O sono de Inaiê e seu encontro com Kant. Por Carlos Weinman.

Imagem: Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

Inaiê estava na porta da ferrugem dos esperançosos quando viu um senhor que caminhava tranquilamente, demonstrava no semblante uma serenidade incomum para os tempos contemporâneos. Diante disso, o espírito de Inaiê ficou mergulhado na curiosidade, não aguentou, foi em direção do senhor e perguntou:

– Oi, tudo bem? Desculpe-me pela intromissão, o senhor tem uma aparência familiar para mim, por isso pergunto: quem és?

O senhor respondeu rapidamente a jovem estranha que se aproximou:

Meu nome é Immanuel Kant, não sou desse lugar e nem desse tempo, minha casa costumava ficar em Königsberg, uma pequena cidade da Prússia, nunca havia saído de lá, hoje meu espírito peregrina na mente daqueles que são capazes de ler minha obra.

Inaiê ficou assustada, começou a tremer, o medo era grande, só perdia para a curiosidade, por isso indagou:

O senhor está afirmando que é um fantasma, um espírito?

O senhor Kant riu e falou:

– Não sou essa forma de espírito que estás pensando, apenas sou o resultado do seu despertar do pensamento, sobrevivo pelos tempos através do exercício promovido pela minha obra, escrevi vários livros, fui um estudioso da filosofia, meu espírito sobrevive ao tempo, enquanto tiver alguém capaz de ler e buscar pela autonomia e pelo esclarecimento.

A fala do filósofo Kant despertou ainda mais a curiosidade de Inaiê, por isso o interpelou:

Então, o senhor não é corpo ou matéria, mas está ligado ao meu pensamento?

Kant sugeriu que seria mais interessante encontrar um lugar para conversar, Inaiê o convidou para ir até a ferrugem dos esperançosos tomar um café. Quando chegaram perto, o irmão Ulisses e Roberto reconheceram o pensador, ficaram espantados, pois como seria possível a presença daquele personagem ilustre, que saiu do século XVIII e estava conversando com eles. A cena parecia ser épica, ainda mais com o fato que não demorou para a coruja da Combi se apoiar nos ombros do filósofo, em seguida Kant falou:

– Sobre sua questão Inaiê, parece que você encontrou um debate promovido por vários filósofos no decorrer da história, esse debate está relacionado com a constituição do ser, com a relação entre matéria e alma, sobre a possibilidade ou não de um saber puramente racional, que chamamos de metafísica, sobre esse tema o filósofo Descartes trouxe grandes discussões, até chegou a afirmar que a garantia de todo nosso conhecimento está no eu pensante, o chamado cogito cartesiano, que ele expressou da seguinte maneira: Cogito, ergo sum, que significa: penso, logo existo. Dessa forma, a unidade de consciência é o elemento chave de toda a nossa existência, do nosso ser. Não basta estar no mundo para definirmos quem somos ou como o mundo a nossa volta pode ser definido, existe a necessidade do sujeito pensante, claro que muitos pontos da filosofia de Descartes eu não concordei e ainda discordo. O fato discordar não quer dizer que ele não foi um dos protagonistas do despertar do pensamento e que transcende o tempo e espaço, contribuindo para as sociedades contemporâneas. Além disso, é muito importante fazermos um uso crítico da nossa capacidade racional, pois do contrário estaremos fazendo um uso dogmático, que corresponde a pretensão de adotar um conhecimento ou um conceito sem questionar o modo e como chegamos a determinadas regras, conceitos que estabelecem a nosso julgamento, o que constitui a fonte de erros e preconceitos, uma porta aberta ao fundamentalismo ou dogmatismo.

Roberto estava entusiasmado e disse ao filósofo:

Lembro de uma das suas obras intitulada “Resposta à pergunta: o que é Esclarecimento”, nessa menciona as dificuldades de pensar com autonomia, o que sugere ser mais fácil ser dogmático, principalmente quando falamos da comunicação, a análise crítica e reflexiva é bastante demorada e exigente, não é verdade?

Kant pensou um pouco e falou:

– Essa é uma das obras que publiquei em dezembro de 1783, o esclarecimento não é mais do que aprender e fazer uso da capacidade reflexiva, do entendimento, o que corresponde uma vocação humana, somos seres racionais e, ao mesmo tempo, passionais, ou seja, seres ou cidadãos de dois mundos, para alcançarmos a racionalidade precisamos ir além, isso é trabalhoso, é um exercício constante, é muito fácil encontrar as respostas prontas, ter alguém que nos diga o que é certo ou errado, que apresente a solução para os nossos problemas,   o que indica a nossa preguiça intelectual. No entanto, somos definidos pela nossa capacidade pensante, se não usarmos essa seguimos os instintos, as paixões, que não são um problema, mas não podemos ser definidos exclusivamente por isso ou seríamos escravos. Visto que a escravidão mais perigosa começa no interior do ser quando este deixa de pensar por si mesmo, adota as visões, os desejos e paixões de outros, um cão segue seu dono não pelo motivo de pensar, apenas pelo instinto ou pela gratificação, que satisfaz o corpo. Além disso, muitas vezes, ideias, pensamentos diferentes causam perturbação, incomodam e, por isso, muitas pessoas são ameaçadas, o que, também, impede o desenvolvimento do exercício de pensamento.

Diante da fala de Kant, Ulisses perguntou:

– O senhor não mencionou, nesse texto, o desafio de esclarecer um povo inteiro e o do estado não formar meramente súditos, mas cidadãos?

Sobre essa temática vejo situações diferentes em relação aos tempos, eu vivia em uma época que até mesmo as minhas aulas eram censuradas, nunca fui favorável a uma revolução armada, acredito que uma ditadura deposta pela violência sede apenas o lugar para novos tiranos, o dogmatismo trocado por outro corresponde a uma troca de senhor, para conseguirmos uma revolução é necessário uma mudança de pensamento, de ideias, para promover essa reforma, a liberdade de expressão é fundamental, para isso as pessoas não podem ser tolhidas, ameaçadas, a tolerância é fundamental, do contrário apenas formaremos súditos, que aprendem a obedecer e nunca serem cidadãos.

Assim que Kant terminou de falar, Inaiê ouviu vozes chamando por ela, suas vistas se abriram, estava confusa, perguntou para Roberto:

– Onde está Kant?

Roberto sorriu e disse:

Fazem três dias que você está no hospital, quando saímos do hotel para ir até a Combi, por estarmos sem dinheiro, você passou mal, trouxemos para cá, você dormiu durante três dias, com muita febre, parece que pegou dengue e teve outras complicações. Eu e seu irmão ouvimos você falar, nos seus delírios, de vários autores da filosofia, da literatura, da história, estavas no seu pensamento.

Inaiê estava sentindo fraqueza e decepção por não ser Kant, parecia ser a proposição cartesiana, na qual o filósofo duvidava de tudo, inclusive da própria realidade, como se essa fosse um sonho, foi quando Inaiê olhou para Roberto e perguntou:

– Quem não me garante que vocês são uma ilusão e que estou sonhando agora e não antes?

Roberto sorrindo disse:

Descartes diria que seu pensamento é a garantia do que concebe como realidade, afinal se você pensa, logo existe. Além disso, se existe e tem uma ideia perfeita do pensamento, quer dizer que todos nós existimos. Mais ou menos isso! No entanto, agora não vamos fazer um debate, descanse, pois a mente não poderá existir e pensar com coerência, para nós meros mortais, sem que o corpo esteja bem.

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Carlos Weinman

Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

 

 

 

 

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