Por Flávio Aguiar.
Assisti o quanto pude da farsa togada de quarta-feira sobre os crimes que o réu não cometeu. No mínimo, não se provou que ele cometeu.
Disse o excelente jornalista Mark Weisbrot no NY Times que as argumentações apresentadas contra o réu não seriam aceitas num tribunal norte-americano. Porque falavam apenas de indícios e de denúncias de gente favorecida por os e as apresentarem, não de provas.
Mas é bom devolver a Washington o que é de Washington. Ao contrário do que diz o senso comum, inclusive o de esquerda, o modelo em voga de “soft coup” ou de “golpe branco” não nasceu em Honduras.
Nasceu numa conjugação entre esforços na Flórida e decisões em Washington. Durante muitos anos, depois da Guerra das Malvinas, os Estados Unidos ficaram sem opções de golpes de Estado na América Latina. Estavam cabreiros com os militares.
Então, em 2000, aconteceu a disputa entre George Bush Filho e Al Gore. E a eleição na Flórida empacou: suspeita de fraude. Al Gore pediu a recontagem, uma vez que havia fortes indícios de que a votação e a apuração tinham sido trucadas. Criou-se o impasse. E numa decisão histórica, a Suprema Corte norte-americana ajeitou a situação: por 5 x 4 aprovou a primeira contagem de votos na Flórida e deu a vitória a Bush Filho. Cinco eram conservadores, quatro eram politicamente liberais. Foi a inclinação ideológica que definiu a votação, não os indícios e muito menos as provas, que sequer tentou-se buscar.
Foi aí que acendeu-se a nova chama golpista. É verdade que houve uma nova tentativa de golpe tradicional: na Venezuela, em 2002, contra Hugo Chávez. Não deu certo. Depois de deposto, Chávez foi reconduzido ao Palácio Miraflores, em Caracas, nos braços do povo e… dos militares que nano se insurgiram contra a ordem constitucional. Ficou famosa a frase de um assessor militar ao “presidente” Carmona, empossado pelos golpistas: “presidente, estamos no poder ou cercados no palácio?”. Estavam cercados. As aventuras militares na América Latina, pelo menos de momento, tinham recebido o seu tiro de misericórdia.
Daí o golpe branco migrou para Honduras, mantendo a forma jurídica: uma decisão judicial afastou o presidente Zelaya do poder, com ajuda dos militares que o defenderam do palácio de governo, de pijama. Depois adquiriu forma parlamentar, quando aterrissou no Paraguai, contra Fernando Lugo.
E agora, na cereja do bolo, caiu no Brasil, envolvendo tudo: aparato judicial, midiático, parlamentar e policial. Sem os militares.
Sem estes na vanguarda, o golpe tem algo de caótico. Parece um voo de baratas, cada uma numa direção, embora mantenham o objetivo maior em comum, que é o de alijar Lula e as esquerdas da competição pelo Planalto. Neste novo estilo, as fardas trocaram de cor: de verde-oliva que eram no passado, tornaram-se pretas, como as togas de juízes com que se fantasiam os golpistas.
O Judiciário tem de se mostrar, nesta altura, o setor mais disciplinado do golpe. Os outros setores podem espernear, debater-se entre Temer ou Hulk, Bolsonaro ou Alckmim. Mas depende do Judiciário tirar Lula da competição.
Daí a aplicação, daí também o enfadonho que foi aquela leitura salpicada de citações – embora nervosa, como demonstrou o número de vezes que o seu protagonista, o primeiro a ler seu alfarrábio acaciano, coçou o próprio nariz. Para bom entendedor, meia coçada basta: ponha-se nervoso nisto.
Era a crônica de uma farsa anunciada. A sentença já fora dada, há muito tempo, provavelmente em Washington, ou Nova Iorque. Era tudo tão farsa, que a Band anunciou-a horas antes. Depois pediu desculpas. Pelo quê? Pelo que todo mundo já sabia que iria acontecer?
Mas houve coisas inesperadas. A manifestação com 70 mil do dia 23, em Porto Alegre, por exemplo, em que a capital dos gaúchos deixou de ser, pelo menos de momento, aquela cidade em que uma parcela sem pudor da classe média e da elite conseguiu votos suficientes para eleger um projeto de prefeito proto-fascista voltou a ser a Capital da Legalidade, a Capital do Fórum Social Mundial e a Capital do Século XXI. A manifestação também enorme na Praça da República em S. Paulo, logo depois do anúncio da esperada sentença.
Outra coisa inesperada foi o tom desenxabido e a pequenez das manifestações contra Lula e a favor da sentença. Prova de que os coxinhas puseram as panelas entre as pernas, sem saber o que fazer com elas.
Esse julgamento vai passar para a História. Mas não como querem os carrascos. Passará, como passaram os de Roland Freisler, de Andrey Vichinsky e as diatribes de Joe McCarthy que, pelo menos, eram mais movimentados do que a enfadonha repetição rococó de metáforas e argumentações cediças do dia 24 de janeiro de 2018.
No lixo.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés(2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Seu mais novo livro é O legado de Capitu, publicado em versão eletrônica (e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.