Mais de 30 anos depois da anistia e da volta dos exilados pela ditadura, livros escritos na década de 1970 pelos cientistas sociais Vânia Bambirra e Ruy Mauro Marini — que, junto com Theotonio dos Santos, foram os principais formuladores brasileiros da teoria marxista da dependência — são lançados no Brasil, alimentando a retomada dos estudos sobre a integração dos países periféricos ao sistema capitalista mundial.
Por Leonardo Cazes.
No dia 15 de setembro de 1979, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, parava o aeroporto de Congonhas, em São Paulo, no seu retorno do exílio depois de oito anos. No mesmo grupo que vinha do México estavam Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra, que voltavam ao Brasil após 13 anos no exterior. Os dois, junto com o também exilado Ruy Mauro Marini, foram os principais formuladores brasileiros da linha marxista da teoria da dependência, que procurava compreender o modo de integração dos países periféricos ao capitalismo mundial.
O grupo é reconhecido e influente na América Latina — Theotonio, por exemplo, nos últimos anos teve cinco livros lançados em espanhol e apenas um em português. Porém, só agora Vânia e Marini têm suas obras publicadas no Brasil, como pontapé inicial da coleção “Pátria Grande”, parceria entre a editora Insular e o Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (IELA/UFSC). As razões para que “Capitalismo dependente na América Latina”, de Vânia, e “Subdesenvolvimento e revolução”, de Marini, demorassem tanto tempo para serem publicados por aqui se confundem com a história do grupo e dos estudos sobre a dependência desenvolvidos desde a década de 1950.
Início na UnB
Theotonio, Vânia e Marini se conheceram no congresso de fundação da Organização Política Marxista Política Operária (Polop), no interior de São Paulo, em 1961. No ano seguinte, Theotonio seria convidado por Darcy Ribeiro para ingressar, como professor, da recém-criada Universidade de Brasília (UnB) e levaria os dois companheiros. Na UnB, o trio encontraria o economista americano André Gunder Frank, vindo da Universidade de Chicago. Estava formado o quarteto que daria o pontapé inicial nos estudos sobre a teoria marxista da dependência.
Na UnB, os quatro organizaram um grupo de leitura de “O Capital”, de Karl Marx — como já ocorria na Universidade de São Paulo (USP) sob o comando de Florestan Fernandes — e começaram a fazer uma crítica da interpretação nacional-desenvolvimentista elaborada pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), centro do pensamento econômico estruturalista e muito influente na região. A Cepal via uma oposição entre um Brasil feudal e agrário e um Brasil moderno e industrial. A superação do subdesenvolvimento passaria, então, por uma aliança entre Estado e burguesia nacional industrial na forma de uma revolução nacionalista e capitalista.
A visão cepalina foi duramente criticada pelo grupo por fazer uma oposição entre arcaico e moderno e por defender que havia uma série de etapas a serem necessariamente atravessadas para se atingir o desenvolvimento. Já a teoria marxista da dependência afirmava que o Brasil não era um país feudal, pois estava integrado ao sistema capitalista mundial como grande fornecedor de matérias-primas. A própria existência de uma burguesia nacional industrial era questionada. Nas críticas à Cepal, o grupo concordava com a interpretação da dependência da escola sociológica paulista, que concentrava ao redor de Florestan Fernandes, na USP, nomes como Fernando Henrique Cardoso e Francisco de Oliveira.
A experiência em Brasília era favorável ao surgimento de novas ideias sobre o país. Theotonio lembra que Darcy Ribeiro conseguiu montar um time intelectual de alto nível e havia um entusiasmo geral por participar de uma universidade inovadora num momento de intensa discussão sobre o futuro.
— O debate fluía muito naquela época e a universidade era o grande centro de discussão. Viver o impacto de tudo o que acontecia no país em Brasília era muito interessante. O Darcy trouxe uma equipe inicial e nós fomos convidando outras pessoas. O Victor Nunes Leal, membro do Supremo Tribunal Federal, era diretor do departamento de Ciência Política. O Oscar Niemeyer andava pelo campus com os alunos da Arquitetura — conta Theotonio, hoje professor emérito da UFF e professor visitante na Uerj.
Contudo, a UnB de Darcy duraria pouco. A universidade foi um dos primeiros alvos do golpe militar de 1964 e Theotonio, Vânia e Ruy Mauro caíram na clandestinidade. Dois anos depois, a situação se complicara. A filha de Vânia e Theotonio, casados à época, nascera. O professor fora condenado à revelia e era considerado foragido. Em meio às disputas internas na Polop, o casal foi para o Chile. Ruy Mauro também os reencontraria, depois de uma passagem pelo México, no Centro de Estudos Socioeconômicos (CESO) da Universidade do Chile.
