Por Najla Passos.*
O ódio da mídia ao MST acompanha os 30 anos do movimento, desde a sua fundação, em janeiro de 1984. Mas o padrão de manipulação usado para tentar fraudar a imagem do movimento muda bastante, acompanhando a conjuntura e tentando tirar proveito dela.
Prova é a forma com que a maior revista do país, a Veja, teceu a trajetória do MST em suas páginas: primeiro com a tentativa de cooptação, depois com total invisibilidade, até a campanha permanente de criminalização, que oscilou da associação com o perigo comunista, herdada da ditadura, à acusação de terrorismo, no período pós 11 de setembro.
Nos últimos anos, uma nova condenação ao ostracismo, acompanhada pelo conjunto da mídia, garantiu a retirada do tema reforma agrária da pauta nacional.
O MST foi fundado no bojo do mesmo desejo de democracia que levou às ruas a Campanha das Diretas Já, como um movimento pacífico de luta pela terra. Mas o esforço dos companheiros que tentavam retomar a pauta da reforma agrária, interrompida com o deposição de João Goulart em 1964, não mereceu nem mesmo uma linha nas páginas da revista.
Isso só viria a acontecer em junho do ano seguinte, quando José Sarney já havia herdado de Tancredo Neves o posto de primeiro presidente civil pós-ditadura, e acabava de lançar um pacote para viabilizar uma espécie de reforma agrária que jamais sairia do papel.
Assumindo para si um papel nunca a ela delegado de mediadora do “pacto social” que Sarney propunha ao Brasil polarizado, Veja defendeu o pacote na reportagem de capa “Reforma Agrária – os fazendeiros se armam”, de 19 de junho de 1985.
O MST, que não apoiava a proposta, aparecia como um movimento localizado apenas em Santa Catarina, sem respaldo suficiente para se tornar um grande interlocutor do governo em relação ao tema.
O movimento voltou a ser capa da revista quando o país já se deparava com as falsas promessas de desenvolvimento do neoliberalismo, defendido com veemência pela revista.
O alagoano Fernando Collor de Mello, lançado nas famosas páginas amarelas como o Caçador de Marajás, havia ganhado a primeira eleição presidencial pós-ditadura, prometendo abertura às importações e diminuição das funções do Estado, em contraposição ao sindicalista Luiz Inácio da Silva, que defendia pautas mais sociais, como a bandeira da reforma agrária do MST.
No dia 15 de agosto de 1990, a Veja publicou sua primeira reportagem atacando frontalmente o MST. Na foto de capa, um único sem-terra, “armado” com sua foice, aterrorizava um exército de policiais armados com escudos, cassetetes e revólveres. Inaugurou ali a utilização do clássico termo “baderna”, com que até hoje descreve as ações do movimento. Depois disso, a revista se calou acerca do MST, que continuou crescendo, a ponto de se transformar no maior movimento social brasileiro.
Ostracismo midiático
Em 1994, na corrida presidencial que contrapunha o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e novamente o operário Lula, o MST começou a ganhar espaço em outros órgãos de imprensa. A Folha de S. Paulo, em 1994, publicou 40 matérias sobre o MST. Em 1995, já com Fernando Henrique na presidência, foram 450.
A Veja, porém, continuou firme no seu propósito de condenar o movimento ao ostracismo e, assim, manter longe da agenda nacional a pauta da reforma agrária. Duas grandes tragédias, porém, lançaram nova luz sobre o movimento: os massacres de Corumbiara e de Eldorado dos Carajás.
Em 9 de agosto de 1995, 355 sem-terra foram presos e torturados, 125 ficaram gravemente feridos e nove morreram, incluindo a pequena Vanessa, de 6 anos. Eles não eram ligados ao MST, mas a imprensa não fez esta distinção ao tratar do caso. O assunto ganhou repercussão internacional. Ainda assim, Veja resistiu o quanto pode.
Só foi noticiar o massacre quase um mês depois, na edição de 6 de setembro. A matéria “Executados, torturados e humilhados” apresentava o tom de indignação que tomava o mundo e não fazia alusões ao MST.
Em 17 de abril de 1996, 21 sem-terra ligados ao MST foram brutalmente executados e 51 ficaram feridos, no Massacre de Eldorado dos Carajás.
O crime causou comoção mundial e a Veja não pode mais ignorar o movimento. Na edição de 24 de abril, a revista era pura indignação. A própria capa já era uma denúncia contra a atrocidade, com a exibição de um trabalhador rural assassinado com um tiro na nuca.
Na reportagem, Veja trouxe pela primeira vez a menção a um Brasil arcaico e um outro moderno, a partir de uma analogia usada dias antes pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.
Segundo a revista, “como um sociólogo debruçado sobre personagens de uma tese acadêmica, e não pessoas de carne e osso, com sonhos de um futuro melhor, filhos pra criar e uma vida para tocar, Fernando Henrique classificou os sem-terra e a PM de presentantes do ‘Brasil arcaico’, em oposição ao ‘moderno’, do qual se considera representante, talvez condutor”.
