Após a operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, ocorrida no último dia 6, na comunidade do Jacarezinho, com 28 mortos, o dia das mães neste domingo (9) foi marcado pela dor. E também por novas denúncias de violações divulgadas pelas mulheres que, em luto, choram pela morte de seus filhos. Em entrevista ao UOL, elas contaram que, antes de seus entes serem mortos, eles chegaram a enviar mensagens pedindo socorro, com intuito de que a presença dos familiares pudesse impedir a chacina.
Mas, de acordo com os relatos dessas mães, os homens foram encurralados pela polícia e acabaram mortos. Uma delas comentou que ouviu os policiais dizerem que “20 mãe chorando era pouco, que tinha que se f* e chorar mais”. “Eu não vou comemorar mais Dia das Mães, Natal. Minha vida acabou. Eu preferia ser morta, mas enterrar um filho… Eu preferia morrer. Não foi uma operação, foi uma chacina”, lamentou a mulher.
Desumanização e racismo
Em entrevista à Marilu Cabañas, do Jornal Brasil Atual, a co-fundadora do Movimento Moleque, Monica Cunha, criticou o que classificou como “falta de respeito e de humanidade absurda” dos agentes da segurança pública. A ativista também repudiou a postura do presidente da República e seu vice, Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, e do governador do Rio, Cláudio Castro (PSC). Isso porque essas autoridades parabenizaram a operação policial, e, sem provas, reduziram todos os 27 civis mortos à “bandidos”. O Movimento Moleque é uma organização que presta assistência às mães de crianças que foram ameaçadas, atacadas ou mortas pelo Estado,
“Eles só comprovaram que o que aconteceu no Jacarezinho, além de ser uma chacina, é o racismo imperando doente, cortando, rasgando a carne e o útero de nós, mulheres negras. Porque não têm nenhuma piedade e solidariedade em ver mães enterrando seus filhos no dia das mães. Eles todos se dizem cristãos, evangélicos, falam em nome da Bíblia. Que evangelização e Bíblia são essas que eles leem que não tem humanidade?”, questiona Monica, também integrante da Coalizão Negra por Direitos e da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). “Eles trataram as mulheres negras como nada no dia das mães. Deixaram claro que mulher negra não tem direito de ser mãe e se for, eles fazem isso, porque eles são o poder e podem tirar a vida quando quiserem. E aí eles mostraram o poder que eles têm nessa chacina que aconteceu dia 6.”
Apesar das denúncias dos moradores, a Polícia Civil, responsável pela operação, ainda reconhece como a única execução a morte do policial André Leonardo de Mello Frias, baleado na cabeça. No sábado, a corporação divulgou a identificação de todas as 27 vítimas, depois de falar em 25 e 29 óbitos, reiterando que eles seriam “criminosos”. A deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) contesta a versão da polícia. De acordo com ela, nem mesmo o comprovado envolvimento dessas pessoas com atos infracionais é possível justificar as mortes.
Pena de morte à brasileira
“Bandido se prende, dá a sentença e condena. É isso que se pode fazer quando se constata que é um bandido.” Ao programa Revista Brasil TVT, ela descreveu que, enquanto a operação ocorria no Jacarezinho, que ela assumiu a tribuna do partido na Câmara para compartilhar as denúncias de execução na operação em Jacarezinho que já chegavam em seu celular. “Eu disse naquela hora que não estavam deixando as pessoas se renderem. Elas queriam se render. Nós não temos pena de morte, mas ela já acontece dessa forma”. Para a deputada, a operação ocorreu de forma ilegal, por descumprir a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que limitou ações policiais nas favelas e periferias do Rio durante o estado de pandemia. Benedita também responsabiliza o governo do Rio e o Ministério Público pela letalidade.
“O que rendeu essa intervenção são mais mortos que foram para a estatística. Aqueles negros e negras da favela, da periferia, e todos que lá estavam são marginais até que prove o contrário. Quem é que tem que provar isso?”, questiona com indignação a parlamentar. “Eu tenho na comunidade minha família e ela tem que provar que não é bandida?. Mas para eles bandido bom é bandido morto, e morto não fala. Então por seguinte, só fica essas vozes desesperadas e surdas das mães, gritando, pedindo socorro para seus filhos. Mas só que o Estado já os considerou inimigos e como inimigos eles têm que eliminar”.
Violência tem CEP
Apesar das alegações institucionais, ao menos 13 vítimas não tinham qualquer relação com a investigação da Polícia Civil que visava prender integrantes de uma organização criminosa envolvida com tráfico de drogas, conforme reportou oEl País. Das 21 pessoas alvos de mandados de prisão, apenas três foram detidas e outras três acabaram mortas. No caso de Matheus Gomes dos Santos, de 21 anos, encontrado morto em uma cadeira de plástico, nenhuma arma consta como apreendida.
O Instituto Fogo Cruzado levantou ainda que 33 pessoas foram baleadas na operação, duas delas dentro do metrô. Monica Cunha observa que esse uso excessivo da força é admitido apenas nas favelas e periferias.
“Quando eles (policiais) vão adentrar, invadir os prédios da zona sul, Leblon, Ipanema, Barra da Tijuca, prédios de pessoas ricas e milionárias, eles vão com mandato pegar os milicianos, parlamentares envolvidos em falcatrua, e vão tocando a campainha. Entram e pegam quem tem que pegar. Eles não invadem os outros apartamentos, eles não fazem escândalo e nenhum presepada. Mas para as nossas favelas, em nossos quilombos, o tamanho dessa operação (no Jacarezinho) comprova que o objetivo não é só prender ou para matar. Eles têm que humilhar, comprovar que podem fazer desse jeito. Entrar, xingar, bater, estuprar, fazer o que eu quiser porque eles (os moradores das comunidades) não são humanos. É um território do nada, que só serve para ser submisso”, reproduz a ativista.
Perícia comprometida
As investigações sobre a chacina também são já criticadas por autoridades e especialistas. De acordo com o portal G1, registros de ocorrência mostram que 24 dos 27 corpos dos civis mortos foram removidos sem perícia no local. Além disso, das armas dos cerca de 200 policiais civis que participaram da ação, apenas 26 foram apreendidas e encaminhadas para a investigação. A avaliação dos especialistas é que, em respeito ao devido processo penal, todas as armas deveriam ser apreendidas e os locais das mortes preservados até a chegada dos peritos.
Há dias sem dormir, Monica Cunha cobra um apuração rigorosa da operação em Jacarezinho. “Eles têm que ser responsabilizados. Não podemos permitir que 28 seres humanos sejam executados sem o direito de ter nome, sobrenome e dessas mães terem o luto e o direito de chorar”. Em paralelo, organizações denunciam o caso em protestos em todo país e pelo mundo. A Coalizão Negra por Direitos já confirmou protestos para esta quinta-feira, o “13 de maio de Lutas”, em referência também à data da abolição da escravatura, em 1888.
“Vamos continuar fazendo o que foi visto na sexta (7) no Jacarezinho. O levante puxado pelas instituições locais e o movimento dos familiares, aquele povo todo. Isso ja esta a nível mundial, a pressão para que as polícias do Estado do Rio parem de nos matar, de nos tratar desumanizadamente, parem de nos ver como fábricas de bandidos, como disse um dia um governador. Nenhuma mãe traz no útero bandido. Toda mãe traz no útero seres humanos”, reforça Monica Cunha.