Por Marcos Nunes
Robert Guédiguian, cineasta francês, realizou, em 1985, o filme “Ki lo sa?”, sobre o qual nada sei, muito menos o significado do título (será “quem sabe?”). Só cito porque o próprio cineasta recorre a seu filme em sua realização mais recente, “Uma Casa à Beira-Mar”, que, intuo, dá continuidade à trama do anterior “Ki lo sa?”, reunindo o mesmo grupo de atores 32 anos depois.
A cena reproduzida começa dentro de um automóvel, onde os irmãos (mais um amigo) se dirigem a um vilarejo próximo à Marselha, ouvindo, de maneira já um tanto anacrônica, “I Want You”, de Bob Dylan, música de 1966. Vê-se claramente que são jovens, alegres, creem em utopias, desfiam as leis, as convenções, e estão prontos para mudar o mundo.
Em 2017, depois de longa separação causada por uma tragédia familiar, os irmãos se reúnem para decidir o destino da tal casa à beira-mar, que agrega um restaurante popular, “Le Mange-Tout”, ou seja, “onde comem todos”, que nasceu com a ambição de servir a qualquer pessoa que quisesse comer e pagar pouco por uma comida simples. Uma família de pequenos heróis da classe operária, como se vê.
Tantos anos depois, a casa está lá, o pai, que tocava o restaurante, acabou se sofrer um síncope que lhe causou danos permanentes (paralisia geral, incapacidade de fala e expressão). Segue vivo, mas a irmã distante, atriz de certa celebridade, é chamada para a leitura de testamento, que a indica como herdeira de 50% do patrimônio, o que ele refuta – quer dividir tudo por igual, considerando a injustiça uma chantagem que credita a uma forma de compensação pela tragédia ocorrida.
Um dos irmãos ficou com o pai, dando seguimento ao trabalho no restaurante, mas o vilarejo está semiabandonado, restando alguma atividade de pesca e um pequeno porto ainda repleto de barcos de passeio. O outro irmão homem comparece trazendo sua namorada muito jovem, mas está à beira da separação. Suas ações e reações são sempre críticas, cínicas e politicamente incorretas. É um homem cansado, como o outro irmão, que não vê perspectivas no pequeno negócio da família, enquanto a irmã, atriz, apesar do êxito, não é feliz em sua vida e carreira.
Do envolvimento deles com um casal de amigos, já idosos, o filho desse casal, empresário do ramo de saúde, bem sucedido, formado em medicina, o Exército que ronda a região à procura de refugiados africanos, mais três crianças, náufragas que sobreviveram a uma tentativa de imigração ilegal e conta com a solidariedade de todos (menos do Exército, cuja função é recolher vítimas de tais naufrágios e, no mais das vezes, encaminhá-las à extradição) é feito o filme, com o acréscimo de um pescador jovem, eternamente fã e enamorado da atriz, a seguir seus passos e cultivar a arte da representação, de maneira amadora, para educação das crianças da região.
O tema mais importante sob tal imbróglio é o da perda das perspectivas da juventude, das utopias, dos sonhos de realização mais social que pessoal. Envelhecidos, todos tem contas a prestar consigo mesmos e com os outros; todas carregam frustrações; nenhum enxerga um horizonte benfazejo à frente.
“O reencontro” é um velho filão cinematográfico; este “Uma Casa à Beira-Mar” se vê como um desdobramento não apenas de “Ki lo as?”, mas, principalmente, de “Nós Que Nos Amávamos Tanto” (1974), de Ettore Scola, que mais uma vez demonstra como a passagem do tempo, a distância entre personagens e as experiências vividas pro cada um plantam destinos diversos, todos conectados com as possibilidades de sua época, mas sempre legando um grau de amargura mais acentuado do que a pouca doçura que restou.
Um dos irmãos, aquele em crise com a jovem namorada (que logo se envolve amorosamente com o médico e empresário após mais uma tragédia – essa mais leve, conforme considero), rememora suas ilusões, quando, mais jovem, largara os estudos para se envolver com a causa operária. Anos depois, retornará aos estudos, se formará professor, continuará fiel às ideologias mais à esquerda. No passado, porém, fez uma descoberta aterradora: a classe operária não quer formar consciência de classe; não tem espírito de classe; na verdade, a maioria de seus integrantes não suporta pertencer ao operariado. Afinal, o capitalismo, em contraponto à onipresente ameaça do bloco de esquerda capitaneado pela União Soviética, forjou, temporariamente, o Estado do Bem-Estar Social, com suas pequenas oportunidades para as classes mais baixas, fomentando as ilusões de ascensão social e integração ao universo do consumo como caminho para se chegar à plena felicidade.
A classe trabalhadora, assim, não se reconhecendo como tal, mas como um grupo de indivíduos temporariamente sujeitos às más condições de trabalho nas indústrias, não tem ciência de sua condição, apenas de seus sonhos a ser realizados individualmente.
Logo, se queremos saber de onde surgiram os pobres de direita, perguntem ao pós-Segunda Grande Guerra, à Guerra Fria que lhe sucedeu, às pequenas ilhas de progresso do capitalismo cercadas pela ação imperialista por todos os lados, onde ditaduras continuaram a entregar recursos de nações eternamente “em desenvolvimento” às metrópoles, submetendo o povo à miséria – de onde poderia brotar consciências revolucionárias, só que não: as torturas, as mortes, os exílios, deram cabo de parte de sucessivas gerações contra a opressão imperialista; péssimos sistemas de Educação e Saúde complementaram o serviço; o resto, foi feito através dos monopólios de mídias corporativas, correntes de transmissão ideológica a criar mentes incapazes de reagir à submissão política e econômica.
Retornemos, no entanto, ao filme. A “saída” que nos parece oferecer Guédiguian, não difere das mínimas possibilidades da classe trabalhadora de hoje, com a precariedade que começa a atingir os velhos e decaídos países europeus, que mantiveram, enquanto puderam, o Estado de Bem-Estar Social. Presentemente, com o domínio corporativo financeiro global, esses Estados estão sob o jugo dos ditames ditos “neoliberais”, desmontando a estrutura “assistencialista”, que nada mais é do que a imprescindível, expressão da cidadania plena de cada sujeito dentro dos limites de sua nação que, enquanto consórcio de cidadãos, deve oferecer a todas as mesmas condições de vida, sob leis justas, sem privações de moradia, trabalho, lazer, saúde e educação.
A “saída” é a solidariedade pelos mais carentes (na figura das três crianças refugiadas), o amor e tentativa que criar um novo caminho para cada um, sem ilusões quanto a utopias socializantes, criando novos projetos integrados às necessidades e carências que estão mais próximas.
Ou seja, saída nenhuma, por desconsiderar que, os indivíduos, estarão sempre sujeitos às ordenações sistemáticas, de hegemonias encasteladas em formas de poder que, se tornando mais e mais discricionárias, destroem toda e qualquer possibilidade de realização humana.
Enfim, não se resolve o problema na aldeia desconsiderando os problemas das cidades, e não se resolvem os problemas das cidades ignorando os problemas do país; muito menos os males de um país sem a perspectiva do que é o poder do capital sobre o planeta, que rompeu há muito os limites das fronteiras nacionais.
Ainda que seja belo, simpático, afim às questões que hoje percorrem o mundo, “Uma Casa à Beira-Mar” tem seu foco limitado, e não consegue romper com os limites que não são apenas internos, mas também externos, e interdependentes.
Que pena. Poderia ter sido um grande filme.
Mas, também, quem manda esperar, de uma obra de arte que dura menos de duas horas, a solução de todos nossos problemas?!