Por Luciane Recieri.
O Anderson segue calado com o livro aberto aos olhos. A estrada passa. A vida passa. Um sol de laranja baiana entre o Trópico de Capricórnio e o resto do mundo. Aviões enganam toda física e quase pairam. Leio os nomes. Somo os números. Placas. Decomponho. Elevo. Faço isso o tempo todo pra não pensar. Quando era bem pequena ficava pensando como é que faziam pra pintar as faixas nas estradas. Broxa. Trincha… Nada. Pra isso existem máquinas. Os homens. Eles se encerram nos rápidos e envelhecem. Fotografei o sol de ontem. Minha vontade era de dizer ao chofer que parasse. Lembro da minha mãe dizendo que não gostava de viajar com meu pai: “a gente vê tanta paisagem bonita e ele não pára. Não, não gosto de viajar com Vicente.” Ela só queria contemplar. Os homens seguem sem olhar, não contemplam. O seu Laerte que, na realidade é Laeste, nunca pararia. Pára seu Laerte, pra eu ver o sol lá no fim do mundo! Acho que nunca pararia pra eu contemplar. O Anderson lê, achei que era um dicionário, mas era Machado de Assis, só pra variar. O Ruy Barbosa lia dicionário. A Cecília Meireles disse que era o livro da solidão. Um livro que levaria pra uma ilha. Tive uma amiga que ganhou do ex-marido um dicionário. Me ligou preocupada e me perguntou:
– Lu, ganhei um presente insólito de meu ex. Fiquei preocupada. Tantos anos sem me ver e ele vem me visitar com um… Adivinha, Lu?
– Ah, Dadá, não faço a menor ideia.
– Lu… Um dicionário! Escreve pra mim? Uma crônica?
Qualquer coisa. Ah, Lu… Como eu amei o Jorge.
E Dadá me contou tudo, chorei em silêncio, sem deixar escapar um soluço. Queria que ela desabafasse. Sozinha, morando numa kitnet numa cidade litorânea, fumante querendo largar. Os animais já idosos. A vida sem amor e sem Jorge. Ela. Olhos azuis. A Shirley havia morrido, tatuara no braço “Shirley” em letras que não tem como eu botar aqui. Escrevi tudo pra Dadá. Ele, argentino, 20 anos mais moço; ela, 40 anos na década de 60. Atriz e linda. Ele fugiu pro Rio e ela ficou se queimando nas bitucas todo esse tempo em que cresceu a filha tão linda que Jorge deixou. Ah, Dadá… Queria tirar a sua dor. Ela me liga no começo da tarde e com mais de 60 anos:
– Escreve, Lu?
Escrevi.
A gente se fecha. A gente se acha. Se perde. A vida passa.
Jorge deu a Dadá um dicionário. Ela ficou confusa. Ali continha tudo, mas tudo mesmo que eles calaram a vida toda. Dadá se sentiu anistiada. Toda vez que vejo sol, dicionário, estrada, penso. Por isso decomponho. Somo. Divido. Elevo. Dói pensar na vida, mesmo que na dos outros. Tenho saudade da Dadá. Pra ela levaria um bolo e flores. E ficaria contemplando o sol através da janelinha da kitnet.
Imagem tomada de: setasparaoinfinito.blogspot.com