Em sondagem recém divulgada com vistas ao pleito eleitoral do próximo ano, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump aparece com 51% da preferência do público consultado contra tão somente 42% do atual ocupante do cargo, Joe Biden.
Provavelmente em função de suas disputas internas, Biden se aproveitou da presença de Lula em Nova Iorque para fazer o discurso de abertura da 78ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas para colar sua imagem à de nosso presidente com base numa suposta identificação de ambos com as causas trabalhistas e a liberdade sindical.
É inegável que isso soou muito estranho para todos os que temos alguma ideia da evolução histórica das condições de vida dos trabalhadores nos Estados Unidos. Embora a figura de Lula esteja indissoluvelmente associada aos interesses das classes trabalhadoras, a de Biden, pelo contrário, não nos inspira o mais mínimo vínculo nesse sentido. Como aceitá-lo como um lutador pelas causas dos assalariados naquele país onde as massas trabalhadoras historicamente nunca tiveram direitos equiparáveis aos conquistados por seus pares de outros países?
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Como entender que o panorama seja este, já que estamos acostumados a escutar no rádio, assistir pela televisão ou a ler em jornais e revistas, que os Estados Unidos são a maior democracia do mundo? Em razão do que vem sendo inculcado em nossa mente desde nossa mais tenra idade, seríamos induzidos a crer que democracia e liberdade são coisas intrínsecas à sociedade estadunidense.
Este costume de associar a imagem dos Estados Unidos ao que as sociedades humanas têm de mais belo vem de longa data. Basta recordar que Alexis Tocqueville e outros destacados expoentes do liberalismo se referiam aos Estados Unidos como o país modelo da liberdade e da democracia. Não à toa, a chamada Revolução Americana, que culminou com sua independência e desvinculação do Império Britânico, foi saudada por quase todos os adeptos do pensamento liberal como uma consagradora vitória dos ideais da liberdade.
A circunstância de a nova nação ter sido edificada em cima do extermínio quase total dos povos ameríndios que já habitavam aquelas terras há milhares de ano não parece ter incomodado os entusiastas da nova potência que estava sendo forjada. Tampouco veio a significar um fator capaz de incomodar os admiradores dessa tal “liberdade” o fato de a base da economia estadunidense de então estar sustentada no trabalho escravo. Que milhões de homens e mulheres de pele negra fossem equiparados ao gado e tratados como objetos de compra e venda para o usufruto de seus proprietários não chegou a se constituir em motivo suficientemente válido para gerar questionamentos desses intelectuais liberais filo-americanistas. Talvez tenha sido assim porque, para eles, a única liberdade que realmente merecia ser levada em conta é aquela que dá aos proprietários o direito de dispor de seus bens a seu bel-prazer, mesmo que esses bens de sua propriedade sejam seres humanos.
Essa forte identificação não pôde ser abalada nem sequer com o regime de supremacia branca instalado nos estados do sul após o término da guerra civil de secessão que tinha posto fim à escravidão. Ou seja, os admiradores da liberdade prevalecente nos Estados Unidos nunca se preocuparam com o que esse modelo de discriminação racial significava de fato para os milhões de negros que eram considerados e tratados como “sub-homens”, os chamados _undermen_ (expressão em inglês que foi traduzida pelo nazismo hitlerista como _untermenschen_). Convém acrescentar que, além de alavancar a ideologia racial do nazismo, o supremacismo branco dos Estados Unidos também serviu como fonte de inspiração para o regime de apartheid na África do Sul.
Tendo ciência dos antecedentes da eterna benevolência dos teóricos do liberalismo em relação com a evolução dos Estados Unidos, fica-nos um pouco mais fácil entender como esse país passou a ser apresentado e idealizado como o exemplo mais próximo da perfeição com respeito ao exercício da democracia.
Nos dias atuais, é muito comum observar os dirigentes dos Estados Unidos tomando decisões que visam inviabilizar ou depor governantes de outros países que se mostrem desafinados com as orientações que lhes são passadas. Nessas ocasiões, os desafetos são tachados de ilegítimos e acusados de não representarem de verdade a vontade da maioria de seu próprio povo.
No entanto, se o principal critério a adotar na classificação de um país como uma democracia for a escolha de seus dirigentes em conformidade com o desejo da maioria de seus habitantes, e se o aplicarmos com rigor na análise do processo eleitoral estadunidense, inevitavelmente, vamos concluir que, neste aspecto, os Estados Unidos jamais poderiam ser considerados como um país democrático.
