Sergey Karaganov publicou no dia 13 de junho seu artigo “Uma decisão difícil mas necessária”, causando ampla discussão entre os analistas militares, politólogos, políticos, cientistas sociais e jornalistas na Rússia. No artigo, o influente cientista político, que dirige o Conselho de Política Externa e de Defesa russo, expõe a sua visão sobre a situação atual do teatro de guerra ucraniano e seu futuro, para, ao fim, propor uma polêmica solução estratégica aos problemas enfrentados: a Rússia deveria começar a subir os degraus da “escadaria nuclear”, diminuindo o “limite inaceitavelmente alto” para o uso de armas nucleares adotado desde o fim da Guerra Fria, com o fim de forçar os Estados Unidos a voltarem a temer um confronto nuclear com Moscou. “É necessário despertar o instinto de autopreservação que o Ocidente perdeu e convencê-lo de que suas tentativas de desgastar a Rússia armando os ucranianos são contraproducentes para o próprio Ocidente”, escreve.
Caso os primeiros passos dessa escalada não tenham o efeito desejado, diz Karaganov, “teríamos de atingir uma série de alvos em vários países para trazer aqueles que perderam a sanidade de volta à razão”. O autor se refere ao uso das armas nucleares “táticas”, de menor poder destrutivo do que as armas nucleares “estratégicas” – como as que atingiram Hiroshima e Nagasaki ao fim da Segunda Guerra –, e uma parte de seus colegas na revista Russia in Global Affairs aponta a Polônia como o alvo preferencial visado pelo teórico.
O ponto de partida da avaliação estratégica feita por Karaganov é que, mesmo que Moscou conseguisse ter vitórias parciais ou completas na Ucrânia (a “libertação” de diversas regiões, a “libertação” do Sul e Leste ou a “libertação completa” do país, com uma marcha até Kiev), o que restaria ainda seria uma população tendendo a uma oposição radical ao russos e ao novo governo, num cenário que conta com fatores como a ascensão e a popularização do ultranacionalismo e do fascismo (bastante presentes antes da invasão russa, mas certamente fortalecidos por ela) e ampla disponibilidade de armamento. Nesse cenário, que por si só já seria desastroso, o Ocidente poderia seguir com sua estratégia atual na Ucrânia, qual seja: estimular uma guerra prolongada, um atoleiro, que neste caso tomaria a forma de guerra civil guerrilheira contra os russos, estimulada, equipada e financiada a partir do exterior. Na avaliação de Karaganov, mesmo que Moscou obtivesse uma vitória total na atual guerra (cenário que considera “talvez um dos piores” entre os possíveis), mais de uma década seria necessária para estabilizar a situação interna da Ucrânia.
Esta situação forçaria Moscou a seguir focando sua política nas suas fronteiras com o Ocidente, quando Karaganov defende que o país precisa se voltar para o Leste, particularmente para os Urais, Sibéria e Oceano Pacífico – proposta que tem um elemento cultural-ideológico (uma representação mais apropriada do “espírito russo”, para o professor, estaria nestas regiões), econômico (seria necessário desenvolver as capacidades dessa enorme massa terrestre, no geral mal aproveitada) e especialmente geopolítico (o giro para o Pacífico possibilitaria à Rússia uma maior influência sobre a América do Norte e a Ásia).
Na caneta de Karaganov, seria conveniente que Moscou “libertasse” e reincorporarasse as regiões Sul e Leste da Ucrânia, forçando assim uma rendição de Kiev, seguida de uma desmilitarização completa da Ucrânia e a criação de um estado tampão amigável no leste do país. Ocorre que, para ele, a “causa fundamental” para o conflito na Ucrânia é o “colapso acelerado das modernas elites ocidentais dominantes” que teriam sido geradas no processo de globalização e que, com a ascensão chinesa, vêem sua posição decair aceleradamente. Assim, o Ocidente estaria voltado a uma estratégia de usar a Ucrânia como “um punho” para criar uma crise e paralisar a Rússia; popularizando “ideologias anti-humanas” (que “rejeitam a família, pátria, história, relação entre homem e mulher”, etc); e enfraquecendo a Europa, “jogando [os europeus] às chamas da confrontação após a Ucrânia”. Portanto, para o autor, essa solução não seria plausível: degradadas, as elites ocidentais não se conformariam mesmo com uma vitória absoluta de Moscou, porque seu objetivo não seria defender a Ucrânia, e sim atacar a Rússia. “Uma trégua é possível, a paz não” diz.
