Por Sally Satler.*
Há um passado que não passa, que se renova e se desdobra como farsa, sempre, e caricaturalmente agora. (Adriano Pilatti, jurista e professor, sobre a edição de normas repressivas para justificar o autoritarismo estatal nos manifestos).
Alguns textos/editoriais de jornais como “O Globo”[1] (que apoiou a ditadura e por esses tempos pediu desculpas como estratégia de marketing) e alguns jornais locais, afiliados a mesma rede, não poderiam ter outro assunto esse mês que não fosse a defesa de atos e normas autoritárias contra o ‘vandalismo’ dos manifestantes de rua. A retórica utilizada por esses meios de comunicação chega a ser vergonhosa, com títulos como “Reação ao Vandalismo”[2], omitindo descaradamente que a reação, de fato autodefesa, parte dos manifestantes logo após a violência e truculência iniciada por policiais.
Não bastasse o disparate da polícia usar a lei de segurança nacional[3] (criada sob os auspícios da ditadura militar) para justificar as recentes e arbitrárias prisões de manifestantes[4], encontra-se tramitando em regime acelerado no Congresso Nacional o Projeto de Lei 728/2011, que define, entre outros, o crime de terrorismo durante a Copa do Mundo. Fazendo uma breve leitura do Projeto, não há dúvidas que a redação genérica abre possibilidades de criminalização também dos movimentos sociais. Diversas expressões contidas no art. 4º, como “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado”, “por motivo ideológico, religioso, político” para definir o crime de terrorismo na copa, abre muitos espaços para sua aplicação.
Vejamos, por exemplo, a interferência midiática em manifestos: se a mídia passa a disseminar o medo, causando apreensão e pânico, será fácil qualificar um manifestante como terrorista. Além disso, a não exclusão expressa das manifestações de movimentos sociais como ato de terrorismo coloca em perigo toda a luta democrática no Brasil. Outro exemplo foi a recente manifestação dos professores da rede municipal do Rio de Janeiro, que começou pacífica e terminou com confrontos e depredações, causados especialmente pelo abuso da força policial. Isso tudo, somado à impunidade desses abusos, dá um alvará para que o policial se sinta livre para agredir gratuitamente os manifestantes e ainda puni-los com o rigor da lei (lembram quando um capitão da PM disse que tinha jogado gás de pimenta porque quis em um manifestante?). A pena prevista para o crime de ‘terrorismo’ na copa é de 15 a 30 anos de reclusão e, se for praticado contra coisa (bens), a reclusão é de 8 a 20 anos, superando até o crime de homicídio previsto no Código Penal, de 6 a 20 anos.
PM mostra cassetete e faz menção debochada a professores manifestantes:
“Foi mal fessor!”
(Foto: Reprodução / Facebook / Tiago Tiroteio)
Por que isso não nos surpreende? Em recente palestra no Fórum Permanente de Direitos Humanos no RJ, o professor Adriano Pilatti fez os seguintes questionamentos: “Por que temos tanta facilidade em defender caixas eletrônicos e temos uma grande dificuldade de olhar para um barraco e ver ali a propriedade inviolável? Por que é que se pode remover centenas, riscar comunidades do mapa, pra fazer negócio e nada acontece? Porque a vida, a dignidade humana vale menos que o capital voraz de empreendimentos imobiliários ou um evento de copa do mundo?” [5]
Não há dúvidas que esse projeto de lei possui claramente pretensões intimidatórias e de silenciamento, tal como num regime de exceção, lembrando muito o famigerado Ato Institucional no. 5. E é nossa obrigação lutar contra a sua aprovação: pelo direito de manifestar-se, pelo direito de expressão e de locomoção. Pelo direito de lutar.
[1] Jornal O Globo (10/10/2013): ‘Secretário quer proibir que detidos por vandalismo voltem a atos em SP’: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2013/10/10/secretario-quer-proibir-que-detidos-por-vandalismo-voltem-atos-em-sp-511595.asp
[2]Jornal de Santa Catarina (10/10/2013): ‘Reação ao vandalismo’: http://www.clicrbs.com.br/jsc/sc/impressa/4,185,4295755,22922
[3] Segundo o jurista Dalmo Dallari, a lei de segurança nacional só poderia ser usada em três situações: quando expõe a perigo a integridade territorial e a soberania nacional, o regime democrático ou quando atinge os chefes dos Poderes da União; e em nenhum desses casos os manifestantes se enquadram.
[4] Inúmeras prisões já foram efetuadas com base na lei de segurança nacional. Segundo a Rádio Band News FM, na madrugada do dia 11/10/2013 houve uma força-tarefa para efetuar prisões políticas em casas de manifestantes e de participantes de movimentos sociais no Rio de Janeiro. Para saber mais, acesse a nota pública divulgada pelo Coletivo Mariachi, no facebook, assinada por diversas organizações e movimentos sociais: http://www.facebook.com/coletivomariachi/posts/315936528546205:0
[5] Em palestra proferida no Fórum Permanente de Direitos Humanos– EMERJ – 26-9-2013: “Direito à Manifestação, Democracia e Garantias Constitucionais”. Acesse: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=b_PsRlhJe8Q
* Sally Satler é advogada e procuradora municipal.
Fonte: http://sallysatler.blogspot.com.br/2013/10/o-terrorismo-de-estado-e-reinvencao-do_11.html