada, Paulo Sérgio já tinha dois registros de passagens pela polícia. Um em 2009, por se envolver em uma briga, e outro em 2014, quando foi denunciado por um adolescente de 14 anos em situação de rua, que informou ter sido ameaçado pelo barbeiro com uma tesoura, depois de pedir R$ 0,50.
“Como é que meu irmão ia chamar ele de preto e veadinho? Um homem com a história de Moa, de tanta luta pela cultura negra. Isso é uma grande mentira”, diz Reginaldo.
No seu ateliê, onde as máquinas de costura estão paradas desde domingo, ficaram as batas estampadas que Moa do Katendê levaria nesta quarta-feira para um evento em São Paulo.
“Tudo aqui pronto pra meu pai viajar pra mais um trabalho. A ficha ainda nem caiu, parece que ele vai chegar pra pegar o material. Meu pai era uma pessoa de paz”, disse Somonair em meio às peças de roupa.
Trajetória reverenciada por Caetano Veloso
“Moa do Katendê, a quem devo a revelação que foi ver e ouvir o grupo de pessoas na rua cantando ‘Misteriosamente o Badauê surgiu’, foi morto a facadas por ter dito que votara em Haddad. O assassino, um bolsonarista apaixonado, foi encontrado quando tentava fugir. (…) Moa era meu amigo e foi uma das figuras centrais na história do crescimento dos blocos afro de Salvador. Estou de luto por ele. (…) Fundador do Badauê, compositor, mestre de capoeira, Moa vive na história real da cidade e deste país”, afirmou o cantor e compositor Caetano Veloso numa rede social.
Nascido no Dique Pequeno, como é chamada a localidade onde foi morto, Moa fez suas primeiras gingas na capoeira ali mesmo, como discípulo do Mestre Beto Gogó. Com o passar dos anos, ficou responsável por levar adiante o legado do seu mestre.
Da escola de capoeira, veio a dança afro, como integrante do grupo Viva Brasil, que entre as décadas de 1960 e 1970 ganhou o mundo por meio do trabalho da folclorista e pesquisadora Emília Biancardi.
No mesmo período, ele começou a compor para os blocos afro, que ganhavam força no cenário musical de Salvador.
“Moa era um artista incrível, um talento reconhecido no mundo inteiro. Jogava capoeira, dançava, escrevia. É uma perda imensa para a cultura da Bahia e do Brasil”, disse Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê Aiyê, maior bloco afro da Bahia.
Foi justamente uma composição para o Ilê que fez a fama de Moa do Katendê se espalhar ainda mais. A canção Badauê, citada na postagem de Caetano Veloso, posteriormente veio a ser gravada pelo artista no disco Cinema Transcendental (1979).
Mais do que uma música, Badauê virou também um bloco de afoxé, criado pelo próprio Moa em 1978. Na tradição carnavalesca da Bahia, os afoxés são os blocos que levam para as ruas o Ijexá, ritmo tradicional dos terreiros de religiões de matrizes africanas.
Projeção dos afoxés para o mundo
Para Chico Assis, pesquisador que em 2017 defendeu uma dissertação de mestrado sobre os afoxés da Bahia, Moa do Katendê foi um dos maiores propagadores da cultura afro-baiana pelo mundo.
“Quando o Badauê saiu pela primeira vez, os afoxés estavam enfraquecidos, mas ele fez uma mudança, juntando a contemporaneidade com a tradição. Então os afoxés voltaram a ter força. E Moa seguia espalhando essa cultura por todo canto, dando aulas em diversos países da Europa”, disse.
Vivendo nos Estados Unidos, o poeta baiano Guellwaar Adún, parceiro de Moa do Katendê em diversas composições para blocos afro, disse à BBC News Brasil que a morte de Moa lhe tirou “um irmão e um pai”.
“Ele era um cara da vida, da alegria, um cara ético, de uma simplicidade imensa, que não queria nada que fosse dos outros. Foi meu maior incentivador nas artes e tem a vida tirada dessa forma bárbara”.
Para Adún, a morte do amigo é um exemplo do “momento gravíssimo pelo qual o Brasil está passando, tomado pela histeria”.
“O conservadorismo é diferente do fascismo. O fascismo é que traz em si o ódio, essa vontade de atacar estruturas culturais que Bolsonaro prega. Ele ataca mulheres, gays, negros. É claro que isso reflete nas pessoas”, afirma o poeta, que é fundador da editora Ogun’s Toques, que publica exclusivamente autores negros do Brasil ou dos Estados Unidos.
“Quem é da capoeira sabe como os negros já sofreram, sabe da desigualdade que enfrentamos. Moa lutava contra tudo isso através da sua arte. Era um disseminador de conhecimento e cultura. Sua morte foi um crime político. O discurso de ódio no Brasil quer interditar qualquer tipo de ideia e manifestação contrária, mas não vai conseguir. A arte de Moa não vai morrer. Nós vamos existir e resistir”, concluiu Adún.
Bolsonaro nega ser racista, homofóbico e misógino. Questionado nesta terça-feira por jornalistas sobre a morte do capoeirista, ele afirmou lamentar o ocorrido, mas que a pergunta foi “invertida” e que não tem como controlar todos os seus apoiadores.
“Quem tomou a facada fui eu, pô! O cara lá que tem uma camisa minha, comete lá um excesso. O que eu tenho a ver com isso? Eu lamento”, afirmou o presidenciável.
“Peço ao pessoal que não pratique isso. Mas eu não tenho controle sobre milhões e milhões de pessoas que me apoiam. Agora, a violência vem do outro lado, a intolerância vem do outro lado. Eu sou a prova – graças a Deus, viva – disso aí.”