Parte dessa “degradação persistente” das elites ocidentais, que tem na caneta de Karaganov um forte aspecto conservador e cultural-ideológico (certas frases do autor, ironicamente, lembram algumas narrativas decoloniais, não fosse o indelével tom reacionário), incluiria a perda do medo nuclear. As armas nucleares, “uma ferramenta do Armageddon” que “Deus deu aos homens” para impedir a ascensão de novas guerras mundiais por meio do medo do inferno nuclear, estariam perdendo esse seu efeito aterrador, precisamente pelo “colapso cultural-estratégico acelerado” das elites dirigentes do Ocidente e pelo fato de o uso das armas nucleares ter sido colocado num patamar de impraticabilidade após a Guerra Fria.
A proposta de Karaganov então seria reavivar nas elites ocidentais o terror nuclear, fazendo uma progressão rápida nas escadarias nucleares rumo à dissuasão, por meio da ameaça, ou do uso efetivo, de armas nucleares: “teremos que tornar a dissuasão nuclear um argumento convincente novamente […] o inimigo deve saber que estamos prontos para desferir um ataque preventivo em retaliação por todos os seus atos de agressão atuais e passados, a fim de evitar um deslize para uma guerra termonuclear global”, escreve.
Choverá fogo?
Embora o polêmico artigo não possa ser tomado como um sinal de que, a qualquer momento, bombas nucleares cairão do céu, Karaganov não é um qualquer. Dirigente do Conselho de Política Externa e de Defesa, instituição fundada pelo ex-agente da inteligência soviética Vitaly Shlykov (1934-2011), que chegaria a ocupar o cargo de vice-ministro da Defesa da Rússia, Sergey foi o proponente da chamada “Doutrina Karaganov”, que previa que o Kremlin, de forma coordenada, tomasse uma postura de defesa (inclusive militar) das populações de russos étnicos e falantes de russo nas ex-repúblicas soviéticas, num contexto em que essas populações tendiam a ser perseguidas ou hostilizadas. Proclamada durante um discurso em 1992, a doutrina demonstrou sua relevância em 2008, com a guerra entre Rússia e Geórgia envolvendo as populações russas e as regiões da Ossétia do Sul e Abecásia, e a partir de 2014, com a perseguição a russos étnicos e falantes de russo no leste da Ucrânia, após o golpe de Estado. Karaganov também foi assessor de Boris Yeltsin e do próprio presidente Putin, e é próximo do ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov.
Karaganov tampouco é alguém com uma história restrita aos círculos russos: é membro desde 1997 da Comissão Trilateral, organização fundada por David Rockefeller, Zbigniew Brzezinski e Jimmy Carter para promover a cooperação entre a Europa ocidental, o Japão e os Estados Unidos; foi membro, entre 1995 e 2005, do Conselho Consultivo Internacional do Council of Foreign Relations, centenário think tank norte-americano pelo qual passou boa parte da burocracia dos EUA (e responsável pela publicação da revista Foreign Affairs); além de ter passagens por fundações e organizações ligadas a bancos ocidentais.
Assim, não se trata de um forasteiro balbuciando sobre bombas atômicas nos arredores da Praça Vermelha – e, como ele mesmo diz em seu artigo, o recente envio de armas nucleares “táticas” russas para Belarus já teria sido um passo, um aviso, na “escadaria nuclear”.
Por outro lado, seu artigo foi duramente criticado também na Rússia, inclusive em publicações nas quais tem influência. O kuwaitiano Marwan Salamah e os russos Ilya S. Fabrichnikov, Ivan N. Timofeev, e o editor-chefe do Russia in Global Affairs e membro do Valdai Discussion Club, Fyodor A. Lukyanov, foram alguns dos nomes que, a partir de perspectivas diversas, contrariaram publicamente as sugestões de Karaganov. Se mesmo no seu círculo intelectual não há um consenso pelo uso de armas nucleares, também parece improvável que, no atual estágio da guerra, o uso de armamentos nucleares seja efetivamente ponderado no comando militar russo – mas vale recordar que uma parte considerável dos analistas (este que escreve, inclusive), também considerava improvável que a Rússia invadisse a Ucrânia há pouco mais de 500 dias.