Mas se a matéria principal tecia uma das raras críticas da publicação ao presidente e se mostrava solidária aos sem-terra, o box intitulado “O Sindicato-partido do MST” fazia o oposto, ao afirmar que o movimento era armado e tinha tradição de enfrentar a polícia.
Alvo prioritário
Após 1996, durante o império do pensamento único, a Veja transformou o MST em seu alvo prioritário.
De acordo com a pesquisadora Carla Silva, no livro “Veja: o indispensável partido neoliberal”, as investidas contra o movimento superaram até mesmo os ataques ao PT e a igreja combativa. “Neste caso [do MST] não há uma tentativa de cooptação ou de diálogo, como se vê em relação ao PT, a quem a revista busca em vários momentos apontar linhas de ação.
Também não há uma visão despolitizada como a Renovação Carismática colocada em oposição à CNBB. No caso do MST, a crítica é permanente”, registrou ela.
Na edição de 16 de abril de 1997, “A marcha dos radicais – quem são e o que querem os sem-terra” apresentava o movimento como o retrato mais perfeito do Brasil arcaico de que falava FHC em 1995 – e que até a própria Veja condenara. Os sem-terra eram apresentados como um povo inculto e atrasado, tal como os beatos seguidores de Antônio Conselheiro que desafiaram a República a se lançar na Guerra de Canudos.
“Representantes de um Brasil Arcaicao, descalços, dentes ruins, bicho-de-pé e pouco estudo, os sem-terra invadem propriedades, desrespeitam a lei e enfrentam a polícia. Já morreram e mataram nesses conflitos. Parecem um pouco os fanáticos do beato Antônio Conselheiro”, pregava a revista.
Em outro momento, a reportagem acabava por revelar o porquê do seu ódio ao MST, considerado por ela a única oposição, de fato, ao governo FHC, após o que classificava de “desmoronamento da oposição sindical, da oposição de esquerda (PT e Lula) e também da de direita (o PPB de Maluf)”.
E, em um terceiro momento, justificava porque precisava inverter a imagem do movimento perante a população: pesquisa do Ibope realizada no período mostrava que 83% dos brasileiros apoiavam a reforma agrária e 40% eram favoráveis, até mesmo à invasão de fazendas.
O MST e o “perigo vermelho”
As investidas da Veja contra o MST se tornaram mais agressivas nos anos seguintes. Na edição de 3 de junho de 1998, às vésperas da eleição que reconduziu FHC à presidência, a revista apresentava aos seus leitores um MST absolutamente aterrorizante. A foto de capa trazia João Pedro Stédile, umas das principais lideranças do movimento, com feições sérias, em tons vermelhos, a própria encarnação do demônio.
O texto “A esquerda com raiva – inspirados por ideais zapatistas, leninistas, maoístas e cristãos, os líderes do MST pregam a implosão da democracia burguesa e sonham com um Brasil socialista” resgatava o pânico do perigo vermelho inculcado nos brasileiros pela ditadura.
Em 10 de maio de 2000, mais um exemplo: a matéria de capa “A tática da baderna – O MST usa o pretexto da reforma agrária para pregar a revolução socialista” voltava a semear o pânico. O texto da reportagem seguia a mesma linha: “Numa palavra, o MST não quer mais terra.
O movimento quer toda a terra, quer tomar o poder no país por meio da revolução e, feito isso, implantar por aqui um socialismo tardio (…)”. Num box com a suíte “Meu nome é Stédile, João Stédile”, uma fotomontagem apresentava o líder sem-terra vestido de smoking e portando pistola automática, no melhor estilo James Bond, o espião da série 007 que tinha licença da rainha da Inglaterra para matar.
O MST terrorista
Depois dos atentados de 11 de setembro de 2011, com o mundo estarrecido frente ao perigo terrorista, a Veja se apropriou do pânico generalizado para, mais uma vez, inovar no tratamento destinado ao MST.
A etapa da tentativa de construção desse “MST terrorista” propagado pela revista começou com a publicação, em 18 de junho de 2003, quando Lula já havia assumido a presidência, da reportagem de capa em analogia direta à capa de 1998 que trazia Stédile travestido de diabo.
Nesta, o eleito para compor o quadro foi o então líder do movimento, José Rainha, estampado em foto de capa com a manchete “A esquerda delirante – Para salvar os miseráveis dos ‘desconfortos do capitalismo, o líder sem-terra José Rainha ameaça criar no interior de São Paulo um acampamento gigantesco como o de Canudos, instalado há um século por Antônio conselheiro no sertão da Bahia”,
Na reportagem, os mesmos estereótipos martelados na década anterior: anacronismo, atraso, radicalismo e táticas agressivas foram algumas das expressões reutilizadas. Também veio da década anterior a associação do líder sem-terra com o beato Antônio Conselheiro, tratado pela história oficial como o fanático que não aceitava os tempos modernos da república.
