Por Mouzar Benedito.
Quase um século se passou sem nenhum presidente dos EUA pisar em território cubano, nem mesmo em Guantánamo, base naval dos Estados Unidos na ilha. Daí tanta badalação em torno da visita de Barack Obama à terra dos desafetos dos gringos desde 1960. E ida de um líder cubano aos EUA, quando foi a última vez? Bom… Há uns preâmbulos aí.
Em alguns países europeus, costuma-se praticamente cultuar certos endereços, porque um escritor, pintor, político ou qualquer outro “famoso” morou nele ou simplesmente fez algo ali. Algumas casas têm pequenas placas informando que ali aconteceu algo importante: pode ser onde o escritor fulano deu uma surra na namorada, onde a artista beltrana se escondeu da polícia… São endereços curiosos, e acho que isso deveria acontecer em todos os lugares.
Em São Paulo, isso não é comum, mas existe uma exceção, pelo menos. A Livraria da Vila, na Vila Madalena, tem uma casa ao lado em que funciona seu escritório, e ali existe uma plaqueta informando que foi a última casa que Gino Meneghetti, o ladrão mais famoso da história de São Paulo, tentou assaltar, quando já tinha 92 anos de idade. Independente das pessoas terem ou não simpatia por Meneghetti – ladrão mas militante da não violência (só furtava) –, é legal saber dessas coisas.
Gostaria de ver por aí placas dizendo que “aqui Adoniran Barbosa compôs a música X”, “aqui morou o escritor fulano”, “neste prédio, o apartamento Y era ponto de encontros amorosos de Oswald de Andrade”…
Agora chego ao assunto que queria. Nunca fui a Nova York mas por causa de um livro que comprei num sebo tive a curiosidade despertada pelas referências a um prédio considerado histórico, localizado no bairro do Harlem.
O Hotel Theresa, situado num prédio de 13 andares, com arquitetura art-nouveau, teve um início pomposo. Inaugurado em 1913, quando a região não tinha sido ainda estigmatizada, era chamado de “o Waldorf do Harlem”. Negros eram proibidos de se hospedarem nele, e até mesmo de entrarem em seu restaurante.
Muitos artistas negros se apresentavam nele, mas terminado o show tinham que cair fora. Isso até que um afroamericano o comprou, em 1937. Mas ele mesmo só acabou com a discriminação em 1940. De 1950 a 1960, o Harlem entrou em plena decadência, e o hotel virou lugar discriminado também. Em 1966, virou edifício de escritórios e em 1967 o prédio foi fechado para reforma. Restaurado, foi reinaugurado em 1970, mas com o nome Theresa Towers. Pelo que li, virou também campus avançado da Universidade de Columbia e de outras instituições.
Entre as pessoas que passaram por ele há muita gente famosa, como Jimi Hendrix, Muhammad Ali, Louis Armstrong, Josephine Baker, Ray Charles, Duke Elington, Sugar Ray Robinson e muitos outros famosos. E em frente a ele, foram filmadas algumas cenas do filme Topázio de Alfred Hitchock, sobre a Crise dos Mísseis de 1962.
Três livros por R$ 5,00
Num sebo do bairro de Pinheiros, vi livros sendo vendidos a R$ 2,00, três por R$ 5,00. Comprei alguns. Um deles é grosso, impresso em papel jornal, em espanhol, intitulado En Marcha con Fidel – 1960, de autoria de Antonio Núnez Jiménez, que foi presidente do Instituto Nacional da Reforma Agrária de Cuba quando Fidel chegou ao poder.
Há algumas narrativas de ações dos guerrilheiros cubanos de que o autor participou e muita coisa dos longos discursos de Fidel Castro. Claro que o tom é de propaganda, mas isso não invalida as curiosidades que há nele.
Um capítulo me chamou a atenção. Trata-se da primeira participação da delegação cubana chefiada por Fidel Castro na Assembléia Geral da ONU, em Nova York. Aconteceu em setembro de 1960. Jiménez fazia parte dessa delegação. Não consta no livro, mas li em algum lugar que eram uns oitenta cubanos.
Essa participação dos cubanos na ONU teve muita repercussão na época (eu era criança, fiquei sabendo depois). Na sua vez de falar, Fidel Castro fez um discurso de mais de quatro horas, começando por criticar Nova York como sede da ONU, pois o governo dos Estados Unidos criava muitas restrições a sua ida ali e tentou atrapalhar ao máximo a estada dos cubanos na cidade.
E o resto do discurso foi de críticas ao imperialismo norte-americano e à atuação da própria ONU.
Rusgas já antes do embarque
Dias antes de embarcarem para Nova York, chegou a notícia de que, orientado pelo governo dos Estados Unidos, o sindicato dos carregadores de mala do aeroporto de Idewild determinou que ninguém carregasse as bagagens dos cubanos, “em protesto contra a presença do comunista Fidel Castro”.
Jiménez foi falar com Fidel e recebeu esta resposta: “Isso não é problema. Não lhes daremos esse gosto, iremos com nossas mochilas”. Quando se preparava para o embarque no avião, perguntado por um repórter sobre o mesmo assunto, Fidel disse: “Eles pensam que com esse anúncio vão nos assustar. Com esta mochila e esta rede passei dois anos na Sierra Maestra e estou disposto a voltar a usá-las. E que conste que são as mesmas”, provocou.
Fidel Castro teria limitações também de circulação em Nova York. Seus movimentos na cidade, por determinação do governo dos Estados Unidos, deveria ser restrito ao trajeto entre o hotel em que se hospedaria e a sede da ONU, assim como Nikita Kruschev (premiê da URSS) e mais alguns líderes comunistas.
Aí o cubano perguntou ao secretário de Estado dos Estados Unidos: “Essas mesmas medidas serão aplicadas a Rafael Trujillo?” (ditador da República Dominicana). E revidou, determinando que o enquanto a delegação cubana estivesse em Nova York o embaixador dos EUA em Cuba também teria restrições de movimento em Havana: só poderia ir de sua casa à embaixada e vice-versa. Nada mais.
Barracas de camping no Jardim da ONU?!
Na chegada ao aeroporto de Idelwild, houve muita festa, com milhares de latino-americanos festejando os cubanos, apesar da polícia tentar evitar isso.
E a delegação seguiu para o Hotel Shelbourne, que estava cercado por policiais tentando conter a multidão que saudava os cubanos cantando hinos revolucionários.
O dono do hotel, chamado Edward Spatz, capitalizou tudo isso, e quis se aproveitar mais ainda. Dizendo que haveria uma repercussão negativa pela hospedagem dos cubanos ali, e que a presença dessa delegação fez encher o local de jornalistas e prejudicava o sossego dos demais hóspedes, quis cobrar muito mais do que o combinado. E a hospedagem devia ser paga antecipadamente. Os cubanos se negaram a aceitar isso, foram ameaçados de expulsão do hotel… Segundo algumas fontes (não está no livro), ele dizia também que os cubanos levaram um monte de galinhas vivas para os apartamentos, pois temendo ser envenenado Fidel queria a comida feita pelos cubanos. Não se sabe se isso é verdade.
O certo é que Fidel Castro soube se aproveitar do embaraço criado: protestou contra a chantagem do hoteleiro e avisou ao secretário-geral da ONU, o sueco Hjamar Hammarskjold, que mandaria comprar barracas para toda a delegação e ela acamparia nos jardins do edifício da ONU. O sueco ficou extremamente tenso e nervoso, e tentou convencer Castro a “evitar o espetáculo”. Logo um dos seus auxiliares começou a ligar para hotéis de Nova York, para garantir a hospedagem dos cubanos. Mas Fidel bateu o pé, disse que acamparia nos jardins da ONU ou no Central Park. A decisão estava tomada!
Jornalistas, curiosos, procuraram Fidel e a primeira pergunta, depois de saberem da decisão dele, de acampar, foi se ele não temia ser molestado por ladrões de madrugada, no Central Park. A resposta foi uma provocação: “Como pode haver ladrões neste país? Por acaso os trabalhadores não ganham bons salários em Nova York? Não há aqui bons salários para todos? Em Cuba, qualquer um pode dormir no Parque Central de La Habana sem ser incomodado para nada. Eu mesmo passei vinte meses dormindo nos mais diferentes lugares de Cuba e jamais me faltou dinheiro nos bolsos nem nenhum de meus pertences pessoais”.
Hotel Theresa, a solução
No meio dessa conversa, chegou a notícia de que o dono do Hotel Santa Theresa, localizado na rua 125, esquina com a Sétima Avenida, oferecia hospedagem de graça a toda a delegação cubana. Foi obra de Raul Roa, ministro das Relações Exteriores de Cuba. Ele havia falado com o proprietário. Fidel se interessou pelo assunto, e mais uma vez Hammarskjold se opôs, pois era um hotel decadente do Harlem, bairro também decadente, de população predominantemente negra. O secretário-geral da ONU se propôs a arrumar para a delegação um hotel de melhor categoria.
Mas novamente Fidel fez sua cena: disse que se não podia acampar ali, se hospedaria no bairro dos norte-americanos mais humildes e discriminados. No livro não consta, mas segundo reportagem do New York Times, os cubanos pagaram pela hospedagem oferecida de graça.
Quando Fidel chegou ao hotel, tarde da noite, chovia forte, uma multidão calculada em duas mil pessoas pelo New York Times o esperava debaixo do aguaceiro, em frente ao prédio. Todo mundo molhado, mas gritando “We want Castro! [Queremos Castro!]”.
Foi recebido pelo dono do hotel, um negro chamado Larry B. Woods, que ganhou do cubano um busto de José Martí com a inscrição: “Peca contra a humanidade o que fomente e propague a oposição e o ódio entre as raças”. Ganhou também alguns charutos.
Woods virou notícia nos jornais. Ele disse: “Não creio nem me importa que possam produzir represálias contra mim ou os vizinhos do Harlem porque recebemos Fidel Castro em nossa casa, como ele merece. De qualquer forma, com Castro ou sem Castro, nós temos sofrido repressão desde que nascemos. Eu abri o Theresa para todos, e estou contente porque tenho um cavalheiro em minha casa”.
Virou festa!
Outros que compareceram, sempre num clima festivo, foram Gamal Abdel Nasser, presidente da República Árabe Unida (formada pelo Egito e pela Síria), Jawaharlal Nehru, primeiro-ministro da Índia, os poetas Langston Hughes e Allen Ginsberg e o primeiro-ministro de Ghana, Kwame Mkrumah, que contou: “Quando jovem, vivi aqui. Um dia perambulava pelas ruas, entrei num café e pedi água. Jamais poderei esquecer a resposta do garçom branco: ‘Se você quer que lhe dê água, tem que tomá-la na escarradeira que está no chão’”.
Woods contou que não tinha escolaridade, apenas aprendeu a ler e escrever na casa dos seus pais, e que nasceu na Carolina do Sul, onde o ódio contra os negros era tão grande que se viu obrigado a emigrar para o norte, “onde, se há discriminação, não chega ao limite infra-humano” do seu local de origem. “Tive que trabalhar muito para arrendar este hotel, que adquiri há apenas quatro meses”.
Provavelmente, ele nem tinha ideia do impacto que teria a hospedagem de Fidel Castro ali. Já em outubro, John Kennedy o teve como base para campanha às eleições presidenciais. E o hotel passou a receber muitos hóspedes renomados, como Patrice Lumumba, do Congo Belga.
Será que algum brasileiro se hospedou lá? Gostaria de saber.
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Fonte: Blog da Boitempo.