Por Evânia Reich, para Desacato.info.
As imagens de um Brasil violento circulam pelo mundo e dizem muito mais do que qualquer tentativa de resumir os episódios de brutalidade corrente nas suas grandes cidades. O Rio de Janeiro, cartão postal do Brasil e exemplo eloquente nos jornais nacionais e internacionais do paroxismo da violência urbana, nem mesmo é a cidade mais violenta do país. No entanto, o Rio de Janeiro está sitiado desde julho de 2017 e por isso é a partir do seu exemplo que escreverei sobre a questão do sofrimento social causado pelas intervenções militares.
O Brasil do Rio de Janeiro pode ser dividido em dois grandes grupos, segundo a própria denotação dos moradores do morro: a população do asfalto e a população do morro. Manterei ao longo do texto estes termos.
A presença militar com seus blindados de transporte de tropas e tanques foram posicionados nas principais vias de acesso à cidade. Na orla turística presenciou-se e saudou-se os militares. Recebidos com aplausos e incentivos, a população do asfalto sentia que enfim alguma coisa iria ser feita contra o descontrole das atividades criminosas na região metropolitana do Rio de Janeiro.
A legitimidade da ação militar em defesa dos cidadãos pode ser colocada em dúvida quando se sabe que os militares são treinados para matar inimigos e não para proteger a população. As táticas de ocupação de território visam à invasão de países estrangeiros, e o alvo são os combatentes estrangeiros. E nesta confusão de papéis, o que se presencia, quando a mídia consegue – e quer – ter acesso à imagens e informações, são cidadãos brasileiros civis sendo mortos por militares brasileiros, e vice-versa.
São incontáveis os exemplos de erros cometidos pelos militares contra a população civil, causando a morte de adultos e crianças residentes nas comunidades e nas zonas de confronte. Em junho deste ano o Brasil inteiro chorou a morte do adolescente Marcos Vinicius da Silva, baleado na barriga por militares da Polícia Civil. O menino escutou tiros quando estava indo para a escola, e decidiu voltar para a casa suspeitando que não teria tempo de ultrapassar a zona dos tiros. Ainda assim, quase chegando a sua casa, o estudante foi alvejado por um policial que estava em um veículo blindado. Antes de morrer, suas últimas palavras referiram-se ao ocorrido: “Mãe, eu sei quem atirou em mim, eu vi quem atirou em mim. Foi o blindado, mãe. Ele não me viu com a roupa de escola?'”. Segundo as palavras da mãe, o Estado entra na comunidade para destruir famílias, com sua polícia homicida. Eles entram para matar e não para defender ou proteger.
Exemplos semelhantes ao caso do menino Marcos Vinícius ocorrem corriqueiramente nas operações militares, quer seja no Rio quer seja em outros estados. O Brasil é recorde de homicídios de militares contra a população civil. Sabe-se que existe um grande problema estrutural que exige reformas das polícias. Mas enquanto elas não são feitas, os governos federais e estaduais buscam soluções relâmpagos que iludem inicialmente a população do asfalto, mas que acarreta enormes sofrimentos para a população do morro e para as periferias de nossas grandes cidades. A vida das populações pobres do imenso Brasil é tradicionalmente visada pelas políticas repressivas, causando angústia, traumas, mortes que dilaceram famílias.
Segundo Costas Douzinas, professor da universidade Birkbeck em Londres e especialista em direitos humanos, o novo século trouxe um retorno de práticas perversas do Estado que haviam sido universalmente condenadas e que desapareceram ao menos no ocidente. Após os atentados de 11 de setembro em solo americano e os diversos em diferentes países na Europa, nos anos subsequentes, os governos responderam com medidas draconianas antiterroristas, restringiram a imigração e ampliaram a vigilância de pessoas e grupos ditos suspeitos, atingindo uma parte cada vez maior da população. De repente a era otimista da esperança globalizada se transformou na era sombria do medo. E, como consequência, a suspenção dos princípios dos direitos humanos parece ser algo plausível, apoiado por governos e pelo público dominado pelo medo do inimigo.
No Brasil achamos que estamos a salvo dos atentados em solo europeu e estadunidense, e olhamos estarrecidos e solidários, pela televisão, os noticiários quando eles acontecem. No entanto, quase não nos toca as medidas militar-interventivas nas comunidades do Rio de Janeiro, as quais são aceitas por parte da população do “asfalto”. Como cidadão espectador, na maioria das vezes, não conseguimos perceber que o Estado não está preocupado em defender e proteger os moradores da favela, mas antes, na melhor das hipóteses, quer tentar resolver o problema da violência que chega aos locais onde moram os cidadãos do asfalto, e, eventualmente, o que é lamentável, promover as suas ações políticas com fins eleitoreiros.
Referindo-se às questões da intervenção militar na guerra do Afeganistão e a presença de organismos humanitários, Douzinas cita o chefe dos programas da USAID: “Nós não estamos aqui por causa da seca e da fome e a condição das mulheres. Estamos aqui por causa do 11 de setembro. Estamos aqui por causa de Osama Bin Laden”. Assim também parecem nossas intervenções militares, não estamos lá nas favelas por causa do problema dos meninos e meninas que se sentem inseguros ao sair de casa para a escola ou para brincar. Também não estamos lá por causa dos moradores que saem de casa para trabalhar no asfalto e não sabem se conseguirão voltar. Não estamos lá para amenizar a angústia dos moradores que vivem em zonas de demasiada precariedade estrutural e institucional. Estamos lá para acabar com a violência. Mas qual violência? A violência contra a maioria dos moradores da favela? Como aponta Christian Dunker, professor em psicanálise da USP e autor do livro Mal-estar, sofrimento e sintoma, “o engodo está em pensar que tudo isso tem um nome só, violência, e que, portanto, ao “combatermos” esse problema, estamos resolvendo todo o resto que nele se comprime. Nada mais falso.”
Falar em sofrimento social implica necessariamente dar vozes aos sofredores. Como diz o filósofo espanhol Ortega y Gasset, “ninguém pode sentir a dor do outro”. Assim, começa uma curta fala de um longo sofrimento: “Foi um erro da polícia. Como eles não viram o uniforme escolar? Uma mochila abóbora? Eles viram meu filho e mesmo assim atiraram”, lamenta José Gerson da Silva, o pai do Marcos Vinícius, aquele menino morto após ter sido baleado pelas costas, por policiais que estavam dentro de um veículo blindado, no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro. “O Estado alvejou uma criança indo para escola. Eles entram na comunidade para destruir família”, afirma a mãe do menino, Bruna Silva, que é diarista no asfalto. “Polícia homicida? Eles entram para matar?”, “Ele era meu mais velho. Minha caçula, de 12 anos, está chorando e dizendo: ‘Tiraram meu irmão’. Eu espero justiça. Calaram meu filho, mas não vão me calar. Por ele, eu vou falar”, afirma Bruna. Segundo ela, testemunhas relataram que pediram para que os policiais não atirassem. Uma moça me disse que gritou: “Não atira, é uma criança, ele está com roupa de escola”. Só que eles não ligaram e atiraram”, lamenta e questiona em prantos a mãe inconformada.
Apenas o artigo terceiro das Declarações dos Direitos Humanos já serviria para proteger as vítimas das ações criminosas e imprudentes dos militares no Rio de janeiro: “Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e a segurança de sua pessoa”. Mas podemos ir além: o que significa gritar “não atirem, ele está com roupa da escola”? Significa então que temos que provar que merecemos proteção da polícia? Que ser protegido é uma questão de mérito? A ideologia liberal da meritocracia parece perpassar seu significado econômico na voz dos sofredores da violência. Que armadilha ideológica é essa que exige que mostremos que as pessoas são boas para que possamos lhes conceder seus direitos mais elementares? O direito à vida. Estamos tão acostumados com essa ideia de meritocracia, de ser merecedor de algo, que mesmo quando nos deparamos com um direito tão elementar quanto o direito à vida achamos que devemos merecê-lo. Aqueles que sofrem com a violência física e psicológica perpetrada pelas ações militares internalizaram a ideia segundo a qual é preciso provar que são sujeitos do bem, que merecem ser respeitados. Ora o direito à proteção é algo universal e inscrito na nossa Constituição brasileira.
Como enfatiza Édouard Louis, jovem romancista francês que escreveu entre outros o livro Quem matou meu pai: “o mundo é dividido entre corpos que são protegidos e corpos que são destruídos”. “A política tem menos efeito sobre o corpo dominante, do que sobre o corpo dominado”. Quando o governo brasileiro decide sitiar o Rio de Janeiro com militares das Forças Armadas não é a população do “asfalto” que fica amedrontada e corre risco de vida e morte a cada operação; se para uma parcela da população o exército na favela representa mais segurança, mesmo que seja falaciosa, para a população vulnerável e pobre dos morros e das periferias constitui verdadeira tragédia.
É inegável que a invisibilidade social do sofrimento contribui ainda mais para reforçar o próprio sofrimento. Quando os indivíduos que sofrem permanecem na invisibilidade eles naturalizam seus sofrimentos e passam a acreditar que esse é o seu destino e se culpabilizam por ele. Como aponta o filósofo francês Emmanuel Renault: “Descrever os processos sociais do sofrimento permite parar de atribuir ao indivíduo a responsabilidade e de contribuir à uma construção do sofrimento podendo conduzir à mobilização coletiva”.
Referências
DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire: The political philosophy of cosmopolitanism. NY e Canadá: Routledge-Cavendish, 2007.
DUNKER, Christian. Reinvenção da intimidade: Políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu, 2017.
LOUIS, Édouard. Qui a tué mon père. Paris: Seuil, 2018.
RENAULT, Emmanuel. Souffrances sociales: philosophie, psychologie et politique.Paris: La découverte, 2008.
RODRIGUES, Thiago. Rio de janeiro Sitiada? Le Monde Diplomatique Brasil, ano 11, nº 122.
JORNAL O DIA: Como eles não viram o uniforme escolar, indaga o pai do adolescente morto na maré. Disponível em: https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2018/06/5551110-como-eles-nao-viram-o-uniforme-escolar–indaga-o-pai-de-adolescente-morto-na-mare.html#foto=1. Acesso em 12 agosto 2018.
Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.