As armas de Deus e o céu cor-de-rosa
Embora a análise de Karaganov sobre o atual estágio da guerra e as perspectivas futuras da Rússia na Ucrânia seja absolutamente realista, o teórico passa rapidamente a um idealismo apocalíptico ao propor sua solução nuclear.
O autor reconhece que “amigos e simpatizantes não nos apoiariam no começo”, e que esses ataques seriam condenados por eles, aí incluídos os chineses. Mas, mesmo reconhecendo isso, diz: “no final, os vencedores não são julgados. E os salvadores são agradecidos. […] É bem provável que consigamos vencer, trazer nosso inimigo à razão e forçá-lo a recuar sem recorrer a medidas extremas e, alguns anos depois, posicionarmo-nos atrás da China, como ela agora está atrás de nós, apoiando-a em sua luta contra os Estados Unidos. Neste caso será possível evitar uma grande guerra. Juntos, venceremos para o benefício de todos, incluindo as pessoas que vivem nos países ocidentais. E então a Rússia e a humanidade irão perseverar em todas as adversidades e seguirão para o futuro, que me parece brilhante, multipolar, multicultural, multicolorido e dando aos países e povos a chance de construir seu próprio futuro comum.”
Se vê, assim, como a análise detalhista dá lugar à imaginação. “No final” (da vida na face da Terra?) todos agradecerão (não a Deus, pela Redenção, mas aos russos, pelo “futuro brilhante”) que as armas nucleares deixaram como herança. O que poderia dar errado?
Quanto ao mundo, não é absurdo presumir que a “subida da escadaria nuclear” acelerasse, e não impedisse, a corrida rumo a uma guerra mundial. Com essa medida, os russos certamente dariam um recado forte para os EUA, mas dariam também um recado a todos os outros países; todos nós nos entricheiraríamos no “medo existencial”. Karaganov nos dá um exemplo bastante notável de que a Destruição Mútua Assegurada não é o único paradoxo posto na mesa pelo uso de armas nucleares: buscando afirmar sua defesa existencial, a Rússia a tornaria necessária não só aos seus inimigos mais diretos (EUA, Europa), mas também a seus parceiros e ao resto do mundo; buscando evitar uma Grande Guerra, ela provavelmente a precipitaria. O objetivo político da guerra em si (considerando a posição de Karaganov, uma paz consistente na Ucrânia) poderia até se realizar, mas seria substituído por um cenário de ameaças multifacetadas, pipocando para todos os lados, em todos os cantos do planeta. Os ganhos pontuais de um seriam imediatamente excedidos pela perspectiva de perda total de todos; o respeito à existência da Rússia que a bomba garantiria seria, no minuto seguinte, substituído pela defesa existencial mútua de todos os países, e portanto pelo desrespeito mútuo à existência de todos os que sejam entendidos como inimigos prováveis ou possíveis. O “mundo multipolar” seria assim, inevitavelmente, um mundo “multidesconfiado”, “multiarmado”, “multipreparado para a guerra”, bem menos “multicolorido” do que o teórico prevê. Como a Coreia do Sul agiria em relação à Coreia do Norte quando a Rússia fizesse uso de armamentos nucleares contra a Europa? Como a Índia passaria a agir em relação ao Paquistão, ou mesmo em relação à China? O que Israel faria no dia seguinte em Gaza, ou em Beirute? A desconfiança dos próprios chineses em relação aos russos não teria então um bom motivo para se firmar? A propósito, há de se perguntar se, ao adotar essa postura, Karaganov está de fato focando sua atenção no Ocidente, e não na China.