Num momento em que diversos países latino-americanos sofriam com golpes de Estado, o país era uma verdadeira ilha de democracia. Sob o governo do democrata-cristão Eduardo Frei, tornou-se o principal refúgio para intelectuais perseguidos pelas ditaduras do continente. Em 1970, a chegada ao poder da Unidade Popular de Salvador Allende e sua original “transição pacífica ao socialismo”, incendiaria ainda mais Santiago, cidade que abrigava desde a Cepal até ex-colaboradores de Che Guevara no governo cubano.
— O instigante mesmo não foi a UnB, foi o Chile. Foi onde surgiu realmente a teoria da dependência. Em 1968, o Theotonio escreve um artigo, “O novo caráter da dependência”, que serviu de marco teórico para todos nós. A partir daí, ele reuniu no CESO um grupo de jovens pesquisadores: eu, o Orlando Caputo, o Roberto Pizarro, o Sergio Ramos. O Ruy Mauro estava no México, mas a situação complicou para ele lá e o trouxemos para o Chile. Nós fizemos uma divisão dos trabalhos e eu fiquei com o estudo da América Latina. O trabalho dessa época é que dá origem ao livro “Capitalismo dependente na América Latina” (lançado no Chile em 1972) — afirma Vânia.
Ligação com Allende
A professora conta que o Chile era uma ebulição, que aumentou após a vitória de Allende, em 1970. Vários membros do CESO foram convocados para assumir altos cargos na administração pública e a direção do centro foi entregue a Theotonio. Vânia recorda a preocupação dos colegas com a vitória da Unidade Popular.
— Foi uma reação interessante quando o Allende ganhou. Eles comemoraram, mas com muita preocupação. Sentiram a responsabilidade pesando nas costas deles: fazer um processo de transição ao socialismo pela via pacífica. O Chile era um país de base industrial muito interessante, uma sociedade politizada e organizada. Por isso a repressão dos militares foi violentíssima.
O golpe do general Augusto Pinochet, no dia 11 de setembro de 1973, derrubou mais que o governo. Vânia, Theotonio e Ruy Mauro se viram obrigados a um novo exílio, agora em direção ao México. O fim da experiência do socialismo chileno enfraqueceu também a difusão dos seus trabalhos no Brasil. Pela ligação do grupo com Allende, a própria teoria marxista da dependência acabou marginalizada como parte de uma experiência fracassada. Ao mesmo tempo, tornava-se hegemônica no Brasil a interpretação da escola sociológica paulista, apresentada no livro “Dependência e desenvolvimento na América Latina”, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, de 1970.
— Nosso grupo penetrou fortemente nos partidos de esquerda chilenos. A Unidade Popular assumiu a nossa perspectiva. Isso também foi um dos motivos do fortalecimento da interpretação do Fernando Henrique. A queda do Allende, em 1973, é transformada num fracasso da nossa visão, como se nós tivéssemos radicalizado o governo e o inviabilizado — afirma Theotonio.
Apesar de convergirem nas críticas à Cepal, as duas teorias da dependência divergiam quanto à possibilidade de desenvolvimento dentro do sistema capitalista mundial. Enquanto Cardoso e Faletto defendiam que era possível um desenvolvimento associado ao centro capitalista, os marxistas observavam que a superação do subdesenvolvimento era estruturalmente impossível dentro do capitalismo. Em meio ao “milagre brasileiro”, a visão marxista foi tachada por seus críticos de “estancacionista”, lembra Theotonio. Ele rejeita a pecha e explica que a teoria nunca negou que houvesse crescimento econômico, mas sim defendia que ele seria limitado por fatores estruturais.
No México, o trio integrou o corpo docente da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e continuou com uma intensa produção acadêmica. Os livros de Vânia e Ruy Mauro, lançados pela editora Siglo XXI, já bateram a casa das dez edições. No retorno ao Brasil, em 1979, após 13 anos de exílio, o país e a universidade que eles tinham deixado eram muito diferentes. A vibração intelectual desaparecera e os espaços na academia estavam fechados. O retorno foi duro. Marini não pôde ver seu livro editado no Brasil. Morreu em 1997, aos 65 anos. Hoje, Vânia nota, com certa surpresa, o interesse renovado de alunos de pós-graduação por seu trabalho. A publicação de livros inéditos, 30 anos depois de lançados em espanhol, deve catalisar esse movimento.
Fonte: O Globo
Ola! Saudosa resenha da vitalidade do pensamento latnoamericano, dos mestres brasileiros que a gente leu. Cadê a sua herança? Pena que nestes momentos tão difíceis sejam poucas as mentes lúcidas que a compreender a realidade latinoamericana.