Por Aldo Fornazieri.
A disseminação do covid-19 no Brasil desnudou uma situação política que vinha se evidenciando desde 2013, mas que não assumia a transparência e a nitidez que assumiu agora: existe uma crise de poder, um vazio de poder, que traz consigo também uma crise de esperança. De lá para cá, nem os dois pedados dos governos Dilma, nem pedaço do governo Temer e menos ainda o em andamento governo Bolsonaro se mostraram capazes de estabelecer uma coordenação política do Estado, no sentido de imprimir direção e sentido rumo a objetivos estratégicos e de coordenação da sociedade e de suas principais atividades. Há um prolongado e perigoso vazio de poder. A autoridade central, configurada nas figuras dos presidentes, tem baixa legitimidade e credibilidade e não tem capacidade de ser o centro da coordenação do poder.
As eleições gerais de 2014 e de 2018 não foram capazes de reconstruir os sistemas de coordenação e de direção política do Brasil. Pelo contrário, o que se observa é um crescente processo de fragmentação, de dispersão de comandos, de dispersão de orientações, configurando um processo caótico. O governo Bolsonaro agudiza esse processo e parece apostar nele.
O colapsamento do sistema de coordenação central do poder político nacional se explica, em parte, pela derrocada das duas forças hegemônicas que emergiram na redemocratização e que apresentavam capacidade de imprimir direção e sentido ao Estado e à sociedade: o PSDB e o PT. Sinteticamente, o PSDB se estiolou porque é um partido-Estado e sem o poder do Estado não tem força social para sobreviver como força hegemônica. O PT se solapou a si mesmo pelos erros que cometeu na condução do Estado, abrindo os flancos para que fosse atacado de forma avassaladora. Não teve força moral e virtude política para resistir. Isto minou a capacidade de direção ou hegemonia social que exercia e que o levou ao poder.
A derrubada do PT do poder surtiu os efeitos de uma guerra civil: como o ataque ao PT foi comandado por forças em declínio, corrompidas, não houve um príncipe novo capaz de imprimir direção na nova situação criada. Pelo contrário, houve uma dispersão ainda maior. Também não houve um líder, ou uma força, que viabilizasse um 18 Brumário brasileiro, visando pôr um fim à dispersão e a crise e estabelecer uma governabilidade forte.
O resultado foi a ascensão de uma força antissistêmica – Bolsonaro e o bolsonarismo. Sem força política e social para reconstruir um sistema político e partidário em crise, a aposta do bolsonarismo consiste em agravar ainda mais a crise desse sistema, produzindo uma situação caótica com o objetivo de viabilizar uma saída de força. Este é o roteiro, o processo político em curso, que assume dimensões dramáticas em meio à crise do Covid-19 porque a sociedade se tornou prisioneira do medo, da solidão, da indecisão e da perplexidade em face da multiplicidade de comandos e de orientações.
Parte importante da sociedade não quer mais Bolsonaro na presidência e manifesta seu alarido nas janelas. Lideranças do Centrão e das esquerdas anunciam que o governo Bolsonaro acabou. A maioria dessas forças age no compasso de espera, apostando mais na tese de que é melhor deixar o presidente sangrar até o fim, até 2022. Somente parte minoritária das forças políticas organizadas propõe o impeachment. O manifesto das oposições pedindo a renúncia foi mais um ato formal, protocolar, uma marcação de presença. Neste momento as forças de centro-direita, capitaneadas por Rodrigo Maia e os governadores Dória e Witzel são as que mais polarizam com Bolsonaro.
Bolsonaro, no entanto, sem mantém. Cerca de 60% não querem sua renúncia. Em parte, isto se explica porque a população não quer sobrepor à crise da pandemia uma crise política de grande magnitude. Mas o mais significativo são os 33% que ainda emprestam uma avalição positiva ao presidente. Nada indica que este percentual recuará significativamente a ponto de atingir, por exemplo, o patamar de 15% ou menos. Ao se segurar no patamar dos 30% de apoio e sem manifestações de rua, Bolsonaro se segurará no governo, mesmo que não governe, mesmo que seja tutelado por militares, mesmo que seja emparedado por ministros, mesmo que continue sabotando o povo e o Brasil.
Desta forma, Bolsonaro se mantém porque não há alternativa a ele. Nenhum líder e nenhuma força política são capazes, no momento, de apresentar uma alternativa e um caminho agregadores de maioria social e de legitimidade suficiente para conduzir uma ampla maioria social.
É por isso que esta prolongada crise de poder é também uma crise de esperança. Existe um vácuo político-partidário. As forças de centro-direita têm pouca credibilidade. O PT mostra-se incapaz de reconstruir sua hegemonia social. O PSol é uma força pequena que não tem a potência de se transformar numa força hegemônica. As demais forças de centro-esquerda hoje competem com o PT, via Ciro Gomes, na tentativa de construir uma alternativa viável.
No campo social, a sorte não é melhor. O movimento sindical e o movimento estudantil sofrem uma prolongada crise existencial, de sentido, de lugar e de tempo. É improvável que algo de relevante surja daí. Há, de fato, um significativo vigor de movimentos sociais urbanos e no campo. O MST, por exemplo, mantém uma solidez de décadas. Mas esses movimentos se caracterizam pelas suas especificidades. Isto os impede de impulsionar um movimento político de sentido unitário e universalizante que precisaria ser, necessariamente, um movimento de tipo político.
Existe uma crise de dispersão também no campo social. Nem as lideranças existentes têm capacidade de propagação coordenada de direção e sentido e nem os próprios movimentos são capazes de gerar novas lideranças fortes, virtuosas e capacitadas a superar a dispersão e a fragmentação. Em suma, em termos gramscianos, há um estilhaçamento das instituições de hegemonia, de alto a baixo, do Estado à sociedade, passando pelos partidos e pelos movimentos sociais.
Este quadro de estilhaçamento, de fragmentação, de vácuo de poder e de lideranças, favorece a manutenção de Bolsonaro. Mais do que e isto: torna a conjuntura perigosa, pois Bolsonaro consegue coordenar forças organizadas como os evangélicos, setores empresariais e os grupos bolsonaristas. Em situações desse tipo, onde ninguém consegue imprimir a hegemonia, coordenar direções e sentidos, gerar consensos, as soluções de força adquirem perspectivas de viabilidade. Quanto mais dividida, desorientada e amedrontada a sociedade, mais se abrem os caminhos para soluções de força. Esta é a aposta de Bolsonaro. A solução de força não é uma alternativa imediata. Mas é uma alternativa que vem sendo construída em face da incapacidade das forças de centro e de esquerda de viabilizarem alternativas e saídas. É uma alternativa que cava suas trincheiras nas noites do medo, da solidão, do isolamento e da morte da esperança.