Não obstante haver por lá a possibilidade formal da existência de vários partidos políticos, na prática, somente podem chegar à presidência da nação, ou compor bancadas significativas no parlamento, aqueles que recebem o apoio financeiro das grandes corporações econômicas. Sendo assim, há apenas dois em condições efetivas de disputar o comando administrativo do país: dois partidos de características básicas muito semelhantes e representativos dos mesmos interesses de classe, ou seja, o Partido Republicano e o Partido Democrata,.
Seria possível considerar como democrático um processo eleitoral que desse a vitória ao candidato menos votado pela população? Embora, inicialmente, talvez pareça uma pergunta fora de propósito, ela ganha muito sentido em relação aos Estados Unidos. É que, segundo às leis eleitorais vigentes por lá, o candidato vitorioso em um pleito presidencial não precisa necessariamente ser alguém que tenha obtido mais votos dos eleitores do que seu concorrente.
Na verdade, desde sua fundação como República, vários presidentes foram eleitos apesar de terem tido menos votos da população que seus contrincantes. Podemos citar o ocorrido na eleição de 2000, quando o republicano George W. Bush derrotou o democrata Al Gore, e na de 2016, quando o republicano Donald Trump se impôs à democrata Hillary Clinton. É que nos Estados Unidos as eleições presidenciais são indiretas. Em outras palavras, lá, os presidentes são eleitos através de um Colégio Eleitoral e não por via direta.
Contudo, o fator que dá às eleições presidenciais estadunidenses um caráter acentuadamente antidemocrático não é tanto sua forma indireta, e sim a maneira como se estabelece a composição do Colégio Eleitoral. Seria importante repassar essas características para que tenhamos mais clareza sobre seu funcionamento e as aberrações que delas podem derivar.
A população habilitada não vota diretamente no candidato a presidente de sua preferência. Os votos dos eleitores servirão para formar um Colégio Eleitoral, o qual será composto por 538 delegados, resultantes da soma dos 100 senadores e dos 435 deputados eleitos pelos estados, acrescidos dos 3 representantes de Washington D.C. (a capital da União). O número de delegados por estado é uma questão altamente criticável e de modo algum expressa uma verdadeira representação proporcional do número de eleitores existentes.
Vai se sagrar vencedor aquele aspirante que conquistar ao menos 270 delegados do total. Até este ponto, para o bem ou para o mal, não há muitas diferenças em relação à escolha dos dirigentes nos modelos parlamentaristas da Europa Ocidental e de vários outros lugares.
Porém, o que torna o processo dos Estados Unidos espantoso é a peculiaridade de o candidato presidencial que obtém a maioria dos votos de um estado carregar para o Colégio Eleitoral o número total dos delegados do referido estado. Portanto, indiferentemente de ter vencido por 99,9% a 0,1% ou por 50,1% a 49,9% dos votos, o partido vitorioso no local vai somar para sua chapa na Convenção o número total dos delegados previstos para tal estado.
Estamos diante de uma monstruosidade antidemocrática que permitiria a um candidato, em tese, vencer a disputa presidencial precisando tão somente garantir sua vitória por um percentual mínimo nos 11 estados com maior número de delegados, ainda que perca fragorosamente nos demais 39 estados da União. O quadro dado a seguir nos mostra como isto poderia ocorrer.
Esta aberração se vê agravada pelo pouquíssimo interesse dedicado pelo Sistema com vistas a garantir e viabilizar o voto das maiorias populares. Nos Estados Unidos, os dias de eleição são considerados dias úteis normais, e não feriados. A população não está dispensada do trabalho por lei e não tem sua remuneração garantida caso se ausente para exercer seu direito ao voto.
Além disso, como o voto não é obrigatório, não me parece difícil entender porque tanta gente deixa de participar, especialmente entre as classes trabalhadoras, uma vez que os mais ricos não costumam ter entraves para sufragar e parecem ter noção da importância de seu voto para garantir a defesa de seus interesses. Por isso, não chega a surpreender a constatação de que os índices de participação eleitoral nos Estados Unidos ficam geralmente muito abaixo do que ocorre em outros países, raramente ultrapassando os 50%.
Das observações que fizemos, podemos concluir que a realidade está longe de confirmar aquilo que os bajuladores dos Estados Unidos gostam de alegar. Se os encaminhamentos dos processos eleitorais puderem atestar a qualidade democrática de uma nação, os Estados Unidos deveriam estar classificados nos degraus mais baixos da escala, e jamais poderiam posar como protótipos de correção a serem seguidos.
Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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