Em 1961, 14 mil crianças e adolescentes cubanos foram levados aos EUA por vontade de suas famílias, apoiadas pela Igreja Católica e pela CIA, a Central de Inteligência Americana. O inusitado êxodo infanto-juvenil, episódio pouco conhecido da Guerra Fria, ganhou o nome de “Operação Peter Pan” e foi reconstruído – ao longos dos últimos 32 anos – pela cineasta estadunidense cubana Estela Bravo, no documentário Operação Peter Pan: Fechando o Círculo em Cuba.
Cópia de trabalho do filme foi exibida pela TV cubana em 1991, no momento em que Cuba e EUA disputavam “poder pátrio” sobre o menino Elián González. A comunidade de exilados cubanos queria manter a criança em Miami. O pai cubano queria repatriá-lo. Cuba venceu a “disputa”. O “exílio coletivo” dos meninos de 1961 servia para lembrar aos espectadores cubanos que, 30 anos depois, as relações entre os dois países continuavam tensas.
De passagem pelo Brasil, a cineasta Estela Bravo e seu produtor (e marido há quase 60 anos) Ernesto Bravo, em conversa com o Brasil de Fato, relembraram os 30 anos dedicados ao documentário Operação Peter Pan, e as motivações que fizeram de ambos cidadãos cubanos.
Brasil de Fato – Primeiro, gostaria de saber como uma cidadã estadunidense e um cidadão argentino tornaram-se figuras de destaque em Cuba? A senhora é documentarista reconhecida, e Ernesto médico e professor universitário festejado.
Estela Bravo – No começo dos anos de 1950, exatamente em 1953, fui a um Congresso da Juventude em Bucareste, no Leste Europeu. Tinha 20 anos, e era filha de sindicalista e órfã de mãe desde os 15 anos. Me coube falar em nome dos estudantes dos EUA. Pelos argentinos, falou Ernesto Bravo, um jovem que fora preso durante o Governo Perón. Eu não falava espanhol, mas dividi o quarto com uma moça do Ceilão (atual Sri Lanka), que conhecia o idioma de Ernesto. Ela serviu de tradutora em meus rápidos contatos com ele. Regressei aos EUA e fui trabalhar na revista América Latina Hoje. Um novo Encontro da Juventude, no Brasil, me entusiasmou, pois poderia passar por Buenos Aires e rever Ernesto. Mas em Buenos Aires meus contatos não foram suficientes para que eu chegasse até ele, que vivia meio clandestino. Fui então para São Paulo. Lá, falei de minha frustração a um amigo cubano. Ele prometeu que me ajudaria. Me levou ao Rio para que eu conhecesse o Carnaval, me apresentou a Oscar Niemeyer e a outros brasileiros que lutavam pela paz mundial. Foi naquela visita que aprendi a pronunciar a palavra “saudade”. Depois da temporada brasileira fui a Buenos Aires e aí tudo deu certo. Reencontrei Ernesto e passei uma semana com ele. Regressei aos EUA e permaneci por lá por pouco mais de um ano. Em janeiro de 1957, Ernesto e eu nos casamos em Buenos Aires. Formado em medicina, ele trabalhava incansavelmente. Eu me empreguei no Aeroporto de Ezeiza. Em 1963, Cuba convidou Ernesto para dar aulas na Faculdade de Medicina, em Havana, por um ano. A Crise de Outubro (Crise dos Mísseis) exigia que apoiássemos a Revolução Cubana, na qual acreditávamos com enorme paixão. Lá fomos os dois, com nossos filhos pequenos. E lá estamos até hoje. Três anos atrás, quando Ernesto completou 80 anos, recebeu grandes homenagens do meio médico-científico pelas contribuições dele à área de biotecnologia.
Por que foram necessários mais de 30 anos para que concluíssem “Operação Peter Pan – Fechando o Círculo em Cuba”?
Primeiro, porque necessitávamos de depoimentos das crianças, agora adultos, que saíram de Cuba em 1961/62 e que estavam espalhadas por vários estados dos EUA. Era necessário localizálas. E saber se queriam dar seus depoimentos ao filme. Neste sentido, a contribuição de Elly Chavel, que morreu em 2007, foi de enorme valia. Ela conseguiu localizar duas mil das 14 mil crianças que foram mandadas aos EUA. Seis deles, adultos já totalmente integrados ao novo país, quiseram voltar a Cuba para “fechar o círculo”. Queriam reencontrar o país que deixaram na infância. Elly, que era muito católica, mobilizou o grupo e fizeram questão de visitar Cuba de forma coletiva. Há entre os “Pedros Panes” (Peter Pans) quem nada saiba sobre a Operação. Há quem saiba e se negue a ir a Cuba, motivado pelo ódio de seus parentes. Fizemos nosso filme respeitando as posições dos que nos prestaram depoimento. O Monsenhor Bryan Walsh, que em nome da Igreja Católica, liderou a Operação ao lado da professora de inglês Penny Powers, apoiado por autoridades estadunidenses, nos deu seu testemunho. Ouvimos autoridades dos EUA, assim como ouvimos historiadores cubanos e até um funcionário do Aeroporto de Havana. Este funcionário ficou perplexo ao ver crianças chorando por serem separadas dos pais e enviadas, sem eles, para um país que desconheciam.
Embora profundamente integrados aos EUA, vê-se em alguns dos “peter pans” ouvidos pelo filme – em especial a cantora Candy Sosa – um grande apego às raízes cubanas.
