Por Dinovaldo Gilioli, para Desacato.info.
Lembra daqueles livros da série Onde está Wally? Havia uma multidão desenhada na mesma página e no meio daquela muvuca o leitor ou curioso tinha que encontrar aquele carinha de blusa listrada, óculos e gorro. O livro fez tanto sucesso que gerou uma série animada e uma tira de jornal. O Wally eu não conheço, e nem sei se existe na vida real ou se é apenas fruto da imaginação de seu criador. A verdade é que o Wally e o Uby (que eu conhecia) tinham algo em comum: gostavam de ser percebidos, notados no meio da multidão. Mas afinal, quem não gosta de ser notado? Desde o mais humilde e acanhado vivente da espécie humana até o mais vaidoso e extravagante ser gosta de ser reconhecido, de ser percebido.
No mundo das modernas e admiradas máquinas, dos apelos visuais e midiáticos constantes o ser humano tem se esforçado sobremaneira para não virar coisa, para não ser apenas mais uma mercadoria disponível nas grandes redes de consumo. Neste sentido, o desejo e a necessidade de ser notado ganha outra dimensão e ultrapassa o campo da vaidade. Se colocar diante do mundo como um ser que sonha, que luta para sobreviver com dignidade, que é reconhecido e respeitado tem sido a grande tarefa dos ditos animais racionais.
O Uby era assim; simplesmente alguém que ousava sobreviver da sua arte, que acreditava utopicamente, mesmo nesta sociedade capitalista e violenta, que a poesia poderia salvar o mundo e ajudar os seres humanos a serem melhores e mais felizes. De bar em bar, de esquina em esquina da capital catarinense ia ofertando e vendendo a sua arte poética. Da poesia não procurava apenas extrair o seu sustento material e o de sua família, mas também a sua razão de viver. Nela depositava a crença e a esperança de um mundo mais humanizado.
Engana-se quem pensa que o Uby era um irresponsável desvairado, ele sabia e vivia a dureza do mundo real. Mas, ao não se conformar com isto e com as injustiças pregava, feito profeta, o mundo poético; onde homens e mulheres pudessem se enxergar verdadeiramente como seres humanos. A última vez que conversei com o Uby foi na feira do livro de Florianópolis, ele estava muito triste, deprimido, visivelmente sem expressão e sem forças para enfrentar a vida como ela é. Numa rápida conversa, tentei animá-lo e motivá-lo a enxergar outras possibilidades – que sabia de antemão que era muito pouco provável que ele (devido ao seu estado emocional) as enxergaria e muito menos as alcançaria.
Foi uma tentativa inócua, reconheço, mas foi o que consegui fazer na ocasião desse que seria inesperadamente o nosso último encontro. O Uby se foi, colocou um fim em sua própria vida. Por mais paradoxal que pareça, a ausência agora do Uby é a constatação do quanto esse poeta era notado nesta cidade cercada por shoppings. O Uby, vaidoso e com baixa autoestima, não conseguiu perceber isto e se ressentia da falta de reconhecimento de seu trabalho. O que, em certa medida, é verdade. Afinal, a capital dos grandes meios de comunicação que só concede espaço para os escritores e poetas oficiais bem-comportados pouco se lixa para os ditos alternativos.
Mas o Uby tinha o carinho e respeito de seus amigos, o reconhecimento de outros escritores pelo seu trabalho e sua ousadia. Quantos de nós escritores, poetas, tiveram e tem a coragem de tentar viver de sua arte; a expressão mais genuína da existência humana. Quanto de nós largaria a zona de conforto de uma sobrevivência material garantida por um emprego fixo. Quanto de nós arriscaria exercitar a liberdade de autodeterminar a sua sobrevivência. Quantos de nós hesitaria em apropriar-se plenamente do tempo, sem nenhum tipo de controle social. Simples assim, claro que não! Viver está muito mais complexo agora do que em outras épocas.
O Uby não conseguiu sobreviver de sua arte, partiu sem ser reconhecido pelo seu trabalho. Se foi, com a impressão de que não era notado no meio da multidão; ao contrário do Wally, aquele personagem do livro. No entanto, pelo grande ser humano que era e por sua profecia poética não partiu sem antes nos advertir: os homens e mulheres só conseguirão realmente ser felizes quando se apropriarem de sua verdadeira condição humana e, sem a genuína arte, a humanidade está destinada a ser um objeto dos que a vem dominando ao longo dos séculos.
Faz cinco anos que ele se foi. Onde está o Uby agora pouco importa, mas onde ele esteve sua passagem não foi em vão!
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Foto: Dinovaldo Gilioli.
Dinovaldo Gilioli, escritor. Autor do livro Cem poemas (editora da UFSC), entre outros.