Os 77 anos da libertação de Auschwitz: o que pensa a mente de um nazista, por Rômulo Moreira

Auschwitz, no sul da Polônia, considerado um dos principais símbolos do genocídio dos judeus, e onde mais de 1,1 milhão de pessoas foram exterminadas pelo regime nazista.

Por Rômulo de Andrade Moreira[1]

Hoje, 27 de janeiro, faz 77 anos que os soviéticos libertaram todos os prisioneiros que se encontravam no campo de concentração de Auschwitz, no sul da Polônia, considerado um dos principais símbolos do genocídio dos judeus, e onde mais de 1,1 milhão de pessoas foram exterminadas pelo regime nazista.

De todos, aproximadamente apenas 7 mil prisioneiros sobreviveram, ainda que em deploráveis condições físicas e psicológicas; entre estes, estavam cerca de 500 crianças, todos extremamente magros e exaustos, a ponto de poucos conseguirem ficar de pé. A grande maioria dos executados foram judeus vindos, principalmente, da Hungria, Polônia, Itália, Bélgica, França, Holanda, Grécia, Croácia, Rússia, Áustria e Alemanha.

Chegavam no campo de concentração em trens abarrotados de prisioneiros, em condições absolutamente desumanas, sem ventilação, banheiro ou comida. Ao descerem, já eram separados entre os que podiam trabalhar e quem deveria ser morto imediatamente.

Já no campo de concentração, sem comida suficiente e sem as mínimas condições de higiene, eram submetidos aos meios mais cruéis de tortura, inclusive experimentos pseudocientíficos, e a trabalhos forçados; quem não estava em condições físicas para o trabalho, era encaminhado diretamente para as câmaras de gás Zyklon-B.

Em 2005, a ONU instituiu a data como Dia Internacional em Homenagem às Vítimas do Holocausto.

Pois bem.

Walter Charles Langer foi um psicólogo americano contratado pelo Escritório de Serviços Estratégicos, a OSS, órgão de inteligência dos Estados Unidos (antecessor da CIA). Os americanos queriam que fosse feito um estudo psicológico de Adolf Hitler, enquanto o líder alemão ainda estava no poder.

A partir de conversas com várias pessoas fora da Alemanha que haviam convivido com Hitler em diversas fases de sua vida, Langer traçou um quadro mental do líder nazista que se tornou um clássico da abordagem psicológica de alguém que não está deitado em um divã.

(Freud já o houvera feito quando, em 1910, publicou o texto “Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci”[2] e, um ano depois, em 1911, escreveu e publicou “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia”,[3] quando analisou, neste segundo caso, desde uma autobiografia, o Magistrado alemão Daniel Paul Schreber, ex-Presidente da Corte de Apelação da Saxônia).

O trabalho do psicólogo americano resultou em um livro publicado no Brasil com o título “A mente de Hitler – O relatório secreto que investigou a psique do líder da Alemanha nazista.”[4]

Logo no início, o autor afirma que, a partir das entrevistas que fez com antigos colaboradores e assistentes do nazista, “Hitler acreditava mesmo em sua própria grandeza.” Assim, por exemplo, em certa oportunidade ele disse a um interlocutor: “Você se dá conta de que está na presença do maior alemão de todos os tempos?” Para um outro, afirmou: “Mas não preciso de seu endosso para me convencer de minha grandeza histórica.” Depois, em outra ocasião, declarou: “Não posso estar errado. O que faço e digo é histórico.

Segundo uma testemunha ouvida pelo psicólogo americano, “Hitler achava que ninguém, na história alemã, estava tão preparado quanto ele para levar os alemães à posição de supremacia que todos os políticos alemães achavam que o povo merecia, mas foram incapazes de alcançarMas, acima de tudo, acreditava em seu sucesso. Acreditava nele incondicionalmente.

Hitler desprezava os intelectuais, razão pela qual não atribuía “sua infalibilidade ou onisciência a qualquer esforço intelectual de sua parte.” A propósito, esbravejava coisas como: “Pessoas excessivamente instruídas, cheias de conhecimento e intelecto, mas vazias de quaisquer instintos sólidosEsses canalhas (intelectuais) insolentes, que sempre sabem mais do que os outros… O intelecto se tornou autocrático e virou uma doença da vida.

A impressão que tinha Langer é que Hitler “acreditava que havia sido enviado para a Alemanha pela Divina Providência e que tinha uma missão específica a cumprir.” Assim, dizia ele: “Cumpro as ordens que a Divina Providência me atribuiu. A Divina Providência quis que eu persistisse no objetivo de cumprir a missão germânica.”

