Ocupe Estelita e as cidades das grandes empreiteiras

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Os portões do Parque Augusta estão trancados desde dezembro de 2013

Por Isadora Otoni, colaborou Anna Beatriz Anjos, da Fórum Semanal

No Brasil, o ciclo da especulação imobiliária está em estado de intensificação. Com áreas verdes em risco e o afastamento da população mais pobre dos centros das grandes cidades, cada vez mais surgem movimentos contrários a essa lógica de mercado. As ocupações já não surgem com a bandeira exclusiva do acesso à moradia, mas clamam também por preservação ambiental e espaços destinados à promoção de lazer e cultura.

Nos últimos dias, um movimento de resistência aos efeitos perversos do mercado imobiliário tem se destacado no cenário nacional. Desde 21 de maio, o Ocupe Estelita atrai olhares para o centro histórico de Recife, onde ativistas tomaram conta do Cais José Estelita. Na última terça-feira (17), entretanto, as atividades culturais, realizadas intensamente no local desde sua ocupação, deram lugar à ação truculenta da Polícia Militar, que cumpriu mandado de reintegração de posse do terreno.

As mais de 50 pessoas que acampavam na área foram acordadas, por volta das 5h da manhã, pela cavalaria e Tropa de Choque. Segundo relatos, os agentes agiram de forma extremamente violenta: utilizaram bombas de efeito moral e balas de borracha para dispersar os ativistas (veja o vídeo abaixo). A estimativa do movimento é que pelo menos 35 deles tenham ficado feridos – este foi o número que compareceu ao IML para realizar exames de corpo de delito. Três manifestantes foram detidos e um deles chegou a ser preso, mas já foi liberado.

Segundo o jornalista Chico Ludermir, integrante do coletivo Ocupe Estelita, houve excessos por parte da PM e não houve nenhum tipo de resistência por parte dos ocupantes, que foram surpreendidos enquanto dormiam. “Não tivemos nenhuma oportunidade de defesa. Estava todo mundo dormindo, e eles começaram a atirar e bombardear as pessoas recém-acordadas. Foi totalmente não violenta a nossa reação, ficamos apenas parados dizendo que queríamos permanecer no lugar e esperar os advogados.”

Em nota, o movimento diz que “o processo de reintegração desobedeceu inclusive os protocolos do próprio governo”, que teria se comprometido a informar, com 48 horas de antecedência, os ocupantes e o Ministério Público sobre a ação. Este último compareceria com a função de mediar uma solução sem violência.

Nada disso aconteceu. A polícia descumpriu o acordo, firmado em reunião no dia 23 de maio, entre participantes do Ocupe Estelita, promotores dos ministérios públicos Federal e de Pernambuco e integrantes da Prefeitura do Recife. Segundo o coletivo, até seus advogados foram impedidos de entrar no acampamento. O episódio da remoção dá a dimensão do quanto o Estado é resistente a movimentos de ocupação.

Novo Recife para quem?

A área do Cais José Estelita tem cerca de 100 mil m² e já pertenceu à Rede Ferroviária Federal (RFFSA). Em 2008, foi vendida pela União ao consórcio Novo Recife, formado por quatro grandes construtoras: Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos. O grupo pretende implementar na região um projeto que inclui a construção de 12 torres residenciais e comerciais, com até 40 andares cada, além de um estacionamento para 5 mil veículos. Em dezembro de 2012, a iniciativa passou pelo crivo do Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU) da Prefeitura de Recife.

Na análise de Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), um dos maiores problemas do processo foi a ausência de consulta popular, fato que favorece, por sua vez, os interesses de grandes empreiteiras. “Ninguém, claro, consultou a população para saber se o melhor destino para aquela área era, em primeiro lugar, vendê-la, e em segundo, ali erigir torres para escritórios e residências de alta renda”, escreveu a urbanistas em seu blogue.

É o que afirma também Chico Ludemir. Para ele, antes ainda de discutir o futuro do José Estelita, a ocupação propõe que o desenvolvimento da cidade seja debatido de forma democrática. “A gente não acredita que uma decisão que saia de um grupo somente representa a cidade inteira. Não queremos fazer um autoritarismo às avessas”, explica. “Portanto, o que estamos colocando em pauta é a abertura de canais de diálogo para serem discutidas as possibilidades do futuro do cais José Estelita.”