O caso de Candy é muito especial. Dona de voz belíssima, ela aparecia, menina, num documentário realizado num acampamento de “pedro panes”, cantando uma canção cubana. Localizamos o material e tivemos o prazer de filmá-la, em solo cubano, cantando a mesma canção telúrica. O encontro dos “pedro panes ”com as crianças cubanas, na Havana contemporânea, deixou a todos emocionados. O filme registra alegrias e, também, o sofrimento de alguns dos meninos que foram levados para os EUA. Os pais, os religiosos e a CIA acreditavam que a Revolução Cubana fracassaria. Então as crianças regressariam a seus pais e a seu país, bem-educadas. Seriam poupadas do que acontecia naqueles tempos de muitas transformações políticas e sociais. Aquelas crianças foram vítimas involuntárias da Guerra Fria. Há, no filme, dois “pedro panes” que contam que foram molestados por padres. Um menino e uma menina. Eles lembram também que viveram momentos difíceis. Como eram muitos, foram espalhados por acampamentos e orfanatos. Duas irmãs foram retiradas de um orfanato e levadas para uma residência. Uma delas conta que preferiu regressar à instituição, pois na casa da família adotiva exerciam papel de empregada doméstica. Na primeira fase da Operação Peter Pan foram levadas aos EUA crianças filhas de famílias muito ricas. Depois, crianças de classe média. E, na fase final, crianças pobres de famílias católicas, que não queriam de jeito nenhum ver os filhos crescendo num país comunista.
Você se iniciou no cinema filmando os filhos do Casal Julius & Ethel Rosenberg, em frente à Casa Branca, pedindo clemência ao presidente Eisenhower para que os pais não fossem executados na cadeira elétrica…
O que fiz naquele momento foi documentar os filhos do Casal Rosenberg com uma câmera Super-8. Era uma amadora documentando crianças que clamavam por perdão para os pais. Duas crianças que se tornariam órfãs e, temíamos, amaldiçoadas. Mas eu nem sonhava ser cineasta. Nada sabia de cinema. Só me tornaria cineasta aos 47 anos, em Cuba. Antes de chegar ao cinema, fiz programas de rádio, entrevistei personalidades como meu amigo Peter “Pete” Seeger, o grande cantor folk, hoje com 92 anos; Angela Davis, o cantor Paul Robeson. Até que, no final dos anos 70, ao me deparar com o regresso de 125 mil cubanos que haviam partido de Cuba, vi ali o tema para um documentário. Afinal, a experiência foi traumática para os dois lados. Para os que chegavam e encontravam um país mudado, e os que viviam em Cuba e não sabiam como conviver com tantos que chegavam. Houve, também, o episódio da Invasão da Embaixada do Peru (1990) quando milhares de cubanos lá se refugiaram. Fiz, a partir deste episódio, o documentário Los Que Se Fuerón. Este filme teve problemas e não foi exibido na TV Cubana. Até que procurei Fidel e contei a ele que estava com dificuldade para exibir o filme. Isto porque autoridades ligadas à TV se incomodavam com depoimentos de dissidentes cubanos, radicados em Miami, que prometiam enforcar todos os fidelistas. Fidel me pediu uma cópia do filme para ver e brincou comigo: “você sabe que sou mais liberal do que muitos de nossos subordinados”. E liberou a exibição do filme. No documentário Los Que Se Fuerón mostramos os cubanos que partiram para o Peru (sendo abrigados nos Acampamentos Tupac Amaru), os que foram para a Nicarágua sandinista (médicos e professores, em especial), os que foram lutar em Angola .Fiz tudo com muitas imagens e poucas narração. Aliás, cada vez uso menos narração em off. Mas os ingleses continuam gostando muito de narração off. Cultivam esta voz que amarra e explica tudo. Quando co-produzem meus filmes, querem narração em off.
A senhora juntou, em 40 anos de trabalho como documentarista, rico acervo de imagens colhidas em diversos países da América Latina. No Brasil, filmou o sindicalista Lula e colheu longo depoimento de Luiz Carlos Prestes. Tem planos de realizar um filme autobiográfico, narrando as andanças do Casal Bravo pelo mundo, e mostrando o melhor destas imagens?
Antes de qualquer plano, nossa meta é salvar nosso acervo. Temos mais de mil fitas de vídeo com material de grande valor documental. Material cubano e latino- americano. Tenho imagens da atriz Libertad Lamarque conversando com a bailarina Alicia Alonso; Lula dando entrevista na casa dele, no ABC, com um poster de Lech Walesa na parede. Tenho imagens dos marielitos (cubanos que fugiram do país em balsas precárias, a partir do Porto de Mariel). Tenho o depoimento de Prestes e centenas de entrevistas com artistas, políticos e sindicalistas de vários países. Cuba não dispõe de recursos para nos ajudar. Tentamos apoio da Fundação Gugenheim, mas não conseguimos. Estamos em busca de quem possa nos ajudar. Quanto à sua pergunta, “se faria um filme sobre uma jovem estadunidense que se casou com um argentino e adotou Cuba”, ainda não pensamos nisto, mas é uma ideia. Antes, uma cineasta minha conterrânea, Susan Steinberg, nos propôs realizar um filme conosco. Mas pressentimos que ela, que hoje vive em Londres, queria fazer um filme muito, digamos, psicanalítico. Não nos entusiasmou muito. Quem sabe fazemos esta autobiografia que você nos sugere. Prometemos pensar no assunto.