 Langer, então, conclui que “essa firme convicção de que ele tem uma missão e que está sob orientação e proteção da Divina Providência é a responsável, em grande parte, pelo efeito contagioso que ele tem tido sobre os alemães.” Às vezes ele se descrevia como São João Batista, “cuja missão era abrir caminho para aquele que chegaria e levaria a nação ao poder e à glória.”

Assim, “com o passar do tempo, ficou cada vez mais claro que Hitler se via como o Messias e que estava destinado a conduzir a Alemanha à glória. Suas referências à Bíblia se tornaram mais frequentes, e o movimento nazista começou a assumir uma atmosfera religiosa.” (qualquer semelhança com os dias atuais, certamente terá sido uma triste coincidência).

O desatino chegava a tal ponto que ele, não raras vezes, comparou-se com o filho de Deus. Certa feita, chegando a Berlim, e observando o movimento na Kurfürstendamm[5], afirmou que “o luxo, a perversão, a iniquidade, a exposição indecente e o materialismo judaico me repugnaram profundamente, a ponto de eu quase ficar transtornado. Quase imaginei ser Jesus Cristo quando Ele chegou ao Templo de seu Pai e o encontrou tomado pelos cambistas.”

Ele havia sido “enviado para instituir no mundo um novo sistema de valores baseado em brutalidade e violência.” Era descrito como um sujeito “amorfo, quase sem rosto, um homem cujo semblante é uma caricatura, um homem cuja estrutura parece cartilaginosa, sem ossos. Ele é insignificante e volúvel, inadequado e inseguro, de aparência engraçada e complexado.”

Adolf Hitler “sempre conseguia dizer o que a maioria do público já estava pensando em segredo, mas não era capaz de verbalizar.” Ele parecia “ser tão sincero no que dizia, que a maioria de seus ouvintes estava pronta para acreditar em quase tudo de positivo dito a respeito dele porque queria acreditar.” Ele seria “o ápice da honra e da pureza alemãs; o ressuscitador da família e do lar alemães.

Portanto, “de fato, era um terreno fértil para se construir um mito ou uma lenda.” Aliás, o autor via “com clareza que Hitler, desde o início, planejou se tornar uma figura mitológica” e “não demorou muito para que o povo alemão estivesse preparado para dar o pequeno passo de enxergar Hitler não como um homem, mas como um Messias da Alemanha.

Hitler, como a sua propaganda o fazia, apregoava-se como “o paradigma de todas as virtudes”, razão pela qual “ganha o respeito e a admiração de todos os seus colaboradores.” Ele era “capaz de analisar problemas complexos de uma maneira um tanto simplista” o que lhe valeu “a admiração de seus colaboradores próximos desde o início de sua carreira política.” Ele, por exemplo, sabia “a quantidade de tiros que uma metralhadora dispara por minuto, seja uma leve, média ou pesada.”

Langer observou que Hitler conseguiu descobrir e aplicar com êxito diversos fatores da psicologia de grupo, por exemplo:

1) Conquistar o apoio da juventude;

2) Sentir, identificar e expressar, em linguagem apaixonada, as necessidades e os sentimentos mais profundos do alemão comum;

3) Capacidade de apelar às inclinações mais primitivas do homem para despertar os instintos mais baixos e, mesmo assim, mascará-los com nobreza, justificando todas as ações como meios para alcançar um objetivo ideal;

4) Aptidão de recorrer às tradições do povo, evocando as emoções inconscientes mais profundas do público;

5) Compreensão de que a ação política entusiasmada não ocorre se as emoções não estiverem profundamente envolvidas;

6) Um aguçado reconhecimento do valor dos slogans, das palavras da moda, das frases dramáticas e dos epigramas felizes em penetrar nos níveis mais profundos da psique;

7) Reconhecimento do importante papel desempenhado pelas pequenas coisas que afetam a vida diária do homem comum na construção e manutenção do moral do povo;

8) Reconhecimento pleno do fato de que a maioria esmagadora das pessoas quer ser liderada e está pronta e disposta a se submeter caso o líder consiga ganhar seu respeito e sua confiança;

9) Capacidade de convencer os outros a repudiarem suas consciências individuais e permitirem que ele assuma esse papel;

10) Uso pleno do terror e capacidade de mobilização dos medos do povo, os quais ele interpretou com precisão quase excepcional.