Rolnik cita também a especulação imobiliária e a criação de “periferias das periferias”. “Em tempos de crescimento desenfreado do preço dos imóveis, especialmente em nossas metrópoles, e ‘expulsão’ de moradores de menor renda para as periferias, a discussão sobre o destino de terras públicas é fundamental. Essas terras são praticamente a única oportunidade que temos de desenvolver projetos públicos, não lucrativos, em área bem localizada.”

Ludermir conta que apoia a ocupação justamente por acreditar em uma cidade mais democrática e humana. “Vejo nessa discussão o símbolo de uma cidade que se preocupa com o futuro dela mesma”, disse. Para ele, a verticalização da capital pernambucana pode lhe trazer más consequências. “Interfere na ventilação, sobrecarregando o sistema precário de saneamento recifense, transforma qualquer resquício de área verde em espigões de concreto. Além disso, a falta de planejamento urbano está fazendo do Recife um caos. Não é por acaso que, em pesquisa recente, Recife figure como o pior trânsito do Brasil”, lamenta.

A ocupação do cais é emblemática, já que o local, à margem do rio Capibaribe, é um cartão-postal de Recife. Ele fica à beira de uma linha férrea ainda ativa e tem 13 hectares de construções históricas, que incluem galpões e antigos armazéns de açúcar. Foi a partir da derrubada dessas estruturas que o acampamento começou. Na noite do último dia 21, um ativista do grupo Direitos Urbanos – que reúne diversas pessoas na luta por mais participação no desenvolvimento da cidade, e do qual vem a maioria dos integrantes do Ocupe Estelita – flagrou a demolição. De seu celular, conseguiu disparar a foto, que rodou a internet. Em pouco tempo, outros ativistas se encaminharam à propriedade e lá decidiram se instalar.

No dia 22, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) embargou a demolição. Em nota, a construtora Moura Dubeux informou, no mesmo dia, que o processo tem como objetivo “iniciar as ações mitigadoras acordadas com os órgãos públicos” e que “obedece a todos os trâmites legais”.

Tomás Lapa, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), chama a atenção para o significado da área, que “se consolida como cartão-postal a partir de um consenso e sensibilidade da população”. Por conta dessa construção social, não é aceitável que o local seja desestruturado. “Se de repente você chega com uma barreira de 12 torres, você está alterando radicalmente a paisagem. Isso sem levar em conta que, por trás, você tem um bairro histórico do século 19, com características ainda bastante íntegras e que devem ser respeitadas”, diz Lapa.

Um dos problemas do projeto, apontados pelo urbanista, é a construção de várias torres residenciais, muito próximas umas das outras. “Uma torre de apartamentos ao lado de outras torres faz com que você precise comprar o seu pão ou ir à farmácia de carro. Ora, esse modelo que prevê mais de cinco mil vagas de automóveis não leva em conta que esses veículos não são estáticos. É um acréscimo de cinco mil automóveis em circulação.”

“A mensagem dessas ocupações vai um pouco além da especulação imobiliária em si”, analisa Leonardo Rossatto Queiroz, cientista social e especialista na formulação de políticas públicas. “Basicamente, a mensagem dos manifestantes é ‘não podemos permitir que o planejamento urbano fique a cargo das incorporadoras imobiliárias’. Essa luta tem a ver com a luta pelo direito à cidade não apenas como um lugar de residência e trabalho, mas também de lazer.” Para ele, esses movimentos possuem uma relação com os Occupies e a lógica dos “rolezinhos” de jovens da periferia.

São Paulo: por um parque público e com gestão popular

Outro movimento de resistência às grandes construtoras e sua lógica de mercado tem como cenário o centro de mais uma metrópole brasileira: o terreno entre as ruas Caio Prado, Augusta e Marquês de Paranaguá, em São Paulo.

