Por Elaine Tavares.
O dia da posse de Donald Trump foi também um dia de mobilização popular nos Estados Unidos. Desde há muitos anos não se via naquele país tanta gente na rua mobilizada por alguma causa. Nem os protestos de “Ocupa Wall Street” foram tão significativos em termos de números. Os meios de comunicação falam em mais de 500 mil pessoas só em Washington, sem contar as centenas de outras cidades do país e fora dele. Chicago registrou mais de 150 mil e Los Angeles outras 500 mil. Gente demais.
O protesto foi chamado pelas mulheres estadunidenses e sua organização começou nas redes sociais em resposta as declarações sexistas, racistas e preconceituosas do agora empossado presidente. Viralizou e encheu as ruas numa gigantesca Marcha das Mulheres. Mas, a mobilização, apesar de ter tido um tom marcadamente feminino, não se limitou às pautas específicas das mulheres, juntando também toda a sorte de pessoas que tinham algum grito preso na garganta. Mulheres, imigrantes, minorias religiosas, homossexuais, transgêneros, homens, comunistas, socialistas, liberais, panteras negras, enfim, um arco íris de organizações, movimentos e gentes.
É fato que a figura polêmica de Donald Trump ajudou a movimentar os sentimentos. Ele foi eleito de forma indireta, como costuma acontecer nos Estados Unidos, onde não existem eleições diretas. Além disso, os que votaram, nos resultados universais, elegeram a candidata dos democratas, Hillary, embora Trump tenha leva o cargo por conta da estranha contagem de delegados por estado. Ou seja, foi eleito com 276 votos. Em termos absolutos, recebeu 45,9% dos votos gerais, enquanto Hillary fez 48%. Mas, ela perdeu em estados com maior número de delegados e ficou de fora do poder. Uma coisa meio estranha num país que se diz a maior democracia do mundo. Considerem também que os EUA tem um estado, que dizem ser autônomo, mas onde seus habitantes são impedidos de votar para presidente: Porto Rico.
Enfim, o resultado levou ao cargo máximo da nação um homem que pautou sua campanha em ataques ferozes contra os imigrantes, apresentando um nacionalismo xenófobo e conservador, além de toda uma imensa pauta ultra conservadora. Na verdade, sem fugir em nada da construção social que vem sendo feita desde a independência. Apenas que ele extrapolou as regras e expôs de maneira clara seu racismo e seus preconceitos. Mas, olhando para a história do país, com a alternância de poder entre Democratas e Republicanos, raramente viu-se algo diferente. Os Estados Unidos são marcados pela política belicista, de rapinagem e de nacionalismo conservador. É da sua natureza excluir os diferentes, roubar riquezas alheias, invadir territórios, seja quem for o presidente.
No sistema eleitoral estadunidense os demais candidatos, fora do bi-partidarismo Democratas/Republicanos tem chance quase zero. Nas últimas eleições, por exemplo, o terceiro colocado, do Partido Libertário, ficou com 3,3% dos votos, a quarta colocada, do Partido Verde, com 1%. Não há como quebrar a lógica do poder econômico que sustenta os dois maiores partidos e a forma de eleger, por delegados, torna ainda mais difícil qualquer mudança.
Assim que muitas das mulheres, principalmente as celebridades, que engordaram o protesto, foram firmes em discursar contra o sexismo de Trump, mas também apoiaram a candidata Hillary, que é uma máquina de matar gente. É mulher, mas não se importa que os soldados sob seu comando estuprem e violem as mulheres dos países que invadem. Ou seja, protestam na singularidade das pautas femininas locais, mas não protestam contra toda a violência e morte que os Estados Unidos causam pelo mundo afora. Por outro lado, a mobilização também contou com figuras históricas de lutas coletivas e universalistas, porque é claro que não é possível ficar de fora de uma manifestação tão grande. As pautas singulares, ainda que redutoras, podem ser pontes para que as demandas mais gerais aflorem.
Assim que a Marcha das Mulheres acabou acolhendo os mais variados discursos, desde os mais simplórios até os mais duros. Um momento raro nos Estados Unidos. As ruas em ação sempre são fermento e os estadunidenses enfrentarão agora duras batalhas internas. Todo o terror que exportam pelo mundo pode estar prestes a se expressar bem ali, no seu quintal. Haverá que resistir. E nesse movimento pode ser que as organizações mais à esquerda consigam espaço para discutir os temas mais gerais que dizem respeito aos “hábitos alimentares” do capitalismo. Quando milhares de famílias perderam suas casas no quebra-quebra de 2008 não houve uma solidariedade tão explícita, nem marchas de apoio. E muita gente teve de viver sua dor no individual.
A eleição de Trump e toda a sua verve ofensiva e violenta pode agora ser uma alavanca para que os estadunidenses se levantem.
Gostei de ver a Marcha das Mulheres porque gosto de ver as ruas cheias de gente em protesto. Sempre é possível que a fagulha pegue para além das singularidades, mas não há certezas.Tanto pode ir para um lado como para outro. Basta vermos o que sucedeu no nosso próprio país, o Brasil, quando multidões nas ruas nos conduziram à triste realidade atual.
Enfim, será uma longa jornadas para as gentes dos Estados Unidos. Que os trabalhadores e trabalhadoras possam ver além dos véus da ideologia, enxergando o grande monstro que é o sistema capitalista de produção. E que nesse ver, caminhem para a transformação.
Como bem lembrou essa gigante negra, Angela Davis, num dos discursos que saiu da particularidade: “Nós saudamos o ‘Fight for 15’. Dedicamos nós mesmas para a resistência coletiva. Resistência aos bilionários exploradores hipotecários e gentrificadores. Resistência a privatização do sistema de Saúde. Resistência aos ataques contra muçulmanos e imigrantes. Resistência aos ataques contra as pessoas com deficiência. Resistência a violência do Estado perpetrada pela polícia e através da indústria do complexo prisional. Resistência a violência de gênero institucional e doméstica, especialmente contra mulheres trans negras. Direitos das mulheres são direitos humanos em todo o planeta. E é por isso que nós dizemos ‘Liberdade e Justiça para a Palestina!’. Nós celebramos a iminente libertação de Chelsea Manning e Oscar Lopez Rivera. Mas também dizemos ‘Liberdade para Leonard Peltier! Liberdade para Mumia Abu-Jamal! Liberdade para Assata Shakur!’”.
Fonte: IELA.