Seguidores, pregação, beato, promessas e glorificação ideológica ajudavam a compor o texto que não poupou nem mesmo Euclides da Cunha, autor do clássico Os Sertões, que fala sobre Canudos, a ser citado na matéria para respaldar os absurdos propagados pela revista.
A partir daí, as matérias negativas contra o MST se tornaram pauta obrigatória em todas as edições da revista. Exemplo claro é o editorial “Veja avisou”, da edição de 2 de julho de 2003, que recuperava todas as críticas feitas pela revista ao movimento ao longo da década.
Em 30 de julho, a matéria “Stédile declara guerra” reforçava a associação do movimento à baderna e à violência, acusando-o de misturar os “excluídos do campo e da cidade, o complexo de culpa da classe média e a falta de firmeza das autoridades com as ilegalidades praticadas”. Foi nesta toada que a Veja concluiu o primeiro ano do mandado do ex-presidente Lula.
No início de 2004, a bancada ruralista, munida das páginas de Veja, começou a colher assinaturas para a instalação da CPI da Terra. A revista continuou firme na campanha, cada vez mais ácida.
Na edição de 14 de abril daquele ano, a reportagem “O abril sem lei do MST” atestava a inoperância do governo Lula para conter as “ações criminosas” do movimento: a luta pela reforma agrária. Na semana seguinte, a matéria “Como na guerra” narrava a historia de um fazendeiro obrigado a fazer barricadas para se proteger dos “beligerantes” sem-terra.
As “madraçais” do MST
No final de setembro, o deputado João Batista usou a Tribuna da Câmara para exigir que o MEC fiscalizasse as escolas mantidas com dinheiro público nos assentamentos. Com base em matéria publicada pela Veja, ele acusava as escolas de formar futuros revolucionários, extirpando “o raciocínio lógico e o senso crítico” dos futuros cidadãos brasileiros.
A base da denúncia que gerou calorosos debates foi a matéria “Madraçais do MST”, publicada na edição de 8 de setembro de 2004. “Assim como os internatos muçulmanos, as escolas dos Sem-Terra ensinam o ódio e instigam a revolução. Os infiéis, no caso, somos todos nós”, bradava a revista.
Em 2005, uma nova e ousada tentativa de criminalizar o MST. Na matéria “Ligações perigosas – escuta mostra que o MST orientou a facção criminosa PCC a organizar uma manifestação”, a revista acusava, sem nenhuma base palpável, o maior movimento social de brasileiro de ter relações sólidas com o movimento criminoso que, à época, assustava o país. As ligações jamais foram comprovadas, mas a revista nunca desmentiu as acusações.
No final do ano, a tal CPI da Terra apresentou seu relatório final propondo a transformação de invasão de terra em prática terrorista. Veja apelou de novo. Na reportagem “O terror contra o saber – braço feminino do MST destrói laboratório com mais de uma década de pesquisas”.
A revista, claro, omitiu que o tal laboratório, da empresa Aracruz, realizava pesquisas com sementes transgênicas que causavam imensos prejuízos à agricultura familiar e agroecológica da região.
Nesta época, o desgaste sofrido pela imagem do MST já era claramente perceptível. Uma nova pesquisa do Ibope encomendada pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), em 2006, mostrou o efeito de uma década de propaganda de Veja contra o MST: 56% dos brasileiros achavam que as ações do MST causavam mais resultados negativos para a reforma agrária do que positivos e 53% acreditavam que o governo deveria usar a polícia para conter as invasões.
Ataques e omissões recentes
Em 2009, a Veja conseguiu, enfim, respaldar a instalação de mais uma CPI para investigar o MST, a partir da reportagem de capa “Por dentro do cofre do MST”, na qual a revista acusava o governo federal e entidades internacionais de financiar as atividades classificadas como criminosas do movimento.
Era a terceira, criada em cinco anos, para investigar e desgastar o MST. Para o governo Lula, ficava cada vez mais temerário apoiar o movimento já associado ao terrorismo, mesmo que, contra eles, não se provasse nada. A causa da reforma agrária foi sendo cada vez mais minada e abandonada.
Desde então, a presença do MST nas páginas da revista foi declinando. A luta dos sem-terra pela reforma agrária nunca mais mereceu reportagem de capa, ainda que para criticá-la. A presidenta Dilma Rousseff assumiu a presidência e governou os três primeiros anos do seu mandato com o MST e a reforma agrária na mais absoluta invisibilidade.
Portanto, foi mais fácil para ela registrar os piores índices de investimentos na causa: conseguiu destinar um volume de terras à reforma agrária menor do que seu adversário, FHC, e assentou um número menor de famílias do que seu antecessor, Lula. E com a benevolência da revista.
* Da Carta Maior