Assim que Theresa May marcou eleições, os motores de consensualismo mediático – da direita tablóide ao venerável The Guardian – declararam a ideia brilhante porque garantia uma derrota certa para Jeremy Corbyn. As sondagens corroboravam a narrativa e o discurso ambíguo de Corbyn sobre o Brexit – colocado com alfa e ómega da campanha – alimentava a ideia de uma liderança à deriva.
Durante as primeiras duas semanas após a marcação de eleições, toda a máquina mediática parecia parte de uma estratégia concertada, histérica, contra Jeremy Corbyn. Até Tony Blair – que continua incapaz de ter noção do seu próprio descrédito – surgiu no Guardian a tentar preparar um possível retorno à liderança do Labour (a ideia é suficientemente absurda para ter caído num desconfortável silêncio dentro dos próprios blairistas).
Dan Hodges, do tablóide Mail on Sunday, lançava um tuíte que concentrava toda a ideia: “Caros Corbinistas, o que acontecer a seguir, e o que quer que aconteça ao país nos próximos cinco anos, é graças a vocês.” A imprensa séria, por seu lado, voltava à velha campanha de ridicularização, produzindo primeiras páginas sobre se Corbyn teria ou não feito uma vénia suficientemente baixa à rainha(link is external), por exemplo, ou lançando suspeitas de ligações de Corbyn ao ISIS(link is external). O problema é que o Manifesto de Corbyn parece agradar a uma parte crescente do eleitorado.
A tese da derrota certa de Corbyn sustenta-se nas eleições de 1983, quando Michael Foot, então presidente do partido trabalhista, defrontou Margaret Thatcher nas eleições apresentando um manifesto eleitoral que recuperava as propostas socialistas do movimento. A derrota duríssima foi depois utilizada por Tony Blair para justificar o New Labour e a adoção do neoliberalismo económico de Thatcher.
Na verdade, nem o manifesto era particularmente radical (mantinha as principais linhas programáticas desde 1918), nem Michael Foot alguma vez foi um representante da esquerda do Partido Trabalhista. Antes, Foot surge como o elemento de conciliação entre a ala liberal do partido, que já então se fazia ouvir, e as bases sindicais do movimento trabalhista. Como consequência, não agradou a ninguém, decidindo a ala liberal abandonar o partido e criar o que hoje são os Liberais Democratas (com um líder que considera que a homossexualidade é errada). O mau resultado de 1983 deve-se mais à divisão do eleitorado do Labour e à confusão programática do que o seu contrário.
Neste contexto mediático, o facto de Jeremy Corbyn ter conseguido furar o ruído e ganhar apoio dia após dia é um feito. E significa também que um programa que defende abertamente nacionalizações e que se opõe à NATO pode ser maioritário na sociedade. Apenas isto é uma mudança de paradigma no debate público europeu à esquerda. Jeremy Corbyn tem aliás uma vantagem que nenhum partido de esquerda a nível europeu tem: está, para os devidos efeitos, fora da União Europeia e, não tem nem terá uma coligação institucional negativa que possa influenciar a opinião pública, com ameaças de represálias económicas por se desviar do neoliberalismo europeu.
Em concreto, no seu manifesto eleitoral(link is external), Corbyn defende a criação de um Fundo de Transformação Nacional, com 250 mil milhões de libras, financiadas pelo défice, destinado a investimento em infraestruturas num plano a dez anos. A medida é apresentada como uma “reconstrução de comunidades desfeitas pela globalização e ignoradas pelo governo há anos. Iremos transformar e reconstruir a nossa economia de forma a que trabalhe para a maioria, e não apenas para alguns.”
De seguida, apresenta uma Estratégia Industrial, onde, para além do investimento em infraestruturas, propõe a reestruturaração do setor energético para que 60% da energia produzida em Inglaterra seja livre de emissões de carbono, num plano a ser concluído em 2030.
Para o sistema financeiro, que considera ter “falhado a sua missão” de apoio à economia, propõe a criação de um Banco Nacional de Investimento, uma instituição pública com capacidade para 250 mil milhões de libras para empréstimos, que, “ao contrário dos gigantes da City de Londres, se irá dedicar a apoiar o crescimento inclusivo nas comunidades”. Pretende também a construção de um novo sistema de regulação do sistema bancário, obrigando à separação absoluta entre banca de investimento e banca de poupança, bem como a divisão do RBS em várias entidades regionais. Crucialmente, irá alterar a lei de forma a impedir que os bancos possam fechar sucursais em localidades sem alternativas.
As nacionalizações são apresentadas como uma medida de redistribuição de riqueza: “A Grã-Bretanha é uma democracia estabelecida. Mas a distribuição da propriedade na economia do país significa que decisões sobre a nossa economia são tomadas normalmente por uma elite. Estruturas mais democráticas ajudariam a nossa economia a redistribuir a riqueza de forma mais justa”. Por isso, propõem em primeiro lugar duplicar o setor cooperativo, introduzindo o “right to own” [direito a ter], dando aos trabalhadores o direito de preferência para comprar a empresa se ela for colocada à venda.
É nos serviços universais que Corbyn pretende lançar as principais nacionalizações. Relembra que “faturas da água aumentaram 40% desde a sua privatização” para garantir dividendos às empresas, “e a nossa energia de fornecedores privados cobrou pelo menos 2 mil milhões de libras a mais em 2015.” De forma semelhante, desde a privatização dos correios que o “Royal Mail aumentou os preços de selos e parcelas, bem como falhados as suas obrigações de serviço, enquanto que os seus donos vendem ações da empresas com lucros significativos”.
No entanto, o manifesto eleitoral é cauteloso na forma como abordará as nacionalizações, apresentando diferentes formas de evitar processos conflituantes ou que obriguem a indemnizações do Estado a privados. A nacionalização dos caminhos de ferro será realizada à medida que os contratos de concessão forem saindo de prazo. As empresas privadas de água serão substituídas por empresas regionais de capital público, sendo o único caso onde o manifesto deixa claro que irá criar empresas de raíz. No caso da energia, irá alterar as condições das licenças dos diferentes operadores, “numa transição para o domínio público”. E a “reversão da privatização” dos correios deverá acontecer apenas “à primeira oportunidade”, não sendo claro o modo de o realizar.
A renacionalização das linhas ferroviárias pode no entanto sair aquém do esperado, dado que, durante a próxima legislatura, apenas 4 de 15 concessões irão chegar ao final do seu contrato. É possível que algumas das concessões terminem mais cedo, dado que os contratos incluem cláusulas com objetivos que podem sustentar hipoteticamente uma quebra de contrato a favor do Estado. No entanto, os contratos de parceria público-privado são favoráveis aos concessionários e a litigância nos tribunais pode não sair a favor do público.
Dossier 271: Eleições no Reino Unido – terminou o paradigma Thatcher?
Fonte: Esquerda.net.