Operação policial quer enquadrar anarquistas e coletivos culturais como “organização criminosa”

Por Marco Weissheimer.

Orlando Vitor, acompanhado por sua mãe, em frente à sede da Parrhesia, um dos alvos da Operação Érebo. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Orlando Vitor foi acordado às seis horas da manhã, no dia 25 de outubro, com a Polícia Civil batendo à porta de sua casa, na Travessa dos Venezianos, bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. Em um primeiro momento, pensou que era um pesadelo, mas logo se deu conta de que era uma situação real. Ele contou três viaturas da polícia, mais um carro da RBS, afiliada da Rede Globo no Rio Grande do Sul. Um tempo depois de terem entrado na estreita casa de dois pisos, relata Orlando, os policiais apresentaram um papel que seria um mandado de busca e apreensão. “Não consegui ler direito na hora porque estava sem os meus óculos. Os advogados confirmaram hoje (dia 26) que estava escrito FAG/Parrhesia”.

FAG é a Federação Anarquista Gaúcha, organização política anarquista com sede em Porto Alegre. Fundada em 2011, a Parrhesia é uma organização não-governamental que atua junto a movimentos sociais nas áreas de direitos humanos, cultura, educação e comunicação popular, premiada em 2013 e 2015 pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) por boas práticas em direitos humanos. Representando a Parrhesia, Orlando participou do Fórum Social da Tunísia, em 2015, e do Fórum Social do Canadá, em 2016. Também participou de um seminário internacional em Bruxelas, onde defendeu, entre outras coisas, a luta anti-cárcere. “Fiquei dois meses no Canadá, fazendo atividades nas quatro universidades de Montreal. Agora em 2017, ajudamos a organizar o Fórum Social das Resistências, em Porto Alegre, e estamos trabalhando para a realização do Fórum Social Mundial de 2018, em Salvador”, conta.

Trabalho de Orlando Vitor já ganhou dois prêmios da Ajuris por boas práticas em direitos humanos. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

A visita que Orlando Vitor recebeu às seis horas da manhã fez parte da Operação Érebo, comandada pela 1a Delegacia de Polícia de Porto Alegre, com o objetivo de “combate à associação criminosa que praticava crimes fazendo uso de artifícios incendiários e explosivos contra instituições públicas e privadas, na capital”. Segundo nota divulgada pela Polícia Civil gaúcha, foram cumpridos dez mandados de busca e apreensão em Porto Alegre, Viamão e Novo Hamburgo. Na ação, disse ainda a polícia, “diversos materiais comprovantes da participação do grupo criminoso em atentados, bem como livros que relatam os feitos, foram apreendidos”. A nota não informa que materiais probatórios foram estes nem os títulos dos livros que relatariam os referidos feitos.

Segundo o delegado Paulo César Jardim, comandante da operação, as investigações tiveram início em meados de 2016 quando ocorreram atentados contra a 1ª Delegacia de Polícia da Capital. Ao todo, 11 inquéritos foram instaurados para “apurar diversos fatos praticados pelo grupo investigado, como ataques a viaturas policiais civis e militares, incêndio no pátio da Secretaria de Segurança Pública, ataques a sedes de partidos políticos, bancos privados e concessionária de veículos”. Além disso, segundo Jardim, também foi realizado um atentado a um veículo oficial do Consulado da Alemanha, em Porto Alegre.

Além de computadores e de um notebook, ação policial aprendeu livros, panfletos e outros materiais impressos na Parrhesia. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Érebo X Parrhesia

Orlando Vitor observa a ironia da escolha da palavra “Érebo” para designar a operação policial e sua investida contra a “Parrhesia”. Érebo, na mitologia grega, é a personificação das trevas e da escuridão, representando uma região do Hades por onde os mortos tinham passar imediatamente depois da morte. Já a Parrhesia designa o ato de falar com coragem, mesmo diante de um risco que pode ameaçar a própria vida. É a coragem, portanto, de falar a verdade, mesmo diante do risco da morte. “A parrhesia significa ousar, desafiar e fazemos isso no dia-a-dia colocando a nossa cara a tapa, junto com os movimentos sociais que estão sendo criminalizados nestes governos Temer, Sartori e Marchezan”, assinala.