Quanto às possíveis respostas norte-americanas, pode até ser que os EUA não respondessem a um bombardeio nuclear tático na Europa com um bombardeio nuclear a Moscou. Mas poderiam responder com um bombardeio nuclear na Síria, ou no Mali, ou na Somália, no Afeganistão – mesmo em Belarus. Ou, quem sabe, na Venezuela, na Nicarágua, na Bolívia ou no próprio Brasil. A “escada nuclear” tática continuaria a ser subida; a cada novo bombardeio num país europeu, um novo bombardeio num país do Oriente Médio ou da África. E, a depender do local escolhido pelos norte-americanos para fazer radiação chover, isso colocaria Moscou efetivamente numa das situações previstas no seu manual de dissuasão nuclear: “2.b) se o inimigo utilizar armas nucleares ou outras armas de destruição em massa contra o território da Federação Russa e (ou) de seus aliados”, forçando a Rússia, portanto, a escalar para o uso das chamadas “armas nucleares estratégicas”, e não pressionando seus inimigos a se conformarem com a situação na Ucrânia. Essas podem parecer medidas muito perigosas para serem adotadas pelo Ocidente – mas é Karaganov quem diz que as lideranças Ocidentais estão de tal forma degradadas que vivem uma espécie de demência continuada.
Por fim, a russofobia da qual Karaganov fala em seu texto, como um outro autor, Marwan Salamah, relembra, está, em boa medida, limitada aos Estados Unidos e à Europa. O uso de armas nucleares certamente expandiria o sentimento para outras regiões. Nesse cenário, ao invés de estar ocupado “agradecendo à Rússia”, o mundo estaria ocupado com a guerra e, depois, no improvável cenário em que a civilização permanece no final do filme, tentando lidar com a devastação ambiental e a contaminação milenar que as bombas nucleares em vários lugares na Europa causaram. Assim como os ucranianos, que se tornaram ainda mais radicalmente contrários à Rússia após a invasão, os europeus nunca esqueceriam dessa medida. Ao invés da humanidade “seguir para o futuro”, as bombas nucleares – mesmo que táticas – garantiriam que uma parte considerável dela nunca esquecesse o passado. Além disso, convém recordar que a Rússia tem sustentado sua invasão na Ucrânia sob o argumento de que está exercendo ali sua defesa existencial. Este argumento cairia por terra com o uso de uma bomba nuclear (e de certa forma essa narrativa como um todo se enfraquece quando teóricos relevantes propõem esse tipo de coisa).
A “escada nuclear” pode até não ser tão curta quanto pensamos, como Karaganov argumenta, mas ela certamente não é firme, e seus degraus são escorregadios.
É um tempo de guerra, é um tempo sem sol
Fichte, tratando do pensamento de Maquiavel sobre a relação entre Estados, escreveu que o florentino considerava que a paz duradoura so? poderia ser produzida entre as nac?o?es num cena?rio em que a possibilidade de vito?ria na?o estivesse nunca garantida a ningue?m: “como ningue?m pensa comec?ar a guerra se na?o pode faze?-lo com vantagem e todos esta?o atentos e tensos para na?o deixar a nenhum uma vantagem, uma espada mante?m a outra em repouso e sucedera? uma paz cro?nica que so? podera? ser interrompida por acontecimentos causais”. Esta paradoxal lição, em que a paz é resultado da prontidão para a guerra, parece ter sido confirmada pela relativa paz entre Estados nuclearizados nos últimos trinta anos; mas hoje, no conflito OTAN-Rússia-China, vive-se um outro tipo de paradoxo: muitas espadas são desembainhadas sob o argumento da defesa, e cada vez que há uma derrota a uma delas, ou que a vitória parece se adiar, propõe-se o uso de mais espadas, ainda mais afiadas. A proposta de Karaganov impressiona pela megalomania; mas é versão de uma tendência vista também do outro lado do conflito, em que, semana após semana, se propõe o uso de uma nova arma, mais efetiva, contra os russos.
Nesta conjuntura, em que o contínuo avanço da OTAN rumo ao Leste é justificado como a defesa da Ucrânia, em que a invasão da Ucrânia é justificada como a defesa da Rússia, e em que o assíduo armamento das tropas ucranianas é justificado como a defesa da Europa, sobram espadas desembainhadas, armas tecnológicas, soluções armamentistas mágicas; mas faltam um tema e um ator: a paz e o Sul Global, representado em suas lideranças, organizações, movimentos e povos.