Hitler tinha uma “intuição política milagrosa, desprovida de todo senso moral.” Ele conseguia a lealdade do povo, a tal ponto que “parecia tirar-lhes o discernimento”, de uma tal maneira que, “mesmo diante de provas de que ele nem sempre é o que finge ser”, o povo continuava a acreditar nele.

Interessante observar que o líder nazista não sabia como trabalhar regularmente: “de fato, ele é incapaz de trabalhar. Ele nunca foi um ardoroso trabalhador.” Ainda que se tratasse de um assunto importante trazido pelos seus assistentes, “ele se recusa a levá-los a sério, a menos que seja um projeto do seu interesse. É raro permanecer numa reunião de gabinete, porque elas o entendiam.” Tampouco ele “raciocina de forma lógica e consistente”, pois “seus processos mentais funcionam ao contrário. Em vez de estudar o problema, como alguém cerebral faria, ele o evita e se ocupa com outras coisas, até que os processos inconscientes lhe forneçam uma solução. Seus processos de pensamento vão do emocional ao factual, em vez de começarem com os fatos, como alguém cerebral normalmente faz. Nesse aspecto, sua orientação é de um artista, e não a de um político.

Quando Hitler “era confrontado por fatos contraditórios, ficava em apuros”, pois ele “quer as coisas do seu jeito e fica louco quando encontra oposição firme e embasada. Quando é feita uma pergunta inesperada, Hitler fica completamente confuso.

Era comum “ele dar broncas, gritar e gaguejar e, em algumas ocasiões, espuma de saliva se acumula nos cantos de sua boca. Fúria e insultos tornaram-se as armas favoritas de seu arsenal.” Ele não tinha “verdadeira intimidade com nenhum de seus colaboradores.” Ele se utilizava frequentemente de um “truque”: “quando a situação se torna embaraçosa, ele se esconde.”

Quando era preciso se encontrar com jornalistas, “ele fica nervoso e tende a perder a compostura”, ficando sempre na defensiva “quando se trata de entrevistas” e “apavorado quando é chamado para falar com intelectuais ou qualquer grupo no qual perceba oposição ou a possibilidade de críticas.” Na verdade, ele não conseguia “manter uma conversa ou discussão normal com as pessoas.”

Segundo um dos entrevistados por Langer, Hitler “sempre foi um impostor”, nada obstante não parecer “ter consciência de quão desonesto é.” Era conhecida a sua capacidade de “dizer algo um dia e, alguns dias depois, dizer o oposto, completamente alheio à sua afirmação anterior.” Aliás, “a maioria dos nazistas, inspirada em Hitler, literalmente se esquece de qualquer coisa que eles não querem lembrar.”

Langer observou que no início da carreira de Hitler ele era visto como um sujeito apenas divertido, razão pela qual “muitas pessoas se recusaram a levá-lo a sério, alegando que provavelmente ele não iria durar. Quando uma ação após a outra teve um sucesso incrível e seu tamanho se tornou mais evidente, o divertimento se transformou em incredulidade.”

Uma das conclusões mais importantes a que chegou o autor, a meu ver, foi a constatação de que Hitler era “a expressão de um estado de espírito existente em milhões de pessoas, não só na Alemanha, mas, em menor grau, em todos os países civilizados”, motivo pelo qual o seu desaparecimento não seria necessariamente a cura. O que se precisa é “corrigir os fatores subjacentes que produziram o fenômeno importuno.” Necessário, portanto, que sejam descobertos “os fluxos psicológicos que alimentam esse estado de espírito destrutivo, para que possamos desviá-los para canais que permitirão que nossa forma de civilização continue evoluindo.”

Eis, ainda que muito resumidamente – pois o livro contém muito mais informações – um retrato da mente de um líder nazista. Quanta semelhança com algumas figuras dos dias de hoje. A impressão que se tem é que se não tivesse sido revelada, desde o começo, a identidade da personagem analisada no livro e, ao final, fosse perguntado ao leitor ou à leitora de quem se tratava, a resposta seria imediata!


[1] Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

[2] Este texto encontra-se no Volume 9 das Obras Completas de Sigmund Freud, editadas e publicadas pela Companhia das Letras, páginas 113 a 219.

[3] Este estudo está no Volume 10 das mesmas Obras Completas, páginas 13 a 107.

[4] Publicado pela Editora Casa da Palavra/Leya, em 2018.

[5] Nome de uma das principais avenidas comerciais de Berlim.

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