Orlando teve seus computadores e equipamentos de trabalho apreendidos pela polícia. Entre outras coisas, ele estava editando materiais para movimentos de luta por moradia como a Ocupação Saraí e o assentamento 20 de Novembro. “Eles levaram nossos computadores, nosso notebook, pen-drives e todo o material que eu tenho pra editar do Fórum Social Mundial. Levaram também um HD que tem todo o histórico das coisas que a gente fez desde 2011. Estão causando um grande transtorno à nossa vida”, lamenta.

Na ação, segundo ele, os policiais falaram pouco, mas fizeram uma abordagem “meio truculenta”. “Quando eu me identifiquei como egresso do sistema prisional, escutei algumas piadas e inserções chavões. Eu disse que eles estavam se arriando e que não era preciso nada daquilo, que aqui não era a FAG mas a Parrhesia, mas eles não deram muita bola”. Além disso, acrescenta, a reportagem exibida mais tarde pela RBS expôs a fachada da casa, informando a localização do prédio e criminalizando seus ocupantes, afirmando que as reuniões do grupo investigado pela polícia ocorriam ali. “Aqui a gente funciona como uma associação cultural e também é a nossa casa. Temos CNPJ, conta em banco e aquela maquininha amarelinha (para débito)”.

A ação da polícia, na opinião de Orlando, foi um ataque direto a uma associação que serve de apoio e voz a movimentos sociais. Instalado na Travessa dos Venezianos desde fevereiro de 2014, ele conta que nunca teve relação alguma com a FAG. “A gente conhece algumas pessoas da militâncias, mas nunca tivemos uma atividade conjunta com eles. Cada grupo tem a sua forma de atuação. A nossa escolha foi por se institucionalizar e até recebemos críticas por isso, mas achamos importante ocupar esses espaços para fazer algo pela juventude periférica, que está sendo exterminada, pela população de rua e para combater a criminalização dos movimentos sociais”.

Nubia Quintana: “Recolheram garrafas pet compactadoras de plástico que foram apresentadas como prova do preparo de coquetéis molotov”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Coquetéis molotov X reciclagem de plástico

Mais ou menos no mesmo momento em que entrava no instituto Parrhesia, um outro destacamento da Polícia Civil arrombava o portão de entrada da Ocupação Pandorga, no bairro Azenha, dentro da mesma operação Érebo. Núbia Quintana, integrante do coletivo que cuida da ocupação, relata o que ouviu dos moradores que estavam no local no momento da entrada da polícia. “Em sua maioria, são pessoas que estão de passagem, artistas de rua que ficam hospedadas aqui enquanto desenvolvem projetos com as crianças que moram na região. Às seis horas da manhã, a Polícia Civil arrombou o portão principal, fortemente armada. As pessoas, que foram acordadas, foram mandadas deitar no chão e ficaram ali com armas apontadas durante um bom período, enquanto todos os cantos da casa eram revistados e revirados atrás de armas, drogas ou documentos”.

Nesta ação, relata ainda Núbia Quintana, foram apreendidos alguns cartazes, fanzines, faixas, panfletos, adesivos e material da oficina de serigrafia. Também foi levado um computador de uso comum da casa e, das pessoas presentes, foi levado um tablet, três celulares e alguns pen-drives. “Depois disso, foram para a nossa horta e, no lixo seco, recolheram garrafas pet compactadoras de plástico que foram apresentadas como prova do preparo de coquetéis molotov”, diz Núbia. Essas garrafas, afirma, têm um propósito muito diferente:

“Nós fazemos parte de uma região da cidade onde a coleta seletiva de resíduos sólidos não acontece. Então, nós compactamos o nosso lixo plástico de forma a ocupar o menor volume e ficar o mais fácil possível para ser entregue para a reciclagem. Temos os galpões do DMLU aqui do lado para onde levamos essas garrafas. É uma técnica muito simples. Você pega uma garrafa pet, um pneu ou alguma coisa que tenha uma área restrita e vai colocando todo o resíduo plástico nela até saturar o espaço. Fazemos oficinas com as crianças da comunidade para ensinar essa técnica de reciclagem, já que não há coleta de resíduos sólidos nesta região. Esse material é que foi considerado pela polícia como base para a fabricação de explosivos. Isso nos deixa bastante preocupados, pois tem alguém aí incendiando viaturas, que não somos nós, e os bandidos responsáveis por isso devem estar dando risadas”.

Entre outras atividades, a Ocupação Pandorga acolhe pessoas que estão de passagem pela cidade e é um espaço de treinamento para artistas de rua. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Assim como aconteceu na Parrhesia, jornalistas da RBS acompanharam a ação policial e foram chamados para entrar no prédio para registrar o resultado da ação de busca e apreensão, com um destaque especial para as garrafas PET, uma suposta prova do preparo de coquetéis molotov.

Núbia manifestou preocupação também com o tratamento que foi dado aos estrangeiros que estavam no local. A Ocupação Pandorga é um espaço de treinamento para o circo de rua. Uma das características desse movimento mundial, que é bastante forte na América Latina, é a circulação de artistas de vários países. “Tínhamos vários artistas estrangeiros hospedados aqui na Pandorga e nos preocupou a abordagem feita pela polícia, que pareceu um pouco xenófoba. Um alemão e um colombiano, em especial, ao declararem suas nacionalidades, foram bastante hostilizadas e já foram embora da ocupação com medo pelo o que aconteceu. O colombiano chegou a ser atirado no chão pelos policiais. A impressão que deu foi que a mera presença de uma pessoa de nacionalidade colombiana já nos tornou terroristas”.

FAG aponta precedente gravíssimo

No final da tarde de quinta-feira, a Federação Anarquista Gaúcha concedeu uma entrevista coletiva, na sede da entidade, onde denunciou o caráter ideológico da ação policial e a definiu como um mais um factóide para alimentar o processo de criminalização dos anarquistas, dos movimentos sociais e dos coletivos culturais alternativos que existem na cidade. Lorena Castillo, militante, lembrou que, em menos de dez anos, a FAG já sofreu quatro tentativas de criminalização.

Lorena Castillo: “Esse é um precedente grave não só para os anarquistas, mas para todas as organizações de esquerda”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

A primeira ocorreu em outubro de 2009, durante o governo Yeda Crusius, quando a sede da organização foi invadida por policiais que apreenderam equipamentos, arquivos e materiais de propaganda. Essa ação foi motivada por uma campanha com cartazes de rua para denunciar a então governador Yeda Crusius pelo assassinato do sem terra Eltom Brum da Silva pela Brigada Militar. Em junho de 2013, durante o governo Tarso Genro, policiais entraram no Ateneu Libertário Batalha da Várzea, onde apreenderam vários livros de literatura anarquista. Em outubro do mesmo ano, o Ateneu foi mais uma vez visitado pela polícia em busca de provas contra integrantes do Bloco de Lutas e de outras organizações que participaram dos protestos daquele ano. Seis militantes do Bloco acabaram sendo indiciados por formação de quadrilha, formação de milícias privadas, entre outras acusações. E agora, no dia 25 de outubro de 2017, no governo José Ivo Sartori, disse Lorena, a policia promoveu um novo factóide contra a organização, envolvendo também coletivos culturais que não tem ligação com a FAG. A militante da FAG define o que aconteceu na quarta-feira como um “precedente gravíssimo”:

“Pela vidraça do anarquismo, organizações de esquerda, grupos culturais e sociais tiveram seus espaços invadidos com mandados de busca e apreensão que autorizam, entre outras coisas, a apreensão de literatura. Para nós, isso é algo gravíssimo. A nossa biblioteca, que tem cerca de mil títulos, não só de livros anarquistas, mas de literatura em geral, já teve vários livros apreendidos e mesmo furtados. Condenamos de forma veemente o que aconteceu ontem e manifestamos aqui a nossa solidariedade aos companheiros e companheiras que tiveram seus espaços e direitos violados. Repudiamos a perseguição a todo grupo político, social, cultural e de direitos humanos que passa agora a ser investigado por, supostamente, formar uma quadrilha de criminosos”.

Em um vídeo publicado na página da Polícia Civil gaúcha, o delegado Eduardo Hartz disse que o objetivo da Operação Érebo é desmantelar uma organização criminosa que “segue uma ideologia de descrédito aos poderes constituídos”. Na mesma linha, o delegado Paulo Cesar Jardim afirmou que a operação “visa desmantelar uma quadrilha de pessoas, de estudantes universitários, alguns com mestrado, outros com doutorado, que estavam executando ataques com bombas explosivas incendiárias contra as autoridades constituídas em Porto Alegre”.

Nota de repúdio da UFRGS

A Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS (PPGAS/UFRGS) emitiu nota de repúdio à matéria da RBS sobre o caso. A nota critica as “notícias sensacionalistas envolvendo ações supostamente criminosas atribuídas a alunas e alunos dos cursos de mestrado e de doutorado dessa instituição”. “Independentemente de haver ou não estudantes envolvidos em tais ações, a divulgação expressa de tais notícias sem a devida apuração dos fatos abala a credibilidade de nossa instituição como um todo, em especial, de nosso corpo discente, além de constituir clara violação dos direitos das pessoas envolvidas em terem sua identidade preservada em todos os aspectos”, afirma a nota. O PPGAS/UFRGS, conclui, “declara que não se responsabiliza por ações extra-acadêmicas de seus discentes e que é uma instituição idônea que apoia a democracia e seus aparatos de constituição e preservação de direitos em todas as instâncias”.

FAG diz que já foi alvo de quatro ações policiais nos últimos dez anos. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sinais de alerta

Para Lorena Castillo, o contexto que cerca essa operação emite alguns sinais de alerta. “Estamos vivendo um momento atípico e muito turbulento no país, principalmente para os de baixo. A retirada de direitos é brutal e está sendo sentida na carne pelos trabalhadores, indígenas, negros, mulheres e público LGBT. Há mais de 20 anos, a nossa organização tem um compromisso firme com sindicatos, associações comunitárias, movimento estudantil e movimentos sociais. Nós não estamos falando de uma organização terrorista, mas de uma organização política que tem o seu quadro de militantes, a sua organicidade, seus debates e a sua sede pública. Seguindo a teoria do domínio de fato, o delegado Jardim tenta enquadrar nossa entidade como líder de uma organização criminosa que estaria agindo na cidade e na região metropolitana”.

Esse é um precedente grave não só para os anarquistas, alertou. “As demais organizações de esquerda precisam se dar conta de que, agora, é com os anarquistas, depois poderão ser os comunistas e assim por diante. Se isso não ocorrer, teremos um grave problema de solidariedade de classe e de entendimento sobre a atual conjuntura de cerceamento dos direitos de livre associação e livre expressão. Quando você tem mandado judicial que autoriza a apreensão de literatura temos uma quebra de direitos muito grave”. Com o objetivo de denunciar essa situação e expressar solidariedade às pessoas e grupos que foram envolvidas na ação policial, a FAG convocou um ato público para este sábado (27), às 18h30min, no Ateneu Libertário a batalha da Várzea, na rua Lobo da Costa, bairro Cidade Baixa.

Galeria de fotos

Foto: Guilherme Santos/Sul21
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Fonte: Sul21

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