Por Verbena Córdula.
A Organização das Nações Unidas (ONU) acusa o governo da Venezuela de violar os direitos humanos naquele país, com base em um relatório feito pela Alta Comissária dos Direitos Humanos daquela instituição, a ex-presidenta chilena Michelle Bachelet, que denuncia “ameaças, torturas, detenções arbitrárias e desaparecimentos forçados sofridos por opositores e defensores dos direitos humanos”. Há muitos questionamentos que podem ser feitos a respeito deste fato, mas, aqui, faço apenas dois: a quem interessa esse relatório? A quais direitos humanos esse relatório se refere?
Ao considerarmos o contexto político que vivemos na América Latina nos últimos anos, no qual parte considerável dos países vive uma crise das instituições democráticas – inclusive aqueles que compõem o Grupo de Lima (GL), como são os casos da Colômbia, da Bolívia, do Brasil e do próprio Chile de Michelle Bachelet – a Resolução do Conselho dos Direitos Humanos da ONU que condena a Venezuela demonstra, entre outras questões, que os direitos humanos somente “são monitorados” quando dizem respeito ao governo bolivariano. Vejamos os porquês.
Massacres e golpe de Estado
Na Colômbia, por exemplo, uma onda de assassinatos de líderes sociais e de ex-combatentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) vem ocorrendo há meses, sem que o governo do presidente Ivan Duque adote qualquer providência para cessá-la. Aliás, o Escritório de Direitos Humanos da própria ONU notificou 36 massacres já em 2019, classificados como recordes desde a contagem iniciada no ano de 2014. Mas, mesmo assim, o Alto Comissariado da ONU está apenas, “profundamente preocupado”, conforme uma nota publica em janeiro deste ano.
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No Equador, onde o cenário não é muito diferente, os cadáveres de vítimas da Covid-19 nas ruas de Guayaquil, a segunda maior cidade daquele país, não foram suficientes para motivar uma Resolução da ONU contra o governo de Lenín Moreno. Tampouco, a violência com a qual esse mesmo governo enfrentou os mais de mil protestos em todo o país, em outubro de 2019, que pediam diminuição do preço da gasolina e, sobretudo, o fim da reforma trabalhista que, da mesma maneira como a realizada no Brasil, precarizou o trabalho dos servidores públicos e privados. A insensibilidade demonstrada pelo presidente Lenin Moreno através do pacote econômico neoliberal, que deixou ainda mais vulneráveis o povo equatoriano, não é vista como ataque aos direitos humanos.
Da mesma maneira, não vimos uma condenação ao Golpe de Estado que ocorreu na Bolívia e obrigou o presidente eleito democraticamente Evo Morales a renunciar e se exilar na Argentina. Não bastasse isso, Jeanine Áñez, que assumiu após o golpe, manipulou os números da Covid-19, ao tempo em que o Estado boliviano sob a sua liderança não brindou a assistência adequada e tem deixado milhares de pessoas morrerem vitimizadas pela pandemia. Isso, aliado às reações violentas das forças do Estado contra as manifestações que clamavam pelo retorno à democracia naquele também não foi suficiente para motivar uma Resolução da ONU sobre direitos humanos na Bolívia.
Ainda referindo-me à Bolívia, as tentativas de manipulação do processo eleitoral, pela presidenta Ãnez, que adiou por diversas vezes as eleições presidenciais com medo da vitória dos candidatos e candidatas da oposição que aparecem com vantagem expressiva, tampouco motivam um repúdio por parte das Nações Unidas.
Assassinatos de negros e LGBT+
Quando o assunto é o Brasil, que quebra os próprios recordes no tocante a mortes violentas, como neste ano, que nos primeros seis meses já registrou 22.680, um aumento de 6% considerando o período anterior; e que também registrou, em 2019, uma asassinato de pessoa LGBT+ a cada 26 horas, assim como um incremento na ordem dos 11,5% referente aos assassinatos de pessoa negras nos últimos 10 anos, não vemos Resolução das Nações Unidas contra violação dos direitos humanos.
É que nesse país governado pela extrema direita, onde o presidente deixa a floresta amazônica arder em chamas, vitimizando milhões de espécies, assim como piorando ainda mais a situação de vulnerabilidade dos povos indígenas que ali vivem; ou desdenha da periculosidade da Covid-19, ajudando a expor milhões de pessoas à doença, e ao óbito – o número de mortes no não nos deixa mentir –, não há violações dos direitos humanos. Pelo menos para a ONU, não há.
