Por Luiz Gonzaga Belluzzo.
A parolagem dos ideólogos executa contorcionismos conceituais para evitar a conexão entre a crise interminável e o capitalismo das últimas quatro décadas. Para essa turma, imagino, a derrota do socialismo tornou inútil o conceito que designava o sistema triunfante.
Trata-se de um estranho jogo de oposições em que a morte do adversário confere nova identidade ao sobrevivente. No baile de máscaras dos conservadores, o capitalismo é identificado à propensão humana natural para a troca e para a obtenção de vantagens materiais.
São impulsos inatos do homem que a sociedade não pode sufocar. Não há alternativa, diria a senhora Thatcher.
Os adversários e detratores do capitalismo brotam como cogumelos no terreno adubado pela crise e pela impotência das lideranças democráticas. Nesses arraiais, a plasticidade desse modo de produção é surrupiada pela ideia de que afinal ele é sempre o mesmo e seu destino inexorável será a derrocada final, afirmada e reafirmada pelas velhas e encarquilhadas teorias do colapso.
Muitos críticos à esquerda imaginam estar prestando homenagem à boa tradição de seu pensamento cedendo passo a supostos automatismos e inevitabilidades que estariam implícitas na dinâmica do capitalismo.
Essas concepções ossificadas, à direita e à esquerda, deixam de examinar o capitalismo como uma forma histórica de relações econômicas, sociais e políticas que se reproduzem num movimento incessante de diferenciação e autotransformação.
Sob o véu do determinismo, essas manobras ideológicas escondem as incertezas embutidas no jogo entre a crise da estrutura socioeconômica e as conjunturas marcadas pela intensificação da luta política.
Nos Estados Unidos, as manifestações dos jovens de todas as classes, pobres e remediados, todos eleitores de Bernie Sanders, revelam que o mal-estar se dissemina pelo mundo desenvolvido.
Naturalmente, o desconforto dos que deploram a desigualdade escandalosa e protestam contra a prepotência da finança não é causado apenas pela figuração das privações que o futuro lhes promete.
Nascidos do ventre das novas formas de negócios comandadas pelo enlace entre megaempresas e grandes bancos “globalizados”, os deserdados acompanham as lideranças que pretendem falar em nome do interesse público.
Não espanta que a retórica de Sanders nos Estados Unidos e de Jeremy Corbyn na Inglaterra dispare contra os símbolos do podre poder global, Wall Street e a City londrina. A galera da finança retruca com a soberba e o descaso habituais.
Para a turma da bufunfa, o que os deserdados da fortuna pensam, sentem ou reivindicam são deformações nascidas do egoísmo dos ignorantes, em contraposição ao egoísmo racional e esclarecido dos senhores da finança.
Os esclarecidos logo compreenderão o equívoco e a vulgaridade de tratar as arengas anti-establishment, à esquerda e à direita, com o estigma do populismo.
Nos bastidores das massas inconformadas abriga-se a prolongada e reiterada frustração das promessas inscritas no código liberal-individualista.
Há 40 anos o pensamento dominante assegura aos indivíduos livres e competitivos que seus esforços e empenhos serão justamente recompensados, seus méritos reconhecidos.
Os valores da livre-concorrência transformaram todos e cada um em “empreendedores de si mesmos”, proprietários, sim, do seu “capital humano”.
Cultivado com os empenhos da educação e da formação profissional, o estoque de capital humano sofre forte desvalorização nos mercados de trabalho contaminados pela precarização e pela continuada perda da segurança outrora proporcionada pelos direitos sociais e econômicos.
A economia compartilhada é uma fraude, recentemente escancarada pela greve dos motoristas do Uber, massacrados em seus direitos e seus rendimentos pelas manobras do “aplicativo”.
Agora em escombros, as classes médias, sobretudo nos Estados Unidos, mas também na Europa, ziguezagueiam entre os fetiches do individualismo e as realidades cruéis do declíno social e econômico. A individualização do fracasso já não consegue ocultar o destino comum reservado aos derrotados pela desordem do sistema social.
O reconhecimento da crise como um fenômeno social é inevitável. E esse reconhecimento torna-se mais disseminado quando o desemprego e a desigualdade prosperam em meio à teimosa celebração do sucesso de alguns indivíduos.
Fonte: Carta Capital