No filme La Peau Douce, de 1964, dirigido por François Truffaut, o ator francês Jean Desailly interpreta o editor de uma revista literária, especialista em Balzac. Nas asas da Panair, ele se envolve com uma aeromoça vivida por Françoise Dorleac. Pierre é um intelectual celebridade, figura da época, que antecede um fenômeno planetário, hoje catalisado pela internet.
Se o prezado leitor é um usuário assíduo das redes sociais, boa chance há de ter sido alvejado umas tantas vezes por linksdos vídeos do TED, o moderno templo virtual dos intelectuais celebridades. Os temas são instigantes, o tratamento é ligeiro e a experiência, agradável. E que mal há em ser ilustrado por uma palestra que dura menos que um quarto de hora, com uma perspectiva fresca acerca de um tema relevante?
Por detrás desse fenômeno está uma entidade criada há pouco mais de 30 anos. O TED – Technology, Entertainment, Design – é uma organização privada sem fins lucrativos, fundada no Vale do Silício, nos Estados Unidos. Seu lema é “ideias que merecem ser disseminadas”. Os vídeos são gravados em seus eventos, que se multiplicaram nos últimos anos na América do Norte, Europa e Ásia.
As palestras tratam de tecnologia, design, ciência, cultura e tudo mais que parecer novo e for atraente. Ex-chefes de Estado, prêmios Nobel, empresários carismáticos e cientistas comunicativos destilam sabedoria diante de suas câmeras. A primeira página de seu portal indica os vídeos mais populares: Como Grandes Líderes Inspiram a Ação, por Simon Sinek; A Aparência Não É Tudo, Acredite em Mim, Eu Sou uma Modelo, por Cameron Russell; Por Que amamos, Por Que Traímos, por Helen Fisher; e Dez Coisas Que Você Não Sabia Sobre o Orgasmo, por Mary Roach. Qualquer semelhança com revistas de autoajuda pode ser mais do que mera coincidência.
O modelo tem seu mérito, ao disseminar gratuitamente conteúdos que poderiam ficar restritos a universidades e a centros de pesquisa. Entretanto, o TED tem seus críticos, que o acusam de ter “macdonaldizar” a ciência, de servir de trampolim para alpinistas pseudoacadêmicos e ter se tornado, com o crescimento e a popularidade, uma paródia de si mesmo.
Megan Garber, jornalista da revista The Atlantic, certa vez argumentou que o TED funciona como instância de validação para o caótico mercado de novas ideias. Entretanto, as palestras e seus vídeos não são expressão direta e transparente das ideias, mas sim conteúdos editados, empacotados e associados a um personagem. Um show típico do TED tem narrativa didática, humor cativante e um narrador simpático, intimamente ligado à ideia apresentada. Sugere, assim, que grandes ideias estão sempre relacionadas a gênios criativos.
Entretanto, em uma época na qual o trabalho é quase sempre coletivo, a personalização das ideias pode ser anacrônica. As palestras TED, sugere Garber, não traduzem conceitos abstratos e complexos para o público leigo. Elas apenas trocam a narrativa por um personagem. Com isso, a ideia deixa de ser uma ideia e se transforma em artefato construído para o palco.
Megan Hustad, no jornal The New York Times, reconheceu nas palestras TED a cadência adotada pelos missionários evangélicos, com suas promessas vaporosas. Ela não considera adequado afirmar que as conferências e os vídeos funcionam como uma igreja organizada. Entretanto, sugere que compreender as similaridades entre os dois sistemas ajuda a entender como o estilo adotado nas palestras, com suas promessas de soluções para os problemas do homem e do mundo, é manipulativo.
Uma palestra TED, segundo Hustad, assemelha-se a um sermão. Primeiro, se junta uma plateia de curiosos e famintos. Então, um problema crucial é focalizado. O simpático palestrante surpreende a audiência com as raízes profundas e as consequências impactantes da questão tratada. Diante das trevas e da agonia, uma esperança é introduzida: o caminho da salvação. Aí, a audiência respira aliviada, pois viu a luz e agora se sente parte da solução. O processo é contagiante e persuasivo, dobrando almas e intelectos. Hustad especula: em algum momento a lista de 20 vídeos mais vistos do TED talvez se transforme em um credo. E daí rumaremos para a era do politeísmo digital.
Fonte: Carta Capital