Para terminar a lista, que é longa – e por isso não cabe neste texto –, vamos ao Chile, país da Comissária autora do relatório que gerou a Resolução contra a Venezuela. Há vários anos, protestos naquela sociedade foram desencadeados – primeiramente, pelos jovens estudantes que tomaram as ruas da capital e de outras partes do país – e se ampliaram devido às medias de ajuste que causaram o empobrecimento da maioria da população, sobretudo a política previdenciária ultraliberal, que deteriorou ainda mais a qualidade de vida dos mais pobres; além do alto custo de vida, assim como os altos preços dos remédios, do transporte e a falta de confiança no governo por parte da população.
O governo de Sebastián Piñera, sucessor de Michelle Bachelet, contudo, ignora o sofrimento do povo chileno, recebe manifestantes com muita violência, a qual gera mortes e mutilações. Em outubro de 2019, por exmeplo, policiais forma acusados de crucificar manifestantes, um deles adolescente, o que motivou a abertura de várias denúncias pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) daquele país.
Entretanto, Michelle Bachelet “fechou os olhos” para o que acontece na região, inclusive em seu próprio país e concentrou-se, apenas, na Venezuela. E nos perguntamos: por que todos esses países latino-americanos afrontam, desrespeitam os direitos humanos e apenas a Venezuela é enxergada como alvo? Os motivos são vários. Mas aqui nos concentraremos em três.
Recursos naturais, China e Rússia
Primeiro, porque as reservas de petróleo venezuelanas são maiores que as sauditas e ainda bem maiores que as estadunidenses. Isso, claro, faz com que os países que dependem desse tipo de energia “fiquem de olho no ouro negro” da Venezuela, país que não se alinha às políticas capitalistas lideradas pelos Estados Unidos e a União Europeia, baseadas, sobretudo, na espoliação das riquezas de terceiros.
Apesar de produtor de petróleo, os EUA sempre dependeram das importações. De acordo com vários estudos, esse combustível é resposável por mais de 80% da demanda de energia do setor de transporte estadunidense. Desta forma, controlar fontes petrolíferas faz parte das grandes priordades daquele país. Esse é um dos motivos, mas não o único.
O segundo motivo que aqui citamos é o fato de a Venezuela ser rica em outros recursos naturais. Conforme a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), a região latino-americana e o Caribe possuem 65% das reservas mundiais de lítio, 38% de cobre, 42% de prata, 21% de ferro, 33% de estanho,18% de bauxita e 14% de níquel. E a Venezuela, além do petróleo, conforme já citamos, também é muito rica em alumínio, cobre, ferro, gás natural, entre outros recursos naturais, os quais também interessam aos Estados Unidos e a outros países desenvolvidos do Ociedente.
O terceiro motivo é que, tanto os Estados Unidos como também a União Europeia defendem seus interesses geoestratégicos em território latino-americano, e, neste sentido, estão buscando minar as influências que a China e a Rússia vêm tendo na região, com a importante e estratégica parceria com a Venezuela.
Por esses e outros motivos os países poderosos, liderados pelos Estados Unidos, se empenham tanto em fragilizar a Venezuela. Infelizmente, com o apoio de “satélites” localizados em outras partes do mundo –, inclusive na própria América Latina e Caribe, como os que compõem o Grupo de Lima, completamente subservientes às vontades e desejos dos “donos do mundo”. Isso significa afirmar que a “preocupação com os direitos humanos” na Venezuela nada mais é do que uma “cortina de fumaça” para esconder as verdadeiras intenções dos grupos poderosos referentes àquele país.
Apesar de tudo isso, a Venezuela resiste. Principalmente porque tem um povo que reconhece o valor da soberania política. Ao contrário de outros governantes ditos de esquerda que a América Latina conheceu, Hugo Chávez trabalhou na alfabetização política de seu povo. Por isso, apesar de todas as pressões e tentativas de golpes, o país continua na resistência, enfrentando tanto a elite interna – ignorante e subserviente –, como também aqueles que, como os sucessivos governos estadunidenses, não cansam de querer a submissão da Venezuela ao capitalismo selvagem que impera no mundo.