A perspectiva do uso de armas nucleares, mesmo as chamadas “táticas”, deveria colocar o tema da paz na ordem do dia de todos os povos e países, porque implica um risco a todos eles. Os críticos daqueles líderes que a defendem, mantendo uma postura de não-alinhamento – como é o caso do presidente Lula – devem se lembrar, nas entrelinhas de textos como o de Karaganov, do que se trata o confronto entre duas potências nucleares.
Karaganov tem razão ao afirmar que três décadas depois da Guerra Fria, o mundo parece não mais temer as armas nucleares (o que, aparentemente, inclui ele mesmo). Tem razão também ao achar inverossímil que os líderes ocidentais se proponham, seriamente, a negociar uma saída pacífica na Ucrânia. Mas ignora que a paz não é feita só de líderes europeus – também os povos e líderes das margens do mundo podem comparecer à mesa.
Se é verdade que as lideranças da Europa e Estados Unidos, os grandes meios de comunicação e, em parte, os próprios povos de países centrais têm apostado cada vez mais na beligerância à luz do conflito na Ucrânia, o é também que os líderes e povos do Sul Global, onde a última Guerra Fria foi quente, podem e devem assumir a bandeira da paz. Há exemplos históricos em que as margens do mundo tiveram grande influência sobre os centros: a derrota dos italianos no Norte da África foi fundamental para que os Aliados avançassem contra o fascismo, em território italiano, durante a Segunda Guerra, levando Mussolini à derrota final; as guerras de libertação nacional na África foram chave para a queda do salazarismo em Portugal e a Revolução dos Cravos; e, para não usar somente exemplos militares, o Movimento dos Não-Alinhados que emergiu durante a Guerra Fria, se não foi capaz de dar uma face nova às relações internacionais, certamente ajudou a civilizar e pôr freios àqueles mais obsessivos por aventuras militares. É necessário que o Sul Global volte a se colocar em campo para civilizar os centros hegemônicos norte-americanos e europeus, obcecados com a guerra. A recente Cúpula de Bruxelas, entre a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a União Europeia, é um exemplo: quando os europeus são obrigados a negociar com os latino-americanos e caribenhos, as declarações não são condenações unilaterais a uma ou outra parte em conflito (embora o chileno Boric certamente tenha trabalhado para isso), embora tampouco se esquivem de tratar da guerra.
Há de se perguntar mesmo se haveria guerra na Ucrânia sem o recuo tático feito pelos Estados Unidos no Afeganistão, ou – para ficar no mesmo terreno em que a guerra se desenrola –, se haveria guerra na Ucrânia se os termos dos Acordos de Minsk, sobre as pequenas repúblicas de Lugansk e Donetsk, no Leste do país, fossem cumpridos. A guerra não se iniciou em Washington ou em Moscou, é improvável que termine nestes lugares, e certamente seus episódios mais dramáticos não se darão neles caso ela prossiga e se expanda.
Nesse momento, nas periferias do mundo, a disputa que tem lugar na Ucrânia já está sendo combatida indiretamente. A luta pelo cessar-fogo na Colômbia; o golpe militar no Sudão; a estabilidade do governo na Bolívia pós-golpe; a pressão pelo fornecimento de armamentos no Brasil; as vitórias da direita na Constituinte chilena; a luta contra o endividamento na Argentina; o golpe militar em Mianmar; as provocações em Taiwan; num mundo às portas de mais uma guerra intercontinental, todas estas são peças fundamentais, embora pouco reluzentes, do conflito que se acirra. Cabe aos líderes, aos partidos políticos, aos movimentos de massa, decidir se preferem os ganhos de curto prazo de um alinhamento a este ou aquele bloco, ou o arriscado mas compensatório não-alinhamento, em prol de uma perspectiva de paz, não um horizonte nuclear. A paz não é coisa dada por Deus, como Karaganov argumenta em relação às armas nucleares. Há de se lutar para conformá-la.
É preciso escapar tanto ao alinhamento cego a uma das partes do conflito – que, antes de tomar este aspecto, de apoio a um dos lados em guerra, se efetiva como respaldo ao prosseguimento da guerra em si –, quanto à apatia. Hoje, a guerra pode parecer e até ser distante, mas em um mundo que caminha perigosamente rumo à conflagração mundial, nenhuma gota de sangue derramada é um fenômeno puramente nacional ou endógeno.
A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.