Há 40 anos, a área de 24 mil m² é espaço de embate entre grandes construtoras, que já desejaram levantar ali supermercados, hotéis e edifícios comerciais, e a sociedade civil, que luta contra esses empreendimentos na tentativa de preservar o último bosque do centro paulistano, formado por mais de 800 árvores de Mata Atlântica – a maioria nativa.

O local é, inclusive, tombado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Congresp). Isso significa que nenhuma obra pode ser realizada por lá sem a autorização do próprio Congresp e da Prefeitura Municipal.

O impasse mais recente envolvendo o terreno tem como atores principais as construtoras Cyrela e Setin, que planejam utilizá-lo para a construção de duas torres comerciais de 30 andares cada. O bosque ficaria dentro das dependências do condomínio, e seria aberto ao público apenas em horários específicos.

As corporações adquiriram oficialmente o espaço em novembro de 2013, dois meses depois que caducou o Decreto de Utilidade Pública (DUP) emitido em 2008 pelo então prefeito Gilberto Kassab (PSD). O DUP, cuja validade se estendeu por 5 anos, determinava, entre outras coisas, a proibição do corte das árvores, da obstrução da passagem de pedestres e da construção de estruturas a menos de sete metros da vegetação.

Para organizar e articular a resistência ao projeto do setor imobiliário, foi criado, em novembro de 2013, o Organismo Parque Augusta (OPA). O movimento reivindica a criação de um parque 100% público e com gestão popular na propriedade. Como consta em seu site, as ações imediatas do OPA têm ocorrido “no intuito de pressionar o poder público a não ceder ao interesse do capital privado em detrimento do bem comum, da natureza”.

Apesar da insistência, o OPA encontra dificuldades. Desde dezembro do ano passado, o espaço é guardado por portões trancados. O atual prefeito Fernando Haddad (PT) sancionou, no mesmo mês, uma lei que prevê a criação do Parque Augusta, mas falta dinheiro para desapropriar o terreno. Por isso, o grupo se reúne semanalmente para discutir formas de retomar o acesso ao espaço público e não deixar que a área seja esquecida ou destruída.

Carol Borghetti, integrante do movimento, explica que a especulação é a grande vilã da situação, mas o governo também tem sua responsabilidade. “O poder público tem forte participação, uma vez que não faz cumprir uma série de leis que garantem a manutenção total da área do parque, sem a construção de torres”, queixa-se.

Enquanto não houver diálogo com as empreiteiras e a Prefeitura se recusar a desapropriar o terreno por algum dos meios válidos, os paulistanos correm o risco de perder em qualidade de vida. “Não só porque precisamos de áreas verdes na cidade e elas estão sendo destruídas, mas também porque morar em São Paulo está cada vez mais caro”, justificam os integrantes do Organismo. De fato, índices da Fundação Instituto de Pesquisa Econômicas e Empresa ZAP (FIPEZAP) registram um aumento de 205,7% nos valores dos imóveis de janeiro de 2008 até maio de 2014.

Já João Whitaker, também professor da FAU-USP, compreende a posição da Prefeitura. “Esses terrenos são particulares e muito valorizados. O poder público não tem cacife para desapropriar de uma forma tradicional”, expõe. “É necessário criar uma situação de incômodo, que obrigue o proprietário a aceitar fazer uma negociação”. E quem pode tomar a frente dessa pressão são as mobilizações populares.

Ele aponta diversos meios para a conquista do terreno. A manutenção de um parque particular seria o pior deles, em seu ponto de vista, e a desapropriação seria o ideal. Todavia, o caminho mais plausível é outro. “O razoável é pegar uma pequena parte daquela área que esteja menos coberta de vegetação e seja mais próxima da rua e permitir que façam o empreendimento de umas duas torres com o adendo de construção muito acima do coeficiente permitido por lei. Em troca, os empreendedores fazem a doação do terreno coberto com a vegetação original da Mata Atlântica para uso público”, sugere Whitaker.

O urbanista deixa claro que “especulação imobiliária não é bandidagem”. Em São Paulo, o que se tem é uma bolha, na qual o preço de todos os imóveis está acima do aceitável. Todavia, essa situação não se aplica somente à região do Parque Augusta. “Na verdade, aquela é uma área extremamente bem servida, com infraestrutura e valorização. É claro que aquele terreno se torna muito caro.”

Para Whitaker, é legítimo o movimento pelo Parque Augusta em São Paulo com a justificativa de que a cidade precisa de espaços de lazer e de preservação ambiental. Apesar das áreas mais afastadas do centro, como a zona leste, terem uma carência maior de natureza, é importante preservar a mata nativa e conquistar um lugar de usufruto público. “Não é que se não tiver estamos fritos, mas em geral faz parte de um movimento muito rico de recuperação de áreas públicas em geral na cidade”, opina.

Gentrificação e outras consequências

A população mais desfavorecida é a que está mais sujeita aos danos do mercado imobiliário. Com a especulação, ocorre, nas áreas de planejamento urbano, um processo conhecido como gentrificação. “Basicamente é uma exclusão social de caráter geográfico: o valor dos imóveis em uma determinada cidade ou região, para compra ou aluguel, exclui a parte de baixa renda da população desses locais”, explica Leonardo Rossatto.

“Em regiões metropolitanas de médio e grande porte, isso cria áreas segregadas, longe do centro das cidades e sem o suporte governamental adequado”. Ou seja, cria-se uma divisão entre ‘cidade oficial’ e ‘cidade segregada’”, avalia Rossatto.

Há também o dano econômico, já que a especulação não provoca apenas o aumento no preço final dos imóveis, e sim em toda a carreira de produção. “A mão de obra fica mais cara, o custo dos materiais, medido pelo INCC [Índice Nacional de Custo da Construção], fica acima da inflação, e isso faz com que os preços finais subam muito rápido e fiquem acima de um patamar compatível com a renda da população”, esclarece Rossato.

Já as consequências políticas se referem aos meios lícitos e ilícitos com os quais o setor imobiliário influencia as políticas públicas. Em São Paulo, por exemplo, construtoras admitiram pagar propina para a liberação de obras, episódio conhecido como Máfia do ISS, instalada na Prefeitura de São Paulo, durante a gestão de Gilberto Kassab. Porém, Rossatto destaca que isso também acontece de forma legal, com o financiamento de campanhas políticas.

Histórico

A atribuição de valor comercial aos imóveis pode balançar toda a economia quando o mercado imobiliário é intensificado. No Brasil, existem fatores específicos para esse ciclo. Um deles é a abertura de capital na bolsa de valores de várias construtoras, a partir de 2005. “Com dinheiro disponível, as construtoras passaram a comprar muitos terrenos nas grandes cidades, contribuindo para o aumento rápido dos preços dos imóveis”, diz o especialista em políticas públicas Leonardo Rossatto.

Outra causa é a reformulação da política de crédito imobiliário. “Os procedimentos foram melhorados, facilitando, por exemplo, a utilização dos fundos de poupança para essa finalidade, por parte dos bancos comerciais. Isso fez com que o crédito, que antes era restrito, se tornasse farto, preenchendo, em um primeiro momento, uma demanda reprimida de consumidores que queriam comprar um imóvel, e contribuindo, a seguir, para o aumento da especulação imobiliária”, afirma Rossatto.

Os programas de “habitação social de mercado”, termo criado pela professora da Universidade de São Paulo Lúcia Zanin Shimbo, também tiveram um desenrolar insatisfatório. Com mais dinheiro direcionado aos mais pobres para uma finalidade que já era farta de crédito, os preços dos imóveis para cidadãos de baixa renda subiram.

Leonardo Rossatto não defende o fim desse tipo de programa, já que é importante que mais pessoas tenham acesso ao mercado imobiliário. No entanto, ele acredita que fazer isso artificialmente e através de parcerias não teve um bom efeito colateral. “Esses programas precisam ser aperfeiçoados e não eliminados, porque a questão habitacional no Brasil é muito complexa e a população mais pobre realmente precisa de ajuda para ter acesso a imóveis formais.”

Fonte: Revista Fórum

Foto: Reprodução/Facebook

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