Por Dinovaldo Gilioli.
E lá estava ele novamente. Parado, insone. Olhos fixos no nada. Sonhos circundavam sua
mente, num vaguear de bailarinos voadores. De repente uma mosca atrevida rabisca o espaço,
zunindo intermitente no oco vazio do quarto. Alguns dias antecediam o Natal. Para ele, dias de
profunda ansiedade e muita expectativa. Dessa vez o bom velhinho não falharia, pensava o
menino. Afinal, seu sonho não era tão grande assim. Apenas uma bicicleta Papai-Noel, só isso!
Com ela pretendia cavalgar o mundo, e no lombo da estrada aprender a crescer.
Seu pai, velho operário de construção já muito doente e embrutecido pela massa, que o
distanciava cada vez mais dos concretos ideais, não sabia o que fazer para realizar o sonho do
seu “menino de ouro” (assim o chamava). Sabia o quanto seria penoso ter que lhe dizer a
verdade. Não, não suportaria vê-lo chorar mais uma vez espiando a alegria dos demais. Ele
tinha que fazer alguma coisa, bolar um plano, sei lá! Meu Deus, a quanto tempo esse menino
sonha com a bendita/maldita bicicleta. Quando descobrisse seu verdadeiro Papai-Noel,
certamente não o perdoaria.
Na vizinhança todo mundo sabia que o Betinho finalmente ganharia sua tão desejada bicicleta.
Alguns caçoavam, outros invejavam e muitos duvidavam. Mas ele retrucava: vocês vão ver só,
dessa vez o Papai-Noel vem mesmo. Ele não vai esquecer de mim, só porque sou pobre e moro
num barraco. A professora me disse que o Papai-Noel ama todas as crianças, não importa cor,
credo ou classe social.
Seu Antônio todas as tardinhas após o trabalho se colocava frente a vitrine de uma grande loja
de brinquedos. Chegou até a chamar a atenção dos vendedores, que ali sempre o observavam
parado. O movimento era intenso, a fúria do consumo já tomava conta das cabeças
propagandeadas. Criou coragem, e entrou. O luxo e o brilho colorido da loja contrastavam
com sua patética aparência. Depois de muito esperar, alguém o interpelou:
– Deseja alguma coisa senhor?
– Hã? Ah, sim! Eu gostaria de comprar aquela bicicleta.
– Vai levar à vista?
– Que isso seu moço, quem ganha salário mínimo não pode comprar à vista. Nem que a prazo
fique muito mais caro, é o jeito.
– Dirija-se aquela moça, ela irá fazer uma fichinha.
Parece que quanto menor o salário maior o número de informações, maior a “fichinha”.
– É, senhor Antônio, infelizmente não aprovaram a sua ficha e eu não posso lhe vender a
bicicleta.
– Mas, por quê?
– O senhor está com prestações atrasadas no comércio.
– Mas eu vou pagar, é só receber o 13º, eu vou…
– Sinto muito, mas não posso fazer nada, ordens da chefia.
– Mas moço, o meu menino…
Triste e cabisbaixo, seu Antônio volta pra casa. Liga a televisão e desaba no velho sofá. A
mulher o chama e ele a indaga, o que tem pra comer? Arroz com feijão, ora que pergunta.
Não, eu não estou com fome. Mas há dias que você não come direito homem, desse jeito…
Não enche o saco, eu já disse que não estou com fome.
Mais tarde, na cama. Porque me olha assim, desembucha de uma vez mulher. E a bicicleta?
Nada feito! Mas você não disse que iria pagar com o 13º. Disse, disse tudo, mas não adiantou.
E agora Antônio, o menino nem tem dormido direito… Deixa mulher, chora não, eu vou dar um
jeito. Mas que jeito, está faltando até comida. Eu já falei, eu vou dar um jeito.
.
.
.
Enfim, natal. No pequeno barraco do seu Antônio algo estava faltando. Já não poderiam mais
assistir as novelas, o futebol; uma das poucas distrações nos últimos anos. Mas isso não
importava, o Betinho estava feliz!
Enquanto isto, nas páginas policiais do dia, os jornais estampavam em letras garrafais a
seguinte manchete: LOJA DE BRINQUEDOS DENUNCIA ROUBO DE BICICLETA E DÁ NOME E
ENDEREÇO DO SUSPEITO.
Imagem do filme “Ladrões de Bicicletas” de Vittorio de Sica (1948).