Obama é mais perigoso que Bush, diz “mulher mais corajosa do Afeganistão”

Com uma aparência triste nos olhos e muita história para contar em apenas 35 anos de vida, a voz suave e calma da ativista afegã Malalai Joya não aparenta o poder e a responsabilidade que a chamada “mulher mais corajosa do Afeganistão” leva nas costas. Ao verbalizar críticas às injustiças de seu país, ela se transforma em outra pessoa, uma verdadeira porta-voz de seu povo com palavras fortes e frases que chegam a impressionar. “A árvore da liberdade do Afeganistão está sendo regada com sangue”, disse a ativista, em entrevista ao Terra, a respeito da ocupação americana no país desde 2001, desde o atentado terrorista à torres gêmeas de Nova York.

Malalai fez duras críticas à presença estadunidense em território afegão, entre elas a acusação de que o Talibã foi criado e é financiado pelos Estados Unidos. “Quem tem que ser criminalizada é a Casa Branca, que está lá há 11 anos praticando crimes de guerra. O Barack Obama é o segundo Bush e ainda mais perigoso que o próprio Bush. Por isso (a ocupação) é tudo fachada. Lá no Afeganistão urinam nos corpos dos civis, por exemplo. A democracia não vem pela invasão militar, invadindo casamentos e festas, não vem pela ocupação, vem justamente com hospitais e educação”, disse.

Como membro eleito da Wolesi Jirga da Província Farah, do Afeganistão, Malalai denunciou publicamente a presença de crimes de guerra por comandantes militares. Por fazer críticas explícitas ao Talibã e ao atual governo afegão de Karzai, em maio de 2007 foi suspensa do parlamento por ter “insultado” representantes do governo em uma entrevista para televisão.

Após o feito dentro do parlamento afegão, a revista americana Time colocou Malalai Joya como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo, e a revista Foreign Policy elegeu a afegã entre os 100 maiores pensadores do planeta. Além disso, Joya também escreveu uma biografia com o escritor canadense Derrick O’Keefe, com o título de “Raising My Voice” (Levantando minha voz, em inglês).

Malalai confessou que já sofreu sete tentativas de assassinato e nem por isso parou de denunciar e criticar o Talibã e os Estados Unidos. “Todos os dias olho a morte nos olhos, e quando saio de casa não espero voltar viva. Isso não é uma particularidade minha, mas sim de todo meu povo, mas eu denuncio esses crimes. Meu poder é o poder dos ‘desimpoderados’. Espero que essa fama que ganhei ajude no futuro do meu país, pois acredito na causa”, disse.

Durante a entrevista, esboçando poucos sorrisos e uma única gargalhada, exatamente quando falou sobre seu medo de morrer, Malalai contou sua história e falou do trabalho diário contra as injustiças de seu país e alertou o Brasil para “virar as costas” para o imperialismo americano.

Confira a entrevista com a ativista afegã na íntegra:

Terra: Imaginou que sua atitude no Parlamento ocasionaria em sua demissão?
Malalai: Você sabe que nosso parlamento não é bem um parlamento, pois não é democraticamente eleito, é uma seleção e não tem significado nenhum. Não é um parlamento democrático, é totalmente governado por traficantes de drogas e pessoas selecionadas. Existe um ditado lá que diz “não é importante quem está votando, mas sim quem conta os votos”. Existe um pequeno número de pessoas selecionadas democraticamente porque, caso contrário, ficaria muito óbvio que tudo é uma fachada e eu fui um desses casos. Consegui entrar democraticamente pela porta dos fundos. Mesmo antes de eu ser expulsa, recebia ameaças de morte, ameaças de estupro, com conteúdo muito misógino. Fui ameaçada com facas e palavrões antes e depois de eleita. Fui eleita duas vezes (2003 e 2005) e eu denuncio esses traficantes. Acabei dividindo o parlamento, que é como um zoológico. Quando entrei, fizeram uma lei que se você insultasse outro membro do parlamento você seria expulso e disseram que essa lei foi feita pra mim. Foi justamente essa lei que usaram para me expulsar, o que é absolutamente ilegal porque fui eleita.

Terra: Não foram poucas as tentativas de desarmar o talibã e levá-los à política do Afeganistão. O que você acha disso?
Malalai: Nestes 11 anos de ocupação o talibã tem tido uma vida muito boa no meu país. Eles são chamados para conversas de paz e negociações e tudo isso fomenta esse regime de fantoches e de fachada. Existem estupradores, investidores da máfia e todos tiveram uma vida muito boa nesses 11 anos. Todos eles estão no poder. Foram liberados de Guantánamo e voltara, para o Afeganistão para ter uma vida boa e ficar no poder. Muitas vezes, com a pressão do Ocidente, as tropas recuam justamente para manter esse regime de fachada, mas esse tipo de paz é muito mais perigosa do que a guerra de fato porque as coisas acontecem debaixo do pano. No Afeganistão queremos mais do que essa paz de fachada, queremos justiça, que respondam pelos crimes que cometeram porque nem desculpas públicas eles pedem. Na guerra civil de 92 a 96 foram 65 mil mortos só em Kabul, quando cometeram atrocidades desde estupros a bebês de 4 anos até senhoras idosas e, desde 11 de setembro essas mesmas pessoas que fizeram isso subiram ao poder. Ou seja, são terroristas negociando com terroristas. São piores que animais. Eles andam em duas patas, mas agem pior que animais de quatro patas. É como se fosse uma guerra em família. O presidente do Afeganistão não vai nem ao banheiro sem consultar a Casa Branca. Os Estados Unidos que criaram o talibã e esses traficantes, são o padrinho desses movimentos. Falo explicitamente que os Estados Unidos criaram isso e até hoje eles investem dinheiro lá e mandam recursos para manter esses interesses sujos no Afeganistão.

Terra – Qual sua expectativa para as próximas eleições no Afeganistão?
Malalai – Baseado em minha experiência, será a mesma coisa que aconteceu nas últimas eleições. Nesses 11 anos eles ficaram ainda mais poderosos. Se as últimas eleições foram fraudulentas essa com certeza também será, ainda mais porque existe mais dinheiro por trás. Além disso, as pessoas recebem ameaças de morte para não participarem das eleições, ou seja, as eleições não têm significado nenhum. São apenas uma ferramenta para legitimar um poder totalmente de fachada. O burro muda, mas a cela continua a mesma, e essa cela é a Casa Branca manipulando esses fantoches e colocando quem quiser no poder.

“Todos os dias olho a morte nos olhos e quando saio de casa não espero voltar viva e isso não é uma particularidade minha, mas sim de todo meu povo”

Malalai Joya

Esse período todo de ocupação deixou uma crise enorme no país, além de ser uma atividade totalmente criminosa o que os EUA fazem por lá. Então uma pessoa como Edward Snowden vem a público para expor a natureza criminosa desses atos e eles trazem de volta alguns milhares de soldados, mas nove bases militares foram legalizadas para continuar lá, ou seja, essa influência continua no Afeganistão. É um discurso totalmente contraditório. Ao mesmo tempo que falam que vão tirar as tropas, falam em colocar 9 bases permanentes. Além desse discurso, tem um discurso de propaganda junto com as pessoas. Se os EUA saírem acontecerá uma guerra civil, pois as pessoas têm medo da época em que os traficantes comandavam. Ninguém fala sobre essa guerra civil, pois as pessoas têm medo dessa guerra civil no futuro, mas isso já está acontecendo.

A chamada comunidade internacional deu mais de US$ 65 bilhões e tudo isso foi para o bolso dos traficantes. Mais de 90% do ópio do mundo é produzido no Afeganistão e quem acaba consumindo localmente são mulheres e crianças. Mais de 80% da população vive abaixo da linha da pobreza, pessoas vendem bebês por US$ 10. O Afeganistão é o segundo país mais corrupto do mundo e o pior país para se tornar mãe, além de uma série de fatos que mostram a violência contra as mulheres. Quem tem que ser criminalizada é a Casa Branca que está lá há 11 anos praticando crimes de guerra. O Barack Obama é o segundo Bush e ainda mais perigoso que o próprio Bush. Por isso (a ocupação) é tudo fachada. Lá no Afeganistão urinam nos corpos dos civis, por exemplo. A democracia não vem pela invasão militar, invadindo casamentos e festas, não vem pela ocupação, vem justamente com hospitais e educação”, disse.

Terra – Você disse que já sofreu sete tentativas de assassinato. Como é seu dia a dia, sua rotina?
Malalai – Minha vida é totalmente diferente porque digo a verdade desde 2003. Não posso viver no silêncio. Minha vida fica mais difícil a cada dia porque continuo fazendo as denúncias. Mostro os atos desses traficantes, como uma menina de 16 anos que foi estuprada há poucos dias. Não vou ficar calada. Um dia vão conseguir me matar, mas não vão conseguir matar minhas palavras. Dois guarda-costas e eu fomos parar no hospital e quanto mais ameaças de morte eu tenho, mais determinação e coragem eu tenho. Tem um ditado afegão que diz: “a morte pode vir agora, mas não serei eu a procurá-la”. Se é que ela é inevitável, o que importa é o meu impacto na vida dos outros. Eu mudo de casa a todo momento, mas tenho muito apoio de pessoas, principalmente financeiramente, principalmente de pessoas que sofreram com a guerra. Tenho meus guarda-costas, que são muito caros, pois pago hospital e tratamento médico a eles. Não posso trabalhar por questões de segurança. É um projeto muito grande, mas consigo me virar.

Terra – Você tem medo de morrer?
Malalai – É claro que quero viver. Sou uma jovem, tenho apenas 35 anos e como jovem também tenho meus desejos pessoais. Sou muito tímida para falar sobre isso, mas tenho meus desejos. Tenho muito esperança, mas entendo que faço parte de uma geração que vive na guerra. Todos os dias olho a morte nos olhos, e quando saio de casa não espero voltar viva. Isso não é uma particularidade minha, mas sim de todo meu povo. Mas eu denuncio esses crimes. Meu poder é o poder dos “desimpoderados”. Espero que essa fama que ganhei ajude no futuro do meu país, pois acredito na causa. Um dia todos nós vamos embora desse mundo, mas aceito esse fato porque a causa pela qual eu luto é boa. Quando eles me eliminarem, que não matem meus apoiadores e guarda-costas. Algumas pessoas dizem que não têm medo, mas eu não acredito. Todos querem viver e têm medo de alguma coisa. O importante para mim é lutar. Aqueles que tentam podem falhar, mas os que não tentam já falharam.

Após expulsão, revista americana Time colocou Malalai Joya como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo  Foto: Ricardo Matsukawa / Terra
Após expulsão, revista americana Time colocou Malalai Joya como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo 
Foto: Ricardo Matsukawa / Terra

Terra – E quais são esses seus desejos pessoais?
Malalai – Como uma jovem, faço parte dessa geração de guerra. Com quatro dias de vida, a Rússia ocupou meu país. Depois outras ocupações vieram. Sou de uma geração que não conhece a paz. Minha vida, perto das dificuldades do meu povo, não é nada. Por isso digo que sou tímida para falar disso. Poderia falar que gosto de música, tenho um filho, tenho sonhos para minha própria educação, ficar mais com minha família, gostaria de ter um emprego, porque hoje não posso ter. Todos os desejos que uma jovem tem, mas quando penso em mim e no meu filho, penso que ele não é melhor que outros bebês afegãos. Aceito essas dificuldades justamente por ser porta-voz do povo. É como fazer um poema de amor, mas não é o momento. Temos que dar a vida pelo país e podemos fazer um poema de amor ao nosso país. Eu não quero falar sobre o que eu amo, porque o que eu amo é meu país e meu povo.

Terra – O que acha de ser conhecida como a “mulher mais corajosa” do Afeganistão? Concorda com isso?
Malalai – Isso me torna mais humilde. Eu não sou apenas uma lutando pelo meu país, como diz a música do John Lennon (Imagine). E esse mal-estar é totalmente generalizado e principalmente entre as mulheres. Vejo isso como sinônimo de apoio e solidariedade. Sinto como se estivesse seguindo o caminho de heróis do meu país e isso traz mais responsabilidade em meus ombros.

Terra – Você tem noção da importância de seu trabalho para o seu país e para o mundo?
Malalai – É importante não só para mim, mas para todo Afeganistão. No mundo, a coisa mais importante é que viemos no mesmo formato, o formato de seres humanos e por isso temos que ser unidos. Quanto mais conquistas de todos, menos desafios teremos. Outro ponto importante é a conscientização. Todos temos que saber o que aconteceu na Síria, no Egito, em que um ditador entra e um povo resiste. O mundo está indo na direção certa. Essa resistência popular é um indício disso, como no Brasil. Essa vitória aqui no Brasil também é minha vitória. O que os Estados Unidos fizeram no Iraque é inesquecível e imperdoável. No mundo de hoje não há mais fronteiras, sobretudo com mídias sociais. Existe a união, a conscientização e o terceiro pé do tripé é a luta, para concretizar tudo isso. O feminismo fala sobre igualdade e não soberania. É como se a sociedade fosse um pássaro com duas asas, uma delas é o homem e a outra é mulher, voando juntas.

Joya também escreveu uma biografia com o escritor canadense Derrick O'Keefe, com o título de Raising My Voice" (Levantando minha voz, em inglês) Foto: Ricardo Matsukawa / Terra
Joya também escreveu uma biografia com o escritor canadense Derrick O’Keefe, com o título de Raising My Voice” (Levantando minha voz, em inglês)
Foto: Ricardo Matsukawa / Terra

Terra – Com a gradual retirada das tropas americanas do Afeganistão, o país terá condições e maturidade para se reerguer?
Malalai – Nessas quatro décadas de guerra, precisamos de ajuda, de uma mão, mas de uma mão honesta, e não dos Estados Unidos, que têm muitos interesses por trás. Não esperamos que façam nada de bom, só que parem de fazer as coisas ruins. Acredito no poder do Estado, mas é preciso que nos deixem respirar para tomar esse poder. Houve um encontro dos traficantes recentemente na Alemanha para discutir a situação do Afeganistão, e discutiram transformar o sistema em parlamentarismo, o que significaria o feudalismo novamente. Os Estados Unidos propuseram dividir o Afeganistão em oito partes, e isso é só uma proposta. A árvore da liberdade no Afeganistão está sendo regada com sangue, infelizmente. Eu sou contra armas, mas preciso de armas para sobreviver e mandar as mensagens. Talvez se estivessem sozinhos conseguiriam se reerguer, mas não atualmente, com todos esses interesses econômicos por trás. Temos três inimigos: o Talibã, os traficantes e a ocupação. Se a ocupação sair, será um grande esforço que vai desaparecer porque é a espinha dorsal, o que sustenta tudo. É o que dá dinheiro para as outras duas. Não é que não queremos estrangeiros no nosso país, mas quem queremos são os amantes da paz, os que acreditam na democracia.

Terra – Acha viável diplomaticamente para o Brasil virar as costas para os Estados Unidos?
Malalai – Acredito que deveria acontecer. É possível como países como Cuba e outros países latino-americanos, como já disse. O Brasil deveria fazer isso e levantar a voz contra os Estados Unidos, se tornar independente dessa influência, como fizeram Líbia e Egito. Isso teria um grande impacto em países que vivem em guerra, como o Afeganistão

Terra – O que acha da mulher brasileira? Acha que são livres como deveriam ser?
Malalai – Não existe igualdade de gênero em nenhum lugar do mundo, nem em países mais desenvolvidos, como os Estados Unidos. É claro que não dá para comparar as mulheres brasileiras com as de países em guerra, como no Afeganistão, mas acredito que sofrem de maneiras diferentes. Não tem comparação, mas é justamente na união, não só das mulheres de um mesmo país, mas de vários, que isso se torna a solução. Temos um ditado muito comum no nosso país, que diz que o “direito não é uma coisa dada, mas sim conquistada, não é uma linda flor que é presenteada, você tem que lutar por isso”.

Terra – Acha que a mulher afegã e a brasileira têm coisas em comum?
Malalai – É claro que a mulher, não só a brasileira, mas todas têm coisas em comum, por exemplo a violência doméstica, estupros, a luta feminista, a pobreza. E acredito que os homens devem se unir pelo direito das mulheres. As mulheres afegãs e brasileiras têm outras coisas em comum, como a interferência dos Estados Unidos, mas acima de tudo temos coisas em comum como seres humanos. Todas as pessoas que acreditam na democracia devem se unir e se levantar contra essas atrocidades.

Terra: Qual é o seu mundo ideal?
Malalai: Sonho com um mundo em que haja justiça, democracia. Um mundo em que as mulheres tenham direitos, um mundo sem fronteiras, sem ditadura. Um mundo em que todos que cometeram crimes sejam julgados. Um mundo de paz e direitos iguais e que nenhum sangue seja derramado. Um mundo com educação para vida, para ponderar homens e mulheres. Você conhece o poema (sic) “I have a dream”? Esse é o meu mundo.

Fonte: Terra

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