Por Ricardo Alvarez.
O documentário “A revolução não será televisionada” (Kim Bartley e Donnacha O’Brian, 2002) continua atual. O mês era abril e o ano 2002, exatamente quando o governo Hugo Chávez sofria a ação de golpistas civis e militares que o apearam do poder com o inconteste apoio dos EUA. Os documentaristas irlandeses procuravam realizar uma série de entrevistas para trazer à luz elementos de uma nova realidade na América Latina e, em especial, na Venezuela. Acabaram por filmar um golpe de Estado em suas entranhas.
O desfecho todos conhecemos: o povão desceu o morro, saiu às ruas, ocupou praças e avenidas exigindo o retorno do presidente eleito. Foi um reconhecimento das mudanças que se operavam no país em contraposição aos governantes anteriores. Os golpistas foram fragorosamente derrotados, Chávez voltou ao poder fortalecido, mas obviamente não se desfez da sombra dos EUA.
A atual crise na Venezuela é um desdobramento desta relação imperial de insatisfação dos EUA com os rumos da Venezuela em sua nova fase. Leopoldo López, líder dos protestos atuais e detido por estimular a violência, esteve presente no golpe frustrado em 2002, que pretendia, dentre outras medidas liberalizantes, devolver a estatal venezuelana do petróleo – PDVSA – às mãos da iniciativa privada.
As divergências que se exasperaram em 2014 redundam de duas visões em conflito: o chavismo, que enxerga no Estado o papel de indutor do crescimento econômico e das políticas de distribuição de renda e, do outro lado, os neoliberais, que apostam suas fichas na velha cantilena do “mercado máximo e Estado mínimo”.
Os processos políticos em jogo na Venezuela, vitoriosos nas urnas nos últimos 15 anos, diferentemente do Brasil, passam pela efetiva participação do Estado na economia, no enfrentamento dos interesses empresariais da elite, na consolidação de uma força política genuinamente transformadora e nos vínculos com os setores mais empobrecidos através da implantação de programas sociais de maior fôlego, além do aprofundamento nas relações exteriores com parceiros equivalentes (sul-sul).
Para a execução deste projeto, o domínio das reservas de petróleo, bem como a definição de políticas para a cadeia produtiva (produção, transporte, refino e distribuição), devem ser tutelados diretamente pelo Estado, que admite o compartilhamento com a iniciativa privada, mas como sócia minoritária. A grande riqueza do subsolo venezuelano é responsável por cerca de 1/3 do PIB e grande parte das exportações.
Eis que, se o petróleo é a menina dos olhos da economia venezuelana, com outra finalidade também o é dos EUA. Neste caso, interessa demasiadamente aos investidores e negociantes globais um governo dócil e amigo, que administre as perfurações e a produção a partir de seus interesses, como o que acontece na Arábia Saudita. Mas não é o caso da Venezuela.
Como o preço do óleo é determinado pelo mercado mundial (commodities), os produtores que extraírem com custos menores amealham maiores ganhos no mercado, ou seja, se o barril está cotado em U$ 110, estabelece-se, desta forma, o teto do preço naquele momento. Assim, quanto menor for o custo de produção, maiores serão os ganhos. E a Venezuela tem estas condições. Suas bacias nas várzeas do Orinoco não são profundas e distantes dos centros consumidores ou exportadores, como ocorre com o Pré-Sal, criando condições favoráveis para o funcionamento da cadeia e da produção em escala, além das facilidades para a exportação.
Além disso, a Venezuela é país-membro da OPEC (no Brasil, OPEP), o que implica em participar de um jogo internacional de cotas de produção, para evitar que um ou outro país membro amplie suas vendas e provoque a queda dos preços, prejudicando os produtores em detrimento dos consumidores. A ocupação do Iraque pelos EUA, dentre outros motivos, passou por esta questão: a quebra dos acordos de produção e busca de redução dos preços. A deposição de Saddam Hussein, como sabemos, foi apenas desculpa esfarrapada.
Da mesma OPEC surgem informações alvissareiras sobre esta questão. Da leitura dos boletins de dados oficiais publicados pela organização, observa-se que, desde o final dos anos 70, as maiores reservas de petróleo do planeta localizavam-se na Arábia Saudita (166 milhões de barris em 1979 – tabela 1). A participação era tão significativa que seus estoques superavam a soma dos três maiores seguintes (Kuwait, Irã e Iraque, pela ordem). No mesmo ano de 1979, a Venezuela, com seus 18,5 milhões de barris, representava apenas 4,2% das reservas entre os membros da OPEC e 2,92% dos estoques mundiais (1).
Mas a OPEC já mostrava a que veio. Seus membros somavam o incrível percentual de 68,6% das reservas mundiais em 1979 (tabela 2), o que lhes garantia uma força notável na determinação dos preços mundiais por força do oligopólio. Com o consumo em alta desde a popularização do automóvel, no pós-guerra, a união dos produtores era uma questão de tempo.
A crise do petróleo nos anos 70, quando o preço do barril explodiu por pressão no mercado dos produtores organizados em torno da OPEP, gerou forte inflação no mundo rico em função da dependência do óleo e, por consequência, desequilíbrio nas contas externas.
Os efeitos da alta dos preços dos combustíveis colaboraram diretamente no aprofundamento de um quadro de estagnação econômica que já se fazia sentir com a crise do modelo fordista e o Estado de bem estar social. É neste cenário que se estruturam as bases da ascensão do neoliberalismo, como o novo modelo de acumulação de capital.
Os países periféricos também sofreram com os ajustes econômicos impostos pelo FMI. A lógica se pautava na compressão do mercado interno (salários e direitos trabalhistas) e a prioridade ao mercado externo para obtenção de saldos comerciais com as exportações. Os dólares obtidos deveriam ser canalizados para o pagamento da dívida externa. Não seria de se estranhar que o aumento da pobreza e da miséria na América Latina empurrasse os movimentos sociais e de trabalhadores para as ruas.
A primeira grande revolta do continente contra o desemprego e a fome, resultantes da implantação de políticas neoliberais, aconteceu exatamente na Venezuela, ao final dos anos 80, episódio que deixou milhares de mortos, conhecido como “Caracazo”. Este cenário político criou as bases do surgimento do chavismo, que chegaria ao poder 10 anos depois.
Num país profundamente dependente das exportações de petróleo, o domínio efetivo do setor é crucial no sucesso das políticas econômicas e sociais. Com o chavismo no poder, os investimentos na estatal e nas pesquisas em prospecção deram resultado: novas bacias foram sendo descobertas e se incorporando às existentes, redefinindo a participação da Venezuela no cenário mundial do petróleo. Mas esta transição às políticas chavistas para o petróleo foi traumática, como veremos adiante.
A Venezuela foi ganhando importância no cenário internacional do petróleo. Observe na tabela 3 que, dos 2,92% das reservas mundiais em 1979, o país alcançou a incrível marca de 20,14% em 2012, com quase 300 bilhões de barris, ultrapassando a Arábia Saudita, que, desde que as sondagens são feitas, nos anos 70, liderava este quesito, mas hoje ocupa a segunda colocação, com reservas de cerca de 265 bilhões de barris, o que equivale a 17,98% do total auferido (2).
Hoje, a maior produção mundial não é da Venezuela, mas ela tem as maiores reservas, ou seja, numa perspectiva futura de esgotamento dos campos de petróleo, o domínio de reservas é de vital importância não apenas para o país, mas para a economia mundial.
O salto é significativo, pois seus estoques se multiplicaram por 16,5 vezes, no mesmo período em que a Arábia Saudita experimentou 62% de acréscimo e o mundo um incremento de apenas 2,3 vezes. Nenhuma outra nação de destaque no cenário mundial alcançou tal feito. Esta evolução coloca o setor petrolífero sob intensos holofotes políticos.
A elite venezuelana, incrustada na estatal petrolífera durante décadas, resistiu duramente ao processo de controle da estatal PDVSA pelo governo a partir da primeira década deste século, o que provocou acirrada disputa interna. O chavismo ganhou as eleições, mas os burocratas não queriam abandonar o controle da empresa.
Porém, na exata medida das sequentes vitórias da Revolução Bolivariana neste enfrentamento, o governo trouxe para si a responsabilidade de ditar as políticas e diretrizes que guiariam os rumos da petroleira, em especial na distribuição social de seus superávits, sustentando programas sociais e políticas de distribuição de renda. Os anos de 2008 a 2010 registram esta nova condição de estabilidade no funcionamento da PDVSA e o sucesso nas pesquisas e descoberta de novas bacias, como evidencia a tabela 3.
A conquista da Venezuela do posto de primeira colocada em reservas mundiais de petróleo (a partir de 2010) é um fato que passou ao largo da grande imprensa no Brasil e de boa parte dos brasileiros, mas não escapou aos olhos da espionagem dos EUA e de sua política externa.
Não se trata de uma informação menor, ao contrário, significa colocar o país no jogo global do petróleo, que envolve grandes corporações, governos dos países centrais (especialmente os EUA e União Européia), o capital financeiro e muitos interesses.
Destaque-se ainda que vários autores e estudiosos do tema admitem que o mundo ultrapassou recentemente o “peak oil”, ou o “pico do petróleo”, que representa aquele ponto no gráfico em que a curva quebra para baixo, ou seja, quando as descobertas de novas jazidas não mais acompanham a demanda internacional impondo, daqui em diante, a condição de eliminação definitiva do petróleo como matriz energética do mundo capitalista em algumas décadas.
É nesta moldura da geografia política mundial que se enquadram os conflitos recentes na Venezuela. Os EUA precisam derrubar o governo e garantir maior proximidade e controle dos estoques de subsolo, ao passo que o chavismo depende diretamente do óleo para a continuidade de suas políticas sociais. Este conflito deve ser seguido de perto por aqueles que acreditam na soberania dos povos sobre seu território e na redução das desigualdades sociais como caminho único para a edificação de um mundo mais justo e igualitário. Os próximos capítulos desta disputa de projetos prometem fortes emoções.
Notas:
1) OPEC Annual Statistical Bulletin 1999, página 21. Link e acesso:http://www.opec.org/opec_web/static_files_project/media/downloads/publications/ASB1999.pdf
2) Fonte: Boletins estatísticos mundiais OPEC vários anos. Tabela elaborada pelo autor.
Ricardo Alvarez é geógrafo, professor e editor do site Controvérsia – www.controversia.com.br
Fonte: Correio da Cidadania.