O suspeito ‘Fundo Cívico’ dos super-ricos

Por André Barrocal.

A democracia poderia ser um antídoto contra o poder econômico, ao dar ao cidadão o direito igual ao de qualquer endinheirado de escolher o tomador das decisões que afetam uma comunidade. A grana reage ao tentar tutelar a classe política. Com sucesso.

Dinheiro de campanha, maior ou menor boa vontade da mídia, lobby, ameaças de não investir, e por aí vai. No Brasil é igual.
O Congresso tem 42% de empresários e só a metade de assalariados, todo mundo financiado por empresas, daí a aprovação de um escandaloso perdão e parcelamento de dívidas patronais.

A bufunfa domina a cena fora de Brasília também, vide o pa­trimônio dos governadores eleitos em 2014 (3 milhões de reais, em média) e dos prefeitos em 2016 (1,1 milhão). A proibição judicial em 2015 de doação empresarial limitou a ação do capital, idem a promiscuidade público-privado revelada pela Operação Lava Jato.

Em um dos países mais desiguais do mundo, os endinheirados não ficariam inertes. Com o pretexto de aposentar a “velha política” – que tanto ganho já proporcionou à elite brasileira, quanta ingratidão –, uma turma de milionários resolveu fabricar candidatos para 2018.

Montou um “Fundo Cívico para a Renovação da Política”, de quantia e depositantes ignorados até aqui, embora tenha circulado no noticiário o nome de alguns mecenas, casos do empresário Abilio Diniz, do banqueiro Arminio Fraga e do publicitário Nizan Guanaes.

O apresentador de tevê e aspirante à Presidência Luciano Huck, tucano, figura na lista. Será ele o postulante “cívico” ao Palácio do Planalto? Ou será o prefeito e empresário João Doria Júnior, recém-acusado dentro do PSDB de fraudar licitações e abandonar São Paulo? Ou o banqueiro João Dionísio Amoedo, conselheiro do Itaú e fundador do Partido Novo, legenda que recentemente abriu as portas a outro economista financista, Gustavo Franco, ex-tucano?

Certo é que o fundo nasce sob a suspeita de ser uma tentativa disfarçada de burlar a proibição de doações empresariais. Foi o que fez o Ministério Público Federal ser cobrado a investigar. O pedido é de 3 de outubro, três dias antes do lançamento do fundo, e até a conclusão desta reportagem na quarta-feira 11 não havia providência a respeito.

O documento quer que sejam averiguados os “reais objetivos” do fundo, apontado como fonte de cooptação ilícita de cidadãos, uma “ditadura do dinheiro, com a formação de um exército do poder econômico”.

Quer da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, a suspensão de qualquer operação “cívica” e a requisição da papelada sobre a iniciativa, como protocolos de intenções, atas de reuniões e contrato social, para instauração de um inquérito civil que o enterre definitivamente.

São dois os alvos da solicitação de suspensão do fundo e de requisição de material: o empresário Eduardo Mufarej, face pública da iniciativa até o momento, e Abilio Diniz. Mufarej é sócio da Tarpon Investimentos, que por sua vez é sócia da BRF, a multinacional de alimentos cujo conselho de administração é dirigido por Diniz.

O principal executivo da BRF é sócio-fundador da Tarpon, Pedro Faria. Mufarej nega que o fundo será financiador de campanhas e não atendeu a um pedido de entrevista.

Foi ele quem comandou a festa de lançamento do fundo em 6 de outubro, em São Paulo. Na plateia, a atriz global Maitê Proença, a elogiar Huck como presidenciável, reclamar que brasileiro não sabe votar e pregar “renovação” na política.

Brasileiro não sabe votar? Maitê foi por anos apologista do senador mineiro Aécio Neves, o presidenciável tucano de 2014 pego em 2017 no escândalo Friboi, afastado do mandato e colocado de castigo em casa à noite pelo Supremo Tribunal Federal.

Os usos e costumes da política precisam de “renovação”? A atriz de 59 anos, crítica do Bolsa Família, é solteira aos 59 para continuar embolsando uma bolada de pensão vitalícia por seu falecido pai ter sido juiz e procurador. Se casasse, adeus mamata, ôps!, “direito adquirido”, diz ela.

O pessoal do fundo sonha em fabricar 150 candidatos, prioritariamente a deputado federal. É a meta de gente a ser selecionada entre as inscrições iniciadas dia 7. Os interessados precisam ter 21 anos ou mais, ficha limpa e nenhum mandato no currículo.

Cada escolhido receberá bolsa de 5 mil a 8 mil reais por mês a partir de janeiro e cursos de inteligência política e de como se portar perante a imprensa. O valor do auxílio foi definido com base em programas privados de trainee.

No limite, serão pagos até 7,2 milhões de reais em bolsas – uma ninharia para as fortunas dos idealizadores –, já que a preparação vai de janeiro a junho de 2018. O treinamento termina no mês que antecede o início das convenções partidárias que aprovarão candidaturas.

Procurador-geral eleitoral de 2013 a 2016, Eugênio Aragão sente cheiro de trambique, um drible no veto a doações empresariais.

“É abuso de poder econômico. O bolsista que se candidatar deveria ter o registro cassado pela Justiça Eleitoral, pois entrará na campanha em vantagem em relação aos demais candidatos, vantagem financiada por empresários.” Para ele, o MPF precisa investigar. O pedido de apuração deu entrada na Bahia e foi remetido a São Paulo, onde o fundo foi apresentado.

Na terça-feira 10, o advogado Neomar Filho, responsável jurídico pelo pedido, encaminhou ofício ao MPF a solicitar urgência nas providências e que o caso fique com Raquel Dodge em Brasília, por ter implicação nacional. “O lançamento deu-se na certeza de que não haverá punição. É uma aberração grave que a PGR e a Justiça Eleitoral ainda não tenham se pronunciado”, diz.

O autor político do pedido é o deputado Jorge Solla, do PT da Bahia. Para ele, foi por naufragar a tentativa do Congresso de legalizar o financiamento empresarial de campanha que o fundo surgiu.

Nas eleições municipais de 2016, diz, a criatividade do PIB já tinha dado as caras, com doações na qualidade de pessoas físicas por parte de executivos de empresas, em troca de promessas de gorda participação nos lucros e resultados do patrão.

“O poder econômico sempre jogou pesado no Brasil e agora vai jogar ainda mais. Há muito tempo não contava com um governo tão favorável, que entrega o petróleo, fez reforma trabalhista para reduzir o pagamento aos trabalhadores, congelou gastos com assistência social e educação para pagar juros da dívida pública”, diz.

O de Michel Temer é de fato o governo dos ricos. No primeiro semestre, o de PIB zero, a renda da classe A, entendida como quem ganha acima de 17 mil reais mensais, um grupo de 1 milhão de famílias, subiu 10%, enquanto a das classes D e E (renda até 2,3 mil), um total de 45 milhões de famílias, encolheu 3%.

São cálculos de uma consultoria do mercado financeiro, a Tendências. Não surpreende o governo preparar uma lei a pavimentar um novo Proer, socorro de bancos com verba pública da era neoliberal de Fernando Henrique Cardoso.

Apesar dos lucros recordes, a situação dos bancos não é lá muito confortável, em razão da alta inadimplência, e os ganhos podem cair no futuro, dependendo dos rumos políticos no Brasil, segundo a agência de rating Moody’s, motivos para ela ter recém-rebaixado para “negativa” a nota dada a instituições financeiras atuantes aqui.

Os bolsistas a ser financiados pelo “fundo cívico” terão de estar afinados com a visão financista, certas credenciais ideológicas serão exigidas, daí que os partidos Novo e Rede e os movimentos conservadores MBL e Vem Pra Rua são vistos como celeiro natural de candidatos a ser fabricados.

Afinal, os ricos não iam botar grana em defensor de trabalhador e da taxação de grandes fortunas. Entre os “princípios inegociáveis” dos mecenas do fundo estão “gestão fiscal responsável”, eufemismo para boicote a uma política econômica desenvolvimentista, “priorização do cidadão em detrimento da máquina pública”, truque linguístico para redução do Estado, “respeito às liberdades individuais”, expressão que a direita adora, e “combate irrestrito à corrupção”, disfarçada declaração de amor à Lava Jato.

Compreensível que, logo na página 4 do manifesto de criação do fundo, haja o gráfico “destruição de valores financeiros”, a citar 700 bilhões de reais em perdas na Bovespa desde 2010.
“Esse fundo vai radicalizar a privatização da democracia brasileira.

Até aqui, os empresários não entravam na política, pagavam políticos pelo trabalho sujo. O fundo corta a intermediação”, diz o cientista político Gonzalo Berrón.

“Essa privatização costuma ser feita com algum grau de sigilo e pudor midiático. Que se faça tudo abertamente é uma novidade.” Berrón foi um dos dois coordenadores de um relatório de 2016 a esmiuçar a captura da democracia no Brasil pelos ricos, intitulado A Privatização da Democracia, obra de uma rede de ativistas, a Vigência!, especializada nos efeitos sociais do que chama de “capitalismo extremo”.

Essa captura acontece, entre outros meios, através da “porta-giratória”, definição do entra-e-sai de uma pessoa de empregos no setor privado e no público, e lobby no Congresso. O atual secretário de Previdência, Marcelo Caetano, um dos idealizadores da reforma das aposentadorias que empurra a classe média a planos privados, foi conselheiro de um desses, o BrasilPrev.

A reforma ter empacado no Con­gresso é uma das razões a motivar Arminio Fraga a apostar em “renovação”. Anda desesperado, como já mostrou em entrevista. Incompreensão política, a dele. Os parlamentares são patronais, mas não são burros.

Mexer nas aposentadorias a um ano da eleição seria suicídio. Fraga foi ingrato também. Esse Legislativo “velho” acaba de aprovar uma lei que fixa em 10% da renda o limite de doações de pessoas físicas a campanhas.

Quer dizer, quanto mais rico, mais grana para dar. Ademais, o Congresso fez uma lambança ao tratar de autofinanciamento, aquilo que um candidato pode botar do próprio bolso numa campanha, e talvez não haja teto algum, talvez de 10%, como o das pessoas físicas, incerteza que tende a parar nos tribunais. Onde o capital também deita e rola, com influência cultural, segundo A Privatização da Democracia.

E o campo progressista a olhar a paisagem, à espera de uma redentora candidatura Lula.

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