Os grandes eventos esportivos e a destruição da vida

OSI_5733Por Elaine Tavares.

A fala do jornalista mexicano Maurício Mejía, durante a nona edição das Jornadas Bolivarianas, deu o tom acerca do que se transformou o esporte, não só no Brasil, mas em quase todos os países do mundo, principalmente os chamados subdesenvolvidos: negócio, espetáculo, mercadoria. Segundo ele, no México, que hoje conta com pouco mais de 110 milhões de habitantes, grande parte da população pode dizer como está o Barcelona, quem são os melhores no basquete, os campeões da natação, mas, de fato, 72% dos maiores de 12 anos não praticam e nunca praticarão esportes. No geral, os mexicanos se deixam ficar à frente da televisão assistindo e consumindo o que incita a propaganda. “O México é um país que não joga, tem 7% de analfabetos e mais de 52 milhões na linha da pobreza. Por outro lado, quase 95% das casas tem uma televisão. Os mexicanos leem um média de meio livro por ano, e toda a informação que lhes chega é pela televisão. A considerar a qualidade da televisão do país, o resultado em alienação e consumo sem crítica é assustador”. Mejía lembra que apesar de ser um país no qual a população não pratica esporte, o México já sediou duas Copas do Mundo e uma Olimpíadas. Assim, pode-se observar que o legado desses eventos que tanto consomem de dinheiro público é praticamente nenhum.

Para Jaime Breilh, médico e epidemiologista equatoriano que discute a relação saúde e esporte, isso não é novidade. Segundo ele, no sistema capitalista o esporte, como tudo, está ligado a uma lógica de morte, e não de vida. É que o sistema orienta toda a sua força para a produção de mercadorias e isso implica na consolidação de um modelo específico de civilização. Dentro do capitalismo, portanto, o esporte assume essa condição também e a vida assim como a saúde das pessoas é o que menos importa. O que vale é saber como conseguir mais acumulação de capital. Se nesse movimento for necessário sacrificar pessoas, espaços, natureza, o que for, não tem problema.

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Essa afirmação encontra concretude na narrativa de Renato Cosentino, do Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas. Embasado em documentos e vídeos de propaganda do próprio governo, ele mostrou como a cidade está sendo preparada para os grandes eventos esportivos, sem que sejam levadas em conta as preocupações da população. Obras faraônicas estão sendo feitas, comunidades inteiras estão sendo destruídas, vidas aniquiladas e tudo em nome da beleza do espetáculo. Até o velho Maracanã será privatizado, com tudo a sua volta sendo arrasado. Assim foi eliminada uma histórica pista de atletismo que ficava ao lado do estádio, bem como um dos melhores colégios públicos do Rio, que deverá ir abaixo até a Copa de 2014. As peças de propaganda do novo estádio mostram o mesmo como um lugar de executivos, no qual os torcedores ocuparão cadeiras estofadas e vibrarão de terno e gravata. Um lugar para a elite e não para o povo. Também foi possível ver as explicações dos governantes do Rio de janeiro, mostrando em vídeos promocionais, como construirão estradas que passam por cima de comunidades inteiras, sem que a vida das pessoas seja respeitada.

Essa lógica do esporte como um mero espetáculo, como mercadoria, é coisa dos tempos modernos, do sistema capitalista. Desde que as Olimpíadas surgiram na Grécia, o elemento principal do encontro era justamente o amadorismo. A proposta era incentivar aqueles e aquelas que praticavam esporte a um convívio saudável de troca de experiência e de propagação da ideia de que o esporte produz uma vida plena. Segundo Marcelo Proni, da Universidade de Campinas, esse tipo de consciência sobre o esporte só existiu até os anos 30, quando então também a política passou a se imiscuir no processo. As Olimpíadas de Berlim, comandadas por Hitler, já assumiam um caráter de doutrinação e depois da segunda mundial, a disputa política da chamada guerra frio passou também a se misturar com o evento. As competições passaram a ser também entre as nações. Nos anos 60 do século passado, com a entrada da televisão e os direitos de transmissão, o dinheiro passou a mandar e o esporte assumiu a sua condição de mercadoria.

Proni também acredita que até a Copa do México esse tipo de evento não seria considerado algo que obrigatoriamente deixasse um legado. As exigências com relação aos equipamentos e espaços não eram tão grandes. Foi depois do ano de 1986, com achegada de Havelange na Fifa e sua ligação visceral com a Adidas que o futebol passou a ser um negócio a mais. Nos anos 90, esse tipo de evento ficou restrito aos países mais ricos, mas, depois, com o chamado processo de crescimento de algumas nações até então subdesenvolvidas, o foco mudou. O capital precisava se expandir e nada melhor do que entrar nesses países que principiavam a crescer. É o caso da China, África do Sul e agora o Brasil. Como se pode ver, tudo está ligado às necessidades da acumulação do capital.

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O jornalista Juca Kfouri, que acompanha o esporte brasileiro desde há anos, não teve pudores em afirmar que por aqui tudo está “podre”. Segundo ele, o Brasil não tem uma política esportiva, logo eventos como a Copa e as Olimpíadas não podem deixar qualquer legado. Conta que chegou a acreditar que com o governo Lula as coisas pudessem começar a mudar, mas, aos poucos, também Lula foi se deixando seduzir e nada avançou. Para Juca, o esporte no Brasil acaba sendo apenas um escoadouro de lavagem de dinheiro e máquina de lucro para muito poucos.  A chamada “década dos esportes”, como os governantes tem chamado esses anos em que vão realizar os dois grandes eventos esportivos, deixará dívidas para o país e sofrimento para grandes fatias da população que estão sendo removidas ou violentadas, como é o caso das comunidades “pacificadas”. Juca lembrou que não tem o menor cabimento construir “arenas” gigantescas em lugares como Manaus ou Natal, onde não haverá demanda para ocupação. O destino desses lugares, que consumirão milhões de reais certamente será o mesmo dos grandes estádios construídos em outros países que acabaram sendo sucateados, demolidos ou abandonados. É o caso do famoso Ninho de Pássaro, da China, que há anos não vê um jogo de futebol.

Eddie Cottle, sindicalista sul-africano, mostrou claramente o que aconteceu no seu país por conta da realização da última Copa. Uma espécie de repetição de tudo aquilo que temos visto acontecer por aqui. Obras faraônicas, comunidades inteiras removidas, lugares “higienizados”, e exploração dos trabalhadores. Segundo ele, um grande estádio, construído na cidade do cabo, agora está para ser implodido, pois não há como manter uma estrutura tão gigantesca. Ou seja, dinheiro público jogado às traças. Eddie conta que durante todo o processo de preparação para a Copa, muitas foram as lutas do povo, capitaneadas principalmente pelos sindicatos, que foram muito atuantes. “Conseguimos alguns avanços no que diz respeito a direitos, mas foi tudo”. As centenas de famílias desalojadas continuam vagando pela capital e os que foram levados para a tristemente famosa “cidade de lata”, seguem vivendo nos contêineres, sem  perspectivas de terem suas casas de verdade. Eddie ainda contou que os sindicatos descobriram um documento, assinado entre o estado e as empresas que “fizeram” a Copa, no qual o estado dava todas as garantias para exploração e venda de serviços e mercadorias. Ao final, os que ganharam com a Copa foram as empresas multinacionais e as elites locais. Nada mais que isso.

No Brasil, o envolvimento dos sindicatos é praticamente nulo diante de todas as mazelas que já se concretizaram e das que se anunciam. Segundo o professor Fernando Mascarenhas, da UNB, mesmo os movimentos sociais mais combativos não estão dando atenção para o processo que envolve toda a construção da Copa e das Olimpíadas. “Não se vê o MST falando no assunto, nem os sindicatos”. Para ele, sem o envolvimento dessas forças, a “patrola” dos megaeventos vai passar e apenas os atingidos de primeiro turno se mobilizarão, como é o caso das famílias desalojadas que hoje, no Rio de janeiro, principalmente, travam uma luta renhida. O fato é que há uma ignorância completa sobre o tema e, no geral, a esquerda sempre se mostrou bastante avessa a qualquer coisa ligada ao esporte. Juca Kfouri lembrou que quando era mais jovem e militava na esquerda, várias vezes foi chamado de alienado por gostar de futebol. O professor Nilso Ouriques, da Unoesc, também fez referência a esse preconceito, o que mostra o tanto que o tema não encontra eco nas cabeças mais “revolucionárias”.

Nada mais equivocado do que abandonar o país a própria sorte nesse universo de megaeventos. O esporte – e principalmente o futebol – permeia a vida cotidiana de grande parte da população e as consequência para o país de toda a essa maquiagem que se está produzindo nas chamadas cidades-sede  repercutirão em toda a sociedade. A “lógica da morte” avança a passos largos, os acordos com as grandes empresas se fazem às claras. O país corre o risco de construir uma estrutura gigantesca – com grandes quantias de dinheiro público – que mais tarde serão abandonadas e não servirão para a democratização do esporte. Pelo contrário. Por suas características grandiosas, gerarão despesas demais e os atletas amadores não encontrarão abrigo em seus muros.

Assim como no México, onde a realização de duas Copas e uma Olimpíada não gerou nenhum avanço na prática de esporte, a tendência é de que no Brasil, a situação até piore. Com a destruição dos campinhos, com a derrubada das comunidades e o avanço da especulação imobiliária é mais provável que a prática de esporte diminua.

A nota dissonante durante as Jornadas Bolivarianas foi a realidade cubana. Na ilha socialista o esporte está submetido a uma política de estado e está incorporado a prática cotidiana da população. Vive não apenas nas escolas, onde a prática da educação física é obrigatória, mas se democratiza na proliferação de centros de esportes, praças, campos de futebol, de basquete, de basebol, de atletismo, em cada pequena cidade. A lógica é de pequenas estruturas para atender a todos. A performance que os atletas cubanos conseguem nas competições vem justamente dessa política que investe na saúde bem como no esporte de rendimento, mas só o consegue porque tem o esporte encarnado na vida das gentes. Para um cubano, a realidade do atleta que se vende a patrocínios, que é comprado por outros países para aumentar o número de medalhas, é totalmente incompreensível. O esporte em Cuba não é mercadoria, está intimamente ligado à saúde da população e no campo competitivo se vincula ao sentimento de profundo amor pela pátria. Jogar numa olimpíada é defender Cuba.

E já que falamos em medalhas, Jaime Breilh, do Equador, também desmistificou esse tal quadro de medalhas que tanto é divulgado durante os jogos olímpicos e que parece deixar patente o fato de que só os países ricos, como os Estados Unidos ou a China, estão no topo do mundo do esporte. Jaime chama a atenção para que as pessoas façam as contas pelo número de habitantes dos países. Assim, ele chega a um quadro diferente sobre os “melhores do mundo”. No ano de 1998, por exemplo, o quadro de medalhas ficou assim:  Em primeiro lugar os estados Unidos, depois Rússia, depois China. Mas confrontados com o número de habitantes, a coisa muda: em primeiro fica a Nova Zelândia, depois Cuba, seguida da Dinamarca. Os Estados Unidos cairiam para vigésimo primeiro e China para trigésimo. Então, é tudo uma questão de perspectiva.

Para os conferencistas que fizeram as Jornadas Bolivarianas desse ano o esporte é algo que deve ser levado a sério, pois ele não é mercadoria. Está ligado intimamente ligado com a saúde, com a qualidade de vida, com a soberania de um povo.  E, no caso do Brasil, ainda há tempo de caminhar para uma política que atue no sentido de garantir a prática esportiva com qualidade, com espaços adequados, de caráter popular. Assim, em vez de construir “arenas” gigantescas e inúteis, o Ministério dos Esportes deveria se preocupar em definir uma política nacional de esporte comunitário, para produzir vida e saúde e não consumidores de produtos tão inúteis quanto as propaladas arenas. É preciso que o ministro Aldo Rabelo defenda mais o povo brasileiro do que a Nike. Se isso não mudar, a tendência é caminharmos para um país em que pessoas obesas se postarão diante da TV para falar de esporte, sem vivê-lo. E, no que diz respeito aos grandes eventos, corremos o risco de inventar um país que não existe, apenas para entrar no jogo do negócio. Renato Cosentino, do Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, mostrou uma propaganda da Petrobrás no exterior, falando sobre o pré-sal, que exibe uma foto aérea do Rio de Janeiro, na qual as favelas e todos os sinais de pobreza foram apagados pelo fotoshop. Essa é a dura realidade do Brasil. Está sendo preparado para a Copa, e haverá de eliminar os pobres, custe o que custar. Tudo em nome de alguns dias de entretenimento para muito poucos e de lucros estratosféricos para